Precisa de ajuda?
Faça aqui a sua pesquisa
«As pessoas têm medo do discernimento»
15.05.2018
Presidente do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, o cardeal Kevin Farrell está muito atento a tudo o que diz respeito à família. Da Amoris laetitia (AL), diz que está a ser implementada, embora aponte desafios que ainda não foram ultrapassados no apoio aos jovens casais.

 
Passaram dois anos desde a publicação da AL. Acha que já foi, por um lado, aceite por toda a gente, e, por outro, implementada pela Igreja?
Eu acredito que uma vasta maioria da Igreja não apenas aceitou, como implementou a AL. Diria que os que ainda não implementaram ou exprimem algumas preocupações sobre o documento também têm preocupações em relação a muitos outros assuntos. Não é uma questão da AL, a sua oposição vem de outras questões sobre a Igreja e da dificuldade de aceitarem os ensinamentos, não apenas os do Papa Francisco. Há anos surgiu o conceito de “católicos de café”, que escolhem os assuntos em que querem acreditar, e isso ainda hoje existe.
 
“Discernimento” é uma palavra perigosa, na mente de algumas pessoas?
Uma palavra perigosa, sim. Muitas vezes na nossa vida, preferimos que as pessoas nos digam o que temos de fazer, a que horas, e como o devemos fazer. É, talvez, um sentimento de falta de responsabilidade que temos na nossa sociedade sobre a nossa vida e as nossas decisões. Temos medo de tomar decisões, e isso leva-nos a um tipo de ideologia que deseja que esteja tudo escrito em pedra.
 
Acha que as pessoas têm mais medo do discernimento do que propriamente argumentos contra?
Acho que têm muito mais medo do que oposição. A minha experiência pastoral de muitos anos diz-me que as pessoas têm medo do discernimento.
 
Muitas pessoas estão a rejeitar o capítulo VIII, mas como podemos explicar que a AL não vai contra a Doutrina da Igreja, mesmo que possa permitir um discernimento diferente do que estávamos habituados?
Não vai contra o ensinamento da Igreja. Em lado nenhum na AL se pode encontrar nada que seja contraditório com o ensinamento da Igreja estabelecido há muito tempo. Acredito que está a ser dada demasiada ênfase ao capítulo VIII. A AL é um documento que deseja ajudar as pessoas a viverem um verdadeiro casamento cristão, mas limitamo-nos a resumir tudo ao capítulo VIII. Sim, sem dúvida que há muitas dificuldades na vida, e haverá sempre, mas esquecemo-nos de que a maioria das pessoas não está nessa situação. O Papa e os padres sinodais disseram que temos de começar a construir o casamento em bases sólidas, e este documento é uma maneira de o fazermos, se o lermos do capítulo I ao IX.
 
Acompanhar os jovens casais era uma das mais importantes medidas que estavam na AL. Há grupos que o fazem, mas, na verdade, a maioria das paróquias ainda não o faz. Isso é um problema?
Não é um problema, é um desafio para o futuro. Não podemos simplesmente pegar num casal na rua, trazê-lo para a Igreja e dizer a alguém “OK, agora acompanha este casal”. Nada funciona assim. Dou-lhe um exemplo concreto: há anos decidimos que os leigos deveriam ser catequistas nas paróquias, nos EUA. Os padres convidavam quem quisesse para ir dar catequese aos mais novos. Este é o caminho mais rápido para afastar os jovens da Igreja. Porquê? A – Não sabem como ensinar; B – Não compreendem os jovens. Foram jovens uma vez, mas numa outra época. E isso levou a que muitas pessoas abandonassem a Igreja, devido à falta de conhecimentos de quem ensinava. Para acompanharmos casais, as pessoas precisam de ter alguma formação. Precisam da experiência de vida, mas também de algum treino, para saberem como comunicar, como ouvir.
 
Mas isso não é uma coisa para se aplicar de imediato…
Sim, é um processo longo. Espero que muitas conferências episcopais convidem os párocos a escolherem casais e os ajudem a formá-los, para que, mais tarde, possam acompanhar os casais que se casam.
Os padres não são os melhores para ministrar cursos de preparação para o matrimónio. Eu acredito, e muitos dos meus irmãos sacerdotes irão discordar de mim, que não têm credibilidade quando se trata de questões sobre a vida matrimonial, e eu preferiria ver na Igreja casais casados. Tal como agora os jovens querem jovens na Igreja a caminhar com eles. O Santo Padre disse isso mesmo.
 
Esse é outro dos desafios, acompanhar na preparação para o matrimónio…
Sou a primeira pessoa a admitir que os cursos de preparação para o matrimónio (CPM) são a coisa menos atraente, ou pelo dentro do “top 5” das coisas menos atraentes para os jovens na Igreja. Compreendo tudo isso, e é por isso que o Papa convocou dois sínodos, e é o porquê deste documento ter sido escrito. O Papa quis que todas as pessoas se envolvessem nesta questão e começassem a preparar os casais. Esta preparação começa quando as crianças são batizadas. Os pais têm um papel enorme nesta educação dos casais para o matrimónio.
 
Mas desresponsabilizam-se dessa tarefa?
Sim, obviamente. Muitas vezes, sorrio para mim mesmo perante o contraste de pessoas leigas que, no papel, dizem que querem estar envolvidas na Igreja, mas quando chegamos à prática de trabalhar numa paróquia, procuramos os leigos e eles não estão. Acho que tem que ver com o facto de nunca lhes ter sido permitido, e isso está a mudar gradualmente. Mas leva tempo. Eu sou contra as pessoas que pensam que podemos implementar tudo sobre a AL de um dia para o outro: “OK, tudo o resto é passado, e começamos de novo”. Não é assim tão fácil, precisa de ser implementado gradualmente, precisamos de formar pessoas, ter um sistema a funcionar, etc.

 
Nos países que mais receberam imigrantes, a pastoral familiar deve ser ajustada a esta nova realidade?
Sim, as pessoas precisam de abrir as mentes e os corações para ajudar as pessoas em grandes dificuldades. E faz muito bem a qualquer nação. Quando nos fechamos em nós mesmos, a longo prazo, os sociólogos dirão que as coisas não vão correr bem. Mas acredito que há um terrível sentimento de falta de cuidado das pessoas, e é uma das questões que mais afeta o mundo. Mas foi uma questão que fomos nós que criámos, e temos de a resolver.
 
E queremos resolver?
Se falar com qualquer família que está a arriscar a sua vida para atravessar fronteiras e desertos, depois de a ouvir, ninguém terá coragem de os mandar para trás. Sim, no meio dessas pessoas podem vir alguns criminosos, mas criminosos há em todo o lado. Acredito que as melhores pessoas são as que estão dispostas a arriscar tudo pelo sucesso das suas famílias. São as melhores, as mais inteligentes, e veja a história dos EUA. Polacos, italianos, alemães, irlandeses, e o que é que fizeram? Construíram a melhor nação do mundo (sim, OK, isto pode ser aberto à discussão [risos]), e transformaram-se nos Estados Unidos da América, e muitos mantiveram a sua cultura. E o mesmo acontecerá no mundo de hoje.
 
Entrevista e fotos: Ricardo Perna
Continuar a ler