Nos anos 70, 1970, crianças sem família ou institucionalizadas foram postas em casas de pedófilos propositadamente. Fazia parte do Projeto Kentler, desenvolvido por um psicólogo que defendia contactos sexuais entre crianças e adultos. A investigação da Universidade de Hikdesheim, que tornou público o caso, recebeu relatos de vítimas e descobriu uma rede de académicos e várias instituições coniventes. As crianças cresceram nestas casas, sendo abusadas durante muitos anos sem que ninguém fizesse nada para o impedir ou se importasse.
Ouvi a notícia e espantou-me. Espantou-me saber que isto se prolongou até aos anos 2000. Comove-me e revolta-me pensar no que também aconteceu na Casa Pia de Lisboa. Em ambos os casos, salvaguardando as diferenças, são crianças desfavorecidas e com famílias inexistentes, disfuncionais ou carenciadas. Foram abusadas de forma organizada, tendo muitos fechado os olhos e mantido o silêncio.
No passado, durante muito tempo, as crianças não eram consideradas pessoas de igual valor aos adultos. Noutras questões, eram iguaizinhas sem tirar nem pôr. E por isso, trabalhavam – e ainda trabalham em muitos sítios do mundo – muitas horas por dia, casavam e tinham filhos. Ainda hoje muitas meninas casam ainda crianças, com homens muitos anos mais velhos. É assim hoje, no nosso mundo deste 2020 e em Portugal. A lei permite o casamento de crianças a partir dos 16 anos. Têm aumentado os casamentos de jovens de 16 e 17 anos. Entre 2016 e 2018, foram quase 400. Os números são o que são. Crianças que não podem votar nem beber bebidas alcoólicas podem casar-se.
É verdade que a esmagadora maioria dos abusos sexuais acontecem dentro dos lares familiares portugueses. Mas na esmagadora maioria das famílias portuguesas há proteção, carinho, amor e cuidado com as crianças. Uma família protege, família ama, cuida, alimenta o corpo mas também os sonhos e o coração. Na família aprendem-se coisas básicas como a partilha, a responsabilidade, o amor, a entrega, o sacrifício, o respeito, a escuta e tantas outras coisas.
Em novembro, passam 31 anos desde que a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança foi subscrita por 140 países. Um dia que tem sido aproveitado, em Portugal, pela
Mundos de Vida para o Dia do Pijama e sensibilizar todos para o «direito de todas as crianças a crescerem numa família».
Em
2018, havia quase 10 mil crianças retiradas às famílias. Numa casa com muitas crianças, por mais profissionais e atentos que estejam os responsáveis, não é a mesma coisa do que estar numa casa familiar. Das crianças retiradas às famílias, pelas mais diversas razões, a esmagadora maioria está em centros, quando o defendido é que até aos seis anos estejam em acolhimento familiar.
Todas estas crianças retiradas às famílias, as 200 por ano que se casam, as centenas que vivem em risco na sua família, têm nomes, rostos, sonhos, futuro. E, no entanto, permanecem invisíveis aos nossos olhos. Parece que não existem. Não nos lembramos delas a não ser quando acontece uma desgraça e surgem nas notícias pelas piores razões. Que fazer? Como estar mais alerta para situações deste género que se passam à nossa volta? Como ajudar estas crianças? Se me costuma ler, já sabe que faço muitas perguntas. Tenho sempre mais perguntas do que respostas. Talvez seja “defeito” de jornalista ou então é de um coração desassossegado. Quando abrimos os olhos e o coração ao que nos rodeia, não podemos ficar indiferentes. «Que é feito do teu irmão?»