O Cón. João Aguiar Campos é um perito em comunicação. Antigo diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais e antigo presidente do Conselho de Administração da Rádio Renascença, olha para estes tempos de confinamento em jeito de balanço e elogia a postura dos bispos, mesmo perante as «casquinhas de banana» que lhes foram colocadas. «São muitos anos a virar frangos», afirma, no seu jeito peculiar de comunicar.
Neste tempo de pandemia, a Igreja tem dado o exemplo?
A Igreja deu o exemplo em três dimensões. O respeito pela saúde, tomando decisões dolorosas de suspender celebrações, peregrinações, ritos, acontecimentos mais ou menos multitudinários e de pequena dimensão, como as nossas missas dominicais. A Igreja deu o exemplo de que não é legítimo querer comungar o corpo do Senhor depois de ter violado o quinto mandamento, causando dano no corpo e na alma a si mesmo e ao próximo. Depois, deu o exemplo das respostas sociais. Se percorrermos os sites das igrejas diocesanas, encontramos que a igreja pôs ao dispor dos profissionais de saúde o seminário, o centro social, as instalações disto e daquilo. E depois deu o terceiro exemplo de, através das próprias redes sociais, não abandonar, e continuar presente da forma que lhe era possível estar presente. Exemplo do confinamento absolutamente exemplar, mesmo quando doloroso, e mesmo quando alguns fiéis não o perceberam, exemplo da partilha de meios e bens, pedindo que as paróquias tivessem em conta as necessidades não apenas dos crentes, mas as necessidades sociais envolventes, não deixando ninguém para trás, e esta presença orante, da partilha e da reflexão, esta presença em que as redes lançadas já não são do fio Y ou Z, mas as redes da rede.
Como é que acha que os bispos reagiram às críticas que sofreram perante uma decisão tão radical?
Deverão ter olhado com um doloroso silêncio. Em primeiro lugar, porque não tenho dúvidas que estiveram a fazer o que pensaram ser o melhor, na sua condição de quem governa, de pastores e de guias. Não tenho dúvidas de quanto deve ter doído a decisão sobre Fátima, não tenho dúvidas de quanto devem ter doído decisões de adiar ordenações, outras peregrinações, locais ou diocesanas, como aos párocos de certeza que doeu imenso não ter contacto com a sua gente. Depois, além desta dor da ausência obrigatória na avaliação de consciência que fizeram, há a dor de quem não percebe e de quem não quer perceber. Quem não percebe, eu percebo, mas quem não quer perceber, e às vezes até me parece que gostaria de voltar ao tempo daqueles juízos de Deus em que se atira o tipo para dentro do caldeirão de azeite a ferver e se sair de lá vivo é inocente e se sair cozido era criminoso... eu não sou capaz de tentar Deus.
O que é que faltou nesta situação?
Penso que hoje temos de recuperar muito mais o respeito uns pelos outros, e temos de recuperar, muito mais dentro do sensus fidei e de um diálogo que não trava a legitimidade das opiniões diversas, o sentido da caridade na verdade. Muitas vezes, no anúncio da verdade, falta-nos o sentido da caridade. “Eu cá gosto de pôr tudo em pratos limpos”, podemos dizer. Mas o que se faz é pôr tudo em cacos, e pôr tudo em cacos não é a mesma coisa que lavar cuidadosamente a loiça, e dizer, pelos meios que se julguem adequados, “e não pode ser isto? E não pode ser aquilo? E se fosse desta maneira ou daquela?” Uma opinião é pormos em cima da toalha a nossa participação no merendeiro, mas aceitarmos que a mãe ou o pai da família digam “tu não comes isto, que tem açúcar e tu tens diabetes”, e que faça esta distribuição amorosa e cuidadosa. Penso que os nossos bispos foram prudentes nesta administração amorosa e cuidadosa das orientações.
Mas houve falhas na comunicação...
Podem, numa vez ou outra, ter atrasado uma semana. Podem ter esperado por algumas orientações mais universais, passe a expressão, e poderiam ter saído mais cedo, de maneira que alguma diocese, mutatis mutandis, pudessem adequar às suas circunstâncias? Podiam, mas nada disso alterou de uma forma que seja passível dos comentários desabridos que nalgumas circunstâncias surgiram. No momento em que nós, padres ou fiéis leigos, cortarmos a nossa ligação com os bispos, temos uma igreja morta, porque decapitada.
Mas acha que foi uma reação de uma maioria, ou de uma minoria exaltada nas redes sociais?
Eu penso que sim, não tenho sondagens, e intimamente digo que espero bem que sim. Porque se assim não fosse, seria terrivelmente dramático. Quando leio, caem muitas coisas no meu e-mail porque há pessoas que pensam que, encharcando-me, me afogam, mas não conseguem (risos), ataques pessoais a A, B ou C, e ataques tão pessoais ao Papa, ao querido Papa Francisco, eu pergunto-me se eles já fizeram um abaixo assinado contra o Espírito Santo, e se o Espírito Santo alguma vez lhes respondeu. Ficava imensamente feliz de encontrar um manuscrito ou uma gravação de um spot pelo Espírito Santo.
Falou já na prudência dos bispos em reiniciar as celebrações mais tarde, o que em alguns países gerou um coro de protestos da própria estrutura da igreja... as nossas igrejas estariam preparadas para começar mais cedo?
Essa é que é a questão. Por algum erro de comunicação ou algum adiamento na tomada de posição, em algum momento ou outro, intimamente disse “não me digam que o Costa virou presidente da Conferência Episcopal”, mas percebi imediatamente que não era assim. O Governo foi dizendo um conjunto de coisas, e a Igreja poderia ter dito mais cedo. Fica a sensação que é o primeiro-ministro que pede uma reunião para dizer como vai ser, e pode ter havido deficiência na comunicação. Partir daí para a conclusão da subserviência é muito arrojado. Não podemos ser tão inocentes que não estejamos autorizados a ver, em algumas sugestões da última semana, uma casquinha de banana colocada sobre os pés episcopais, porque, como eu digo, ser inocente sim, ser anjinho não. Mas há outro lado, que é o lado de, havendo um conjunto de condicionantes para a abertura das igrejas, é preciso dar tempo para a preparação, e tenho muito medo que venha ao de cima o nosso desenrascanço português, que, depois de o sino dar as três para entrar para a igreja, o senhor abade ainda demora 5 minutos paramentar-se com o sacristão a pôr os bancos desta e daquela maneira. É preciso tempo para preparar, convenientemente, para que nem as autoridades de saúde, nem as outras, venham apontar que nós, em nome de Deus, matámos não sei quantas pessoas, tudo esteja com bom senso, com piedade e com uma autonomia assumida, mas cooperante, se possa, realmente, trabalhar para o bem comum. Esta demora pareceu-me sensata.
Com todas estas confusões do 25 de abril, do 1º de maio e da exceção que se tentou fazer para o 13 de maio, a Igreja sai por cima de todas estas polémicas?
Eu acho que a Igreja sai com uma imagem de bom senso e senso comum. Penso que, genericamente, sai. Mesmo aqueles que gostariam de um passo em falso terão de reconhecer, e cuidado com esta citação, que não a atribuo a ninguém, que eles estão há muitos anos a virar frangos (risos). Vêm de muito longe, têm uma experiência de séculos. Quando nos deixamos conduzir por este sentido de Igreja, transformamo-nos em peritos em humanidade, e ser perito em humanidade é precisamente assim, nestas circunstâncias. Não é dizer, desesperadamente, “Senhor, mas comemos e bebemos contigo, estiveste nas nossas praças, pregaste na nossa igreja, foste na nossa peregrinação”... afastai-vos de mim, porque praticastes a iniquidade, afastai-vos de mim porque vos faltou a caridade, e a caridade não acaba nunca. A fé acaba, a esperança acaba, a caridade não. Por isso, com todas as citações pastorais e teológicas, “mesmo que eu fale a língua dos anjos e dos homens, se não tiver caridade, de nada me aproveita”, entrego o corpo ao COVID-19 na peregrinação X, ou na celebração Y, e sou um mártir do COVID... epá, sem caridade, de nada te aproveita, porque este mártir contagiou não sei quantos outros. Nosso Senhor já nos avisou sobre isto, e por isso a caridade que vence tudo o resto, que vence até esta tentação de pedir enxofre do céu sobre o episcopado e sobre os outros... essas pessoas parecem prescindir, mas não prescindem. C’um caneco, eu não prescindo, prescindindo do abraço. Se eu aperto os meus braços sobre o peito, aperto, aconchegando no meu coração, alguém que fisicamente não está, e aprendo este amor do não toque, aprendo esta distância que não nos afasta, aprendo esta comunhão de desejo. Aprender tudo isto, aprender o alimento da saudade, para que depois ela seja verdadeira quando nos encontrarmos.
Entrevista: Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna e António Fonseca
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