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As crianças e o divórcio: Uma ou duas casas?
01.04.2015
Os estilhaços de um projeto de vida interrompido por um divórcio são difíceis de apanhar e de colar. Entre os cacos dele e dela permanecem os filhos dos dois. Como reorganizar os tempos e espaços dos filhos que deixaram de ser vividos em comum pelos pais?

A falta de diálogo, o desejo de se sentirem “vingados”, a sensação de perda que leva os pais a reivindicar os filhos como compensação pela dor que lhes foi infligida, são exemplos de “botões” que podem desligar alguns (não todos) pais das suas funções. O facto de deixar de haver um espaço comum a todos obriga a novas dinâmicas e a uma articulação entre pai e mãe. Um processo nem sempre fácil quando a mágoa serve de cola a um coração partido.

A regulação das responsabilidades parentais cabe aos tribunais, tendo como princípio fundamental o superior interesse da criança. A Lei 61/2008 expressa, no artigo 1906º, sobre o exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, que «as responsabilidades parentais […] são exercidas em comum por ambos os progenitores […]», exceto «quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste». Fica determinado ainda que o «tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.»

A regulação das responsabilidades parentais pode assentar, em traços gerais, num regime de residência única, em que a criança está a maior parte do tempo com um dos pais e o outro detém o direito de visita, numa guarda partilhada de residência alternada (que a lei não expressa, mas também não proíbe), em que os pais ficam com responsabilidades conjuntas e tempo distribuído entre a casa dos dois, o que é diferente de uma guarda alternada, em que os pais têm tempos semelhantes mas em que exercem uma responsabilidade exclusiva no período em que o filho está com eles.

O regime predominante é o de residência única com um progenitor, geralmente a mãe, e direitos de visita por parte do pai. Gradualmente, a atribuição de guardas partilhadas com residência alternada começa a ganhar algum espaço. Sílvia Lopes, advogada, diz que a experiência que tem aponta ainda para uma larga maioria de guardas atribuídas à mãe, não só porque normalmente os pais não se entendem, mas também porque mesmo entendendo-se «ainda não veem a guarda partilhada como um regime a adotar. Têm mais aquela ideia, a mãe está mais habituada a ficar com as crianças.» Por outro lado, relativamente às decisões de tribunal, a advogada refere que os juízes ainda aplicam, na maioria dos casos, a guarda de residência única, atribuída à mãe.

Viver em duas casas
Quando os juízes determinam uma guarda partilhada de residência alternada, a mais comum é a de uma semana, mas podem ser determinadas outras periodicidades, conforme a situação, esclarece Sílvia Lopes.
Haverá um modelo único e acertado de guarda que sirva a todas as crianças e a todos os divórcios?

«Qualquer regime serve quando os pais se dão bem; quando os pais se dão mal, qualquer regime é mau», explica o juiz de Tribunal de Família Joaquim Silva, esclarecendo, no entanto, que da sua perspetiva, e na maior parte dos casos, é a guarda partilhada com residência alternada a que melhor defende o superior interesse da criança.

Ana Durão, psicóloga clínica, corrobora alguns dos argumentos a favor das guardas partilhadas com residência alternada, mas chama a atenção para o facto de não ser possível afirmar sem reservas que «é o melhor». Em consultório, a psicóloga tem casos em que este se revela perfeitamente adequado e outros em que não tem dúvidas de que não funciona.

Clara Sottomayor, juíza conselheira do Tribunal da Relação de Lisboa, com uma posição mais crítica relativamente a este tipo de regime, considera, na sua obra Temas de Direitos das Crianças que «o modelo de guarda conjunta física ou partilhada (ou residência alternada) deve ser limitado às famílias sem conflitos e com capacidade de cooperação elevada entre os pais e que acorda, de forma livre e ponderada, na sua adoção e execução».
Na ausência de conflito, a autora reconhece que a residência alternada pode «funcionar como uma dupla fonte de afetos». Contudo, Clara Sottomayor defende que este modelo não deve ser aplicado «em casos de conflito parental elevado», quando «há indícios de violência doméstica e de abuso sexual», em «crianças com menos de quatro anos» ou em «crianças entre os quatro e os dez anos, se existir conflito entre os pais».


«Já "roubei" muito bom pai e muitas crianças»
Estes mesmos argumentos foram usados, em tempos, pelo juiz Joaquim Silva. Porque mudou? Pelas crianças. Este magistrado tem por hábito ouvi-las. E foi pela boca das próprias que constatou que estavam mais equilibradas e felizes as que conviviam com os dois progenitores em regime de guarda partilhada com residência alternada.
Colocando-se e às suas convicções em causa, resolveu arriscar uma mudança, ao mesmo tempo que procurou obter conhecimentos de psicologia.
E chegou a uma conclusão. «Já “roubei” muito bom pai a muita criança. Por desconhecimento. Hoje é impossível», assegura este juiz, que durante muitos anos rejeitou o regime da guarda partilhada com residência alternada, mesmo por acordo.

«Nas residências únicas temos uma perda de vinculação ao que não reside com a criança que, por força das dificuldades de relação que têm com os pais ou mães, acabam por ir abandonando os filhos.»
Joaquim Silva reconhece que quando os pais se dão bem há casos de residência única que funcionam e não penalizam a criança, mas ainda assim prefere uma guarda partilhada com residência alternada, porque é a que garante uma distribuição equitativa do tempo, fator de construção de uma vinculação segura a ambos os pais. «Para a vinculação tem de haver abraço, tem de haver presença», defende.
A presença de e o convívio com pai e mãe, por si só não é, na opinião de Ana Durão, garantia da sua qualidade de cuidadores, nem impede que ocorra abandono e alienação parental, já que estes podem acontecer mesmo com a guarda entregue a ambos os pais.

De entre os prós e contras de ambos os modelos caberá aos juízes e aos pais encontrar a solução mais próxima do ideal que proteja os pés das crianças de terem de caminhar, descalços, sobre vidros partidos.
 
Texto: Rita Bruno
Imagem: ISTOCK
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