09.11.2022
Um padre é como a orla do manto de Cristo. No meio da multidão, procuramos, abrimos caminho, estendemos a mão, porque sabemos, ou pressentimos, que alcançando um padre, tocamos Cristo.
Quem está à altura de semelhante missão? Quem ousa apresentar-se assim ao mundo? Que nível de audácia terá o coração de um rapaz que se decide a começar um caminho totalmente desproporcional à sua capacidade e à grandeza do que está em causa? E de onde lhe vem a coragem para avançar num terreno minado por histórias, notícias e suspeitas, diariamente repetidas?
A justa indignação com os abusos cometidos na Igreja pode fazer-nos sentir nobres, retos e do lado certo da História. É uma coisa tremenda, que condenamos em uníssono e que nos traz aquela ponta de alívio, porque não temos culpa, não fomos nós, nem sequer somos padres. Além de que a repetição do tema tende a dar-nos a impressão de que estamos bem informados e que isso é meio caminho andado para resolver o problema.
Numa recente entrevista, o Papa, depois de falar sem rodeios sobre o tema, com a habitual clareza, à pergunta sobre como viver este momento difícil na Igreja, respondeu: «Abram a janela para ver mais adiante do que o nariz, olhem o horizonte e alarguem o coração.»
Como é que tudo começou? Era quinta-feira, Jesus pôs-Se à mesa com os Apóstolos e disse-lhes: «Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes de padecer» (cf. Lc 22,15). Nessa noite, pela primeira vez, partiu e abençoou o pão e o vinho, deu-lhos a comer e a beber, dizendo que eram o seu Corpo e o seu Sangue, e pediu no fim: «Fazei isto em minha memória.»
Sabemos, desde então, que um padre é um pobre homem – bem simples e fracos eram aqueles primeiros Doze – a quem Jesus chama a uma proximidade consigo e a quem entrega o poder de abençoar o pão e o vinho, tornando-os seu Corpo e seu Sangue. Nunca foi outro o modo nem o critério. Aqueles primeiros, que nessa noite haviam de adormecer e fugir, vieram a morrer mártires. E tantos depois deles. Homens simples, atraídos a Jesus por um chamamento pessoal, que se tornam santos, imitando Cristo na virgindade e vivendo a missão como fruto da sua pertença à Igreja.
São expressão da afeição de Jesus por cada pessoa. Chamados à radicalidade da experiência humana, com os mesmos sentimentos e sensações, passando pela fome, pela sede e pelas lágrimas, tocando de perto o pecado para o curar, trazendo o perdão de Deus, são deste mundo, mas são outra coisa.
Não se poupam a cansaços, dificuldades e distâncias, para que Jesus chegue ao mais periférico, não se defendem, nem sempre se cuidam, sofrem como ninguém com o próprio limite, porque sabem que são o rosto de Cristo, não podem deter-se a chorar os seus insucessos, porque há outros prantos que os esperam.
E nós, diante deste dom que é um padre? Nem sempre temos presente que a humanidade do padre é ponte entre o presente e o eterno. Se ele e nós o perdemos de vista, desaba o padre, ficamos com a aridez do efémero e é traído o amor eterno de Deus. Um padre que abusa é quase sempre uma ponte em que os fundamentos cederam à erosão. Antes de chegar à pobre e falível justiça dos homens, seja certa a nossa consciência da natureza sagrada dos padres, límpida a nossa relação com eles, intrépida a nossa oração.
E dêmos graças por todos – e são quase todos – os que nos testemunham uma alegria indizível, uma paternidade improvável, uma energia misteriosa, uma sabedoria surpreendente e uma felicidade para lá de qualquer medida. Porque um padre é um sinal de eternidade.