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«Abusos não surgem após a ordenação, surgem 15, 20 anos depois»
01.07.2022
O Pe. Hans Zollner é o responsável pelo Instituto de Antropologia, nova designação para o Centro de Proteção de Menores do Vaticano, e há muitos anos a face da Igreja no que diz respeito à luta contra os abusos sexuais de menores por parte de membros da Igreja. Em entrevista conjunta à FAMÍLIA CRISTÃ e Agência Ecclesia, fala sobre este flagelo e como tudo está a ser feito para que ele acabe de vez.
 
 
Em Portugal, estamos a terminar a fase diocesana do Sínodo e as sínteses diocesanas não mencionam, ou mencionam pouco, este problema dos abusos....
A Igreja está inserida dentro da sua própria sociedade local. Isso significa que na Igreja falamos apenas do que a sociedade fala, e vice-versa. Por isso, quando há a capacidade e a vontade de falar de problemas como os abusos sexuais na sociedade, então a Igreja fala disso. Mas onde há relutância ou resistência em fazê-lo, então isso é também maior na Igreja. Sei do famoso caso da Casa Pia, onde já tinham um escândalo de abusos cometidos por políticos e outras figuras sobre menores, mas penso que isso ficou ao nível de um escândalo político e pouco mais.
Penso que a Igreja Católica em Portugal está num ponto em que parece querer falar sobre este tópico de forma mais progressiva e mais ativa, o que é muito bom, porque significa que tiveram coragem e determinação porque resolveram avançar com um tópico que é muito difícil de lidar, muito feio, e que é difícil para todos os membros da Igreja, mesmo os leigos.
Mas agora é possível que a sociedade comece a falar desta questão em Portugal, porque a Igreja está a falar desta questão.
 
É importante que o trabalho da Comissão e das dioceses possa nomear e divulgar os casos de encobrimento?
Em todos os países onde os relatórios foram feitos, veio à luz do dia quem foi responsável por encobrimentos, atrasos ou negligência nos deveres a que estavam obrigados pela lei canónica e pela lei civil.
Se houver um incumprimento da lei civil, tem de haver uma acusação de acordo com as leis locais. Para a Igreja temos uma nova lei, desde 2019, que fala sobre a responsabilidade dos bispos naquilo que a Igreja espera que sejam as suas funções. Quando virmos que não as cumpriram, então poderá haver uma investigação e consequências canónicas, que poderão chegar à demissão desses bispos.
 
Deve o testemunho das vítimas ser suficiente para demitir esses bispos?
Existe um procedimento que diz que todos os que saibam de encobrimento ou negligência devem denunciá-los à autoridade correspondente. Se for um bispo que não fez o que deveria ter feito, o procedimento é fazer a denúncia para o arcebispo, ou, se for ele, um dos seus bispos vizinhos ou para o núncio. Depois, deverá haver uma investigação, que incluirá certamente as vozes das vítimas, mas que incluirá outros fatores, pois as vítimas raramente sabem se o bispo agiu ou não no seu caso, e a investigação incluirá essa avaliação sobre se o bispo agiu bem ou não; segue para a Congregação dos Bispos, que determinará o que se passa.
 
Mas o processo de investigação deve ser público?
Deve ser feito dentro das regras previstas na Igreja. Não há tribunal civil que seja público, e aqui também não deverá ser. Em qualquer dos casos, o resultado deve ser publicado, assim como a justificação e a decisão da Congregação dos Bispos ou do provincial devem ser publicadas. Nós somos péssimos nisto, porque achamos que não deve ser feito, mas acho que o povo de Deus e o público em geral têm o direito de saber.
 
Roma tem de autorizar o acesso da Comissão independente aos arquivos diocesanos?
Pelo que entendo, nem a Santa Sé nem a conferência episcopal podem decidir, deve ser o bispo de cada diocese que deve decidir quando e como coopera com as autoridades civis e com a Comissão independente estabelecida pela Conferência Episcopal Portuguesa. Precisamos de dizer que este acesso tem de ser dentro dos limites e das leis que respeitem a privacidade e protejam o bom nome de todos os envolvidos. Não podemos falar de nomes conforme queiramos, porque dentro da União Europeia e em todos os estados-membros temos leis que protegem a privacidade das pessoas. Mas, dentro destes limites, não há nenhuma razão, pelo lado canónico da Igreja, que possa impedir um bispo de colaborar com o Estado ou com a Comissão independente neste assunto.
 
É importante que os bispos falem com as vítimas?
Em primeiro lugar, acho que é importante que cada vítima ouça, de quem ela sentir importante ouvir, que foi vítima, que foi magoada, que lhe foi infligida dor e que lhe provocaram danos. Para muitas, é importante que sejam reconhecidas como vítimas, e a maioria quer ser ouvida e ser reconhecida que é vítima. Mas tudo depende do que cada vítima, individualmente, queira e espere. Porque algumas querem que isto seja dito por um bispo ou um provincial, mas outras não querem sequer aproximar-se de um bispo ou provincial. Outras vão pedir ajuda psicológica, acompanhamento, terapia. Algumas querem dinheiro como sinal de reparação, algumas não querem. Por isso, temos de levar a sério o que cada vítima quer para si, não há uma solução igual para todas.
 
Falar de abusos é falar de questões de poder. A chave estará em retirar poder aos sacerdotes?
Acredito que partilhar o poder é um dos mais importantes elementos. Mas o poder é uma coisa subjetiva, porque o poder está sempre lá. A questão é quem o tem e como é exercido. Mais importante do que qualquer decisão estrutural, sobre se deve haver mulheres, ou leigos, é saber como é que estes grupos estão a trabalhar com o poder que têm. Não podemos dizer que um leigo não abusará do seu poder, porque eles também abusam, e temos muitos abusos a acontecer no mundo, abusos emocionais e sexuais, executados por leigos que são mais poderosos que outros. A questão não é tentar partilhar o poder, a questão é como é que controlamos o poder, como é que o supervisionamos, quais são os procedimentos e as estratégias, e quem é que está autorizado a chamar à responsabilidade aqueles que estão no poder quando há um abuso desse poder. É uma questão de responsabilização, e isto é algo que a Igreja ainda não desenvolveu muito, para ser simpático, e é algo onde precisamos de trabalhar.
 
A Praedicate Evangelium (PE) pode ajudar nisto?
A PE é para a Cúria romana, e pode dar alguns exemplos, mas qualquer bispo no mundo pode tomar muitas decisões antes de se preocupar com a PE, tomar já, porque ele pode decidir quem são os seus conselheiros, quanto poder partilha e em quê, ele pode decidir quem são os responsáveis na sua diocese, ele pode pôr mulheres e pessoas leigas em posições de poder.
 

Quais são as motivações de quem abusa?

Essa é uma questão muito vasta. Antes de mais, precisamos de dizer que cada pessoa, vítima e abusador, é diferente e tem de ser olhada de forma individual. Em segundo lugar, pode haver características que podem favorecer o aparecimento de abusos. Por exemplo, a impressão de que eu, como sacerdote, estou acima de tudo, que tenho mais poder porque sou padre. Em terceiro lugar, há coisas para as quais precisamos de olhar e reconhecer que algo correu terrivelmente mal. Na educação sobre uma sexualidade madura, sobre relacionamentos, sobre as minhas emoções, desejos e necessidades, muito precisa de ser feito na formação inicial, na seleção de candidatos ao seminário e na formação contínua depois da ordenação. O problema dos abusos não surge após a ordenação, surge 15, 20 anos depois, quando as pessoas estão cansadas, esgotadas, sozinhas e chegam a um ponto em que as suas necessidades espirituais e emocionais não são preenchidas. Alguns caem no alcoolismo, outros abusam sexualmente e emocionalmente de menores, de mulheres, para preencher esse vazio. O celibato não é um fator, e todos os estudos científicos feitos provam-no, e a homossexualidade também não é um fator em si. Mas podem ser fatores de risco.
 
Como é que a Igreja deve acompanhar os abusadores?
É muito importante que a Igreja acompanhe os abusadores. Antes de mais, porque são pessoas que merecem toda a dignidade e respeito. Em segundo lugar, e isto não é compreendido por muitas pessoas, porque cuidar devidamente dos abusadores é uma das principais medidas para a prevenção de abusos. Nós sabemos que muitos abusadores, a maioria, continua a abusar mesmo depois da terapia e da prisão. Mas, como qualquer outra pessoa, como é que se ajudam estas pessoas? Há muitas coisas que se podem fazer, mas há uma limitação, porque um padre que seja despromovido ao estado laical por causa de abusos, a Igreja deixa de ter autoridade para trabalhar com ele, só o pode fazer se ele aceitar. As pessoas esquecem-se que a Igreja não pode ir atrás de um abusador que seja despromovido ao estado laical e desapareça para outra parte do país ou mesmo para outro país.
 
E acha que a Igreja não está ainda preparada para esse trabalho pastoral?
Acho que, na sua maioria, a Igreja ainda não pensou muito sobre isso, nem investiu muito nisso, porque a sociedade também não o fez. Quando um abusador que é professor, pai de família ou treinador desportivo sai da prisão após três anos, por causa de abusos, quem toma conta deles? Eles podem voltar a abusar, e a Igreja deveria fazer melhor isso, mas as pessoas não percebem que cuidar bem dos abusadores é evitar que estes abusos voltem a acontecer, e isso tem sido um obstáculo para este trabalho. Acho que há muito a fazer, e há muito modelos a serem desenvolvidos no momento, que acho que vão dar muitos frutos.

 
 
Entrevista e fotos: Ricardo Perna
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