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A clausura abriu-se para a despedida dos monges da Cartuxa
08.10.2019
Centenas de pessoas “invadiram” o convento da Cartuxa, que abriu todos os seus espaços aos amigos, familiares e irmãos religiosos que se deslocaram até Évora para a despedida da comunidade que, no final deste mês, deixa a Cartuxa de Évora e parte para se juntar à Cartuxa de Barcelona.

Uma multidão enche de centenas de pessoas encheu a igreja principal da clausura
Havia sorrisos, havia lamentos, havia uma tristeza que contrastava com a serenidade dos monges, que acolhiam a todos com um sorriso acolhedor. «Conservem a lembrança não de nós, mas da nossa vida. Que imitem a vida que nós vivemos. A população de Évora sabe que nos levantamos à meia-noite para rezar. E temos muitos amigos que nos diziam que, ao ouvirem os sinos, rezavam uma Avé Maria por nós. Ora que conservem a memória dessa vida que aqui se vivia. A vida vai continuar noutros moldes. Das pessoas não vale a pena lembrarem-se, não interessamos», dizia, enquanto caminhava apressado para a sacristia. A hora passava e o número de sacerdotes e amigos que chegavam não parava de aumentar.

Carros na estrada, filas imensas para chegar à igreja, apinhada de gente até não se poder mais, de pé, sem quaisquer condições, à maneira dos Cartuxos. Antes da celebração, a possibilidade, única e quem sabe irrepetível, de visitar os espaços interiores da Cartuxa, principalmente para as senhoras, a quem sempre foi vedado o espaço. Por todo o lado, entravam pessoas, sorridentes, em paz, a absorver a espiritualidade do espaço. E lá estavam os monges a acolher, a explicar como funciona o quadro de tarefas que se encontra à porta da capela onde se rezam as orações diárias, ou a passear pelos claustros, mostrando os jardins.

 
A eucaristia foi presidida por D. Francisco Senra Coelho, arcebispo de Évora.  Na homilia, e depois da resenha histórica da vida dos cartuxos, falou de um «silêncio generoso» que agora deixa a Cartuxa. «Deus favoreceu Évora com o silêncio generoso, fecundo e habitado pelo seu espírito. O silêncio dos homens cartuxos, os homens bons de Deus. Nunca estávamos sós, contávamos com uma retaguarda orante, absolutamente gratuita, sempre disponível a abraçar todos e cada um dos homens, em comunhão incondicional com as suas dores, sofrimentos, esperanças e projetos», disse.
 
Reafirmando que «os cartuxos fizeram parte da história de Évora, e jamais se desvincularão desta cidade», o prelado definiu «duas pedras fundamentais da cultura e espiritualidade: os cartuxos e os jesuítas». «Évora permanecerá sempre com estes distintivos genéticos no seu ADN», assegurou.
 
D. Francisco Senra Coelho deu «graças» pelos quase 60 anos de presença cartusiana em Évora, e implorou «as maiores bênçãos de Deus para os irmãos que vão partir, mas deixam as sementes da contemplação que as nossas queridas irmãs Servidoras do Senhor vão continuar e connosco compartilhar». «Que esta casa seja lugar de acolhimento na aridez e no inverno de todos os que possam sofrer o vazio, a escuridão e o silêncio interior de Deus. Será nesse silêncio de Deus que aprendemos a ler e escutar o Deus do silêncio. Que a Cartuxa seja sempre uma escada para o nosso encontro com Deus, pelas mãos de Maria. Que a esperança permaneça no nosso olhar que os vê partir, mas que no compromisso guarda em nossos corações o grande testemunho de vida, a grande tradição do silêncio que os nossos queridos cartuxos nos souberam deixar», concluiu, sem não deixar de referir que «aqui hoje transcende a diocese, é o Coração crente de Portugal que está aqui».
 
No final da eucaristia, e perante centenas de amigos, o Pe. Antão, superior da comunidade, tomou a palavra para dizer que, «para os cristãos, toda a despedida é um “até logo”». «Temos esperança de, um dia, estarmos juntos de novo perante Deus. Por isso, agradecemos a vossa despedida, mas também vos dizemos que nos voltaremos a encontrar, qualquer dia, na presença de Deus. Adeus», disse, com uma simplicidade que levou toda a assembleia a uma longa e demorada salva de palmas.
 

Já de noite, o cortejo processional saiu da igreja, mas muitos não arredaram pé. Voltaram aos claustros, ao contacto vivo e feliz com cada um dos monges da Cartuxa que, pacientemente, acolhiam todos os que se dirigiam a eles. E eram tantos os que procuravam tirar uma foto ou trocar dois dedos de conversa com cada um. Havia quem pedisse direções ao Pe. Antão para o poder visitar, ao que ele argumentava que as visitas não seriam permitidas.
 
O convívio com a população de Évora era outros dos aspetos que enriquecia e tornava única a Cartuxa de Évora. «A esta porta bateram pessoas com todo o tipo de problemas, católicos e não católicos, sequiosos de esperança, com desespero humano, sem sentido para a vida. Para aqui telefonaram pessoas que tinham como horizonte o suicídio e esta casa foi uma “casa mãe” de coração aberto, que procurou, na fraternidade que nos vem da nossa humanidade, acolher a todos. O seu coração era um ouvido. Eram capazes de escutar no silêncio da fidelidade e da confiança, e por isso se tornou um centro de referência de acolhimento e de humanidade. Essa é a herança que nós recebemos. Mas aqui também chegaram muitas alegrias, de gravidezes, de cursos finalizados, médicos a pedir a bênção para a sua mão antes de uma cirurgia. Esta é uma casa de afeto que nos compete levar para a frente no mesmo sentido de humanidade», afirmou aos jornalistas no final da celebração.
 
O arcebispo de Évora espera que a nova congregação se torne rapidamente a mesma referência que foram os Cartuxos – «aqui será sempre a Cartuxa», assegurou – e vão mais além, principalmente na parte do acolhimento numa hospedaria que será adaptada para essa realidade.
 
 
Sobre a possibilidade de os Cartuxos regressarem a Évora ou a Portugal, D. Francisco Senra Coelho não nega essa possibilidade ou esperança. «É um desejo grande, porque acreditamos que a Europa renasça. Temos a alegria de contar com três comunidades contemplativas, onde temos muitas monjas novas, e são grupos florescentes. Acreditamos que esta Europa vai descobrir a beleza do amor numa entrega total e que ainda, quem sabe, os cartuxos voltem aqui. Tenho a certeza que, em 1834, quando os cartuxos foram expulsos, seria menos acreditável o que estou a dizer hoje. Em 1960 eles voltaram, mas dizer isso em 1834 provocaria gargalhadas. Hoje não direi que provoque gargalhadas, mas pode gerar um juízo de ingenuidade. Porém, o homem é sempre uma surpresa. Aguardemos, porque no fundo do homem há uma grande sede, e o mundo não responde a essa sede, gera mais sede, e muitos jovens buscam Deus. Esta porta está aberta, e o futuro a Deus pertence», disse, com um sorriso.
 
Do encontro com os jornalistas seguiu para se juntar às monjas Servidoras do Senhor, que se juntaram para o saudar. Entraram no refeitório, onde já se encontrava o Pe. Antão, e posaram juntos para uma foto que simboliza o passado e o futuro da Cartuxa.


Reportagem e fotos: Ricardo Perna
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