Josianne Gauthier é a secretária-geral da CIDSE (Rede internacional de organizações católicas para o desenvolvimento), e começou as visitas aos membros da plataforma por Portugal, onde esteve a conhecer a Fundação Fé e Cooperação (FEC), organização não-governamental da Igreja portuguesa, e o seu trabalho, que classifica de excelente, apesar de ser uma das organizações mais pequenas da plataforma.
Depois de um período assistencialista, e outro de “ensinar a pescar”, como é que agora devemos olhar para o Desenvolvimento?
Acho muito importante olharmos para o caminho feito até aqui. O conceito de Desenvolvimento não nasceu do nada, vem de uma história, do trabalho missionário, de valores que pretendiam melhorar a qualidade de vida das pessoas. Podemos hoje olhar para trás e perceber que muita coisa foi mal feita, mas a verdade é que, em muitos casos, as pessoas tinham um desejo sincero de fazer o Bem.
Outro problema é o facto de ligarmos Desenvolvimento ao crescimento económico, como se fosse a única saída para retirar as pessoas da pobreza. Claro que quando olhamos para a pobreza de forma isolada, [o que vemos é] uma falta de condições económicas, mas quando sabemos que a pobreza está ligada a problemas sociais, como exclusão social, política, falta de poder, falta de acesso à educação, então percebemos que o crescimento e o desenvolvimento económico tornam-se numa pequena parte do Desenvolvimento. Repensar o Desenvolvimento implica vê-lo de uma forma mais completa do que fazíamos.
Como é que se trabalha o desenvolvimento em países que estão em guerra e com outras questões?
Não há nada de errado com atos de compaixão que visem ajudar as pessoas no imediato. O desafio está em pensarmos não apenas nas respostas imediatas, mas pensarmos também mais à frente, em como é que esta mão, que ajuda no momento, pode também preparar o contexto para um desenvolvimento a médio e longo prazo. Um dos erros que fizemos no setor da ajuda humanitária foi isolar o problema sem olhar para o contexto. Respondemos com ajuda às vítimas de guerra num conflito, ou às vítimas da fome, como se não tivesse sido causado por questões políticas, ou pela degradação do ambiente, ou pelos conflitos étnicos já existentes.
Como é que conseguem trabalhar com governos de países como a Síria ou o Iraque, e como é que se equilibra isso com o não interferir em demasia para não criar instabilidade?
Há papéis diplomáticos que têm de ser desempenhados por quem de direito, e há os papéis da sociedade civil, que tem um papel muito importante em mobilizar as pessoas e em mostrar-lhes qual é o seu papel em escolher. Nós temos poder sobre o nosso governo, não podemos ser ingénuos e pensar que os nossos governos não influenciam já outros governos. Os conflitos não acontecem por acidente, acontecem porque alguém está a financiar as armas, alguém está a favorecer pessoas nesses países, há interesses nos quais os nossos governos estão envolvidos diretamente, por isso dizer que não nos devemos envolver não faz sentido… estamos todos envolvidos. Reconhecer a nossa responsabilidade nestes problemas é essencial.
Mas ninguém parece querer admitir essa culpa…
Não, e esse é um grande problema, a admissão de responsabilidades. Temos gerações de pessoas que não se sentem responsáveis nem por si nem pelos outros, e isso é uma forma muito estranha de comportamento que parece estar a espalhar-se. O que podemos fazer como ONG e sociedade é que há outras formas de nos relacionarmos como seres humanos para além da busca incessante de poder. Podemos trazer histórias de esperança, de outros modos de vida…
Tem havido registos de abusos da parte de ONG grandes no terreno. Como é que a CIDSE está a olhar para isto?
Estamos muito preocupados. Infelizmente, é o resultado da existência humana. Sempre que as pessoas têm poder, podem abusar dele. E mesmo no terreno, em que se está a tentar fazer o Bem, há pessoas que abusam do seu poder. Quando estas histórias surgem é importante reagir depressa e não apenas denunciar, mas ter procedimentos para detetar estas situações, denunciá-las e oferecer uma voz aos que sofrem. A nossa rede está a trabalhar bem para perceber se os nossos procedimentos estão a funcionar, se são fortes o suficiente, se os podemos melhorar para que isto nunca aconteça, ou, se acontecer, possamos detetar e punir rapidamente.
Mas estar presente em instituições como a Igreja ou ONG é pior...
É mais doloroso ainda. Nós temos uma mensagem de Bem, em que as pessoas devem encorajar o oposto dos abusos, ou seja, a solidariedade e o respeito. É mais doloroso quando os casos surgem aqui, e por isso é mais importante reconhecê-los, denunciá-los e resolvê-los, assumindo responsabilidades. Cada caso é diferente, mas uma das consequências do mundo das ONG é estas verem-se obrigadas a trabalhar como se fossem uma empresa. Para poderem sobreviver, arranjar fundos, entregar relatórios e serem muito rápidas nos seus programas esquecem que trabalhar pelo desenvolvimento demora tempo, pede muitas pessoas e exige que se criem longas e estáveis relações. Algumas organizações já admitiram que em alguns casos se viram obrigadas a contratar gente muito depressa para conseguir arrancar com os projetos e gastar o dinheiro disponível dentro dos timings definidos. Estavam muito preocupadas com a eficiência e escapou-lhes a parte humana deste trabalho.
Porque é que as mudanças demoram tanto tempo a ser feitas?
(risos) Bom, porque as pessoas no poder não querem perder o poder e os privilégios que têm. Estão enganadas a pensar que é isso que as faz felizes, e não conhecem mais nada. É uma experiência muito humilde reconhecer o quão privilegiados somos, e tentar fazer algo sobre isso. Nós cometemos esta injustiça pela exploração de recursos, a divisão de poder, e é esse modelo de Desenvolvimento em que estamos presos, e temos de sair dele e começar de novo, voltar às bases, e reconhecer que, se estivermos a promover a dignidade humana, verdadeira solidariedade, isso significa que algumas pessoas têm de perder poder, devolvê-lo a quem não o tem, redistribuir de forma diferente e mudar o estilo de vida.
Pode ler toda a entrevista na edição de abril da sua revista Família Cristã.
Entrevista e fotos: Ricardo Perna
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