Na Bélgica, a eutanásia é legal há 15 anos. Carine Brochier, do
Instituto Europeu de Biética, estuda o fenómeno na Europa. Em entrevista à FAMÍLIA CRISTÃ, defende que há banalização da eutanásia e que se caminha para a «eutanásia a pedido».
– O que está em causa, em termos éticos, com a eutanásia?
– É preciso são esquecer que a eutanásia é uma forma de eugenismo social [métodos de aperfeiçoamento da raça humana através de técnicas de seleção artificial-
Infopedia]. Mas numa forma muito dissimulada, porque nos dizem que é a pessoa ela própria que pede a alguém que lhe provoque a morte.
Não nos enganemos. Em que ambiente social vivem os doentes? As suas dores são tidas em conta ? A sua família está com eles ou deixa-os na sua solidão? O fim da vida e o acompanhamento dos doentes é assunto de cada um. Se nos demitimos porque estamos «muito ocupados», nós deixamos os mais frágeis cair na armadilha de pedir a morte. Os mais fortes, aqueles que estão de boa saúde, decidem por omissão eliminar os mais frágeis. Uma sociedade que não se mobiliza pelos mais frágeis mas autoriza o seu pedido de morrer é uma sociedade eugenista. Para contrariar isto, temos de descobrir em conjunto uma ética da vulnerabilidade. A vida é frágil, ela é precisa, ela permanece inestimável até ao último olhar da pessoa que nos acompanha.
Lei «aproxima-nos mais da eutanásia a pedido»
– Na Bélgica, a legalização de eutanásia já fez quinze anos. Qual a situação? Houve banalização?
– Em 14 anos de existência, houve 12.726 eutanásias oficiais. É muito interpelante porque, originalmente, a eutanásia não deveria praticar-se senão a título excecional, nas condições muito restritivas que o legislador estabeleceu. Mas com a prática, verificamos que os termos utilizados pela lei permitem uma interpretação mais vasta. A Comissão de avaliação reconhece e sublinha que o sofrimento é uma noção eminentemente pessoal e torna o paciente único juiz da sua intensidade e de determinar se, a seus olhos, ela é ou não suportável.Contatamos hoje em dia a que ponto não conseguimos controlar as «condições estritas» de aplicação da lei. É também isto que explica que os pedidos outrora julgados como não podendo em algum caso ser aceites sejam hoje aceites pela Comissão encarregue do controlo da lei como também por um bom número de médicos e da maioria dos cidadãos belgas.
Numa palavra, o que pode e deve ser denunciar com força é a banalização do ato da eutanásia. Esta lei, que contém em si mesma o gérmen da deriva por utilizar qualificativos vagos ou subjetivos, aproxima-nos cada vez mais da eutanásia a pedido. Não se diz tantas vezes que a oferta é criada pela procura?
– Porque fala em eutanásias legais? Há eutanásias ilegais?
– A eutanásia clandestina mantém-se e aumentou. Com efeito, os médicos que as praticam autorizam-se certas irregularidades, porque graças à lei, não serão incomodados. Tornaram-se laxistas. Isto indica a que ponto um trabalho de mentalidade é urgente : se o paciente não se inscreve no quadro legal, alguns médicos aventuram-se a praticá-la apesar de tudo. Mais inquietante ainda, delegam o ato de eutanásia às enfermeiras. Na lei, está muito claro que é o médico quem deve injetar o cocktail letal. A Comissão Eutanásia exerce o seu controlo unicamente
a posteriori.
«A mentalidade eutanásica é real»
– Isso já se vê na eutanásia a pessoas com problemas mentais?
– Com efeito, em dois anos, 124 pessoas sofrendo de «problemas mentais e de comportamento» (depressão, Alzheimer, demência, etc.) foram eutanasiadas. Isto significa que, apesar das suas faculdades mentais alteradas, os médicos aceitam o seu pedido. Associações de psiquiatras belgas e mundiais mobilizaram-se contra. Porquê? Porque as pessoas com doenças mentais e de comportamento não estavam em fase terminal, longe disso. No Instituto Europeu de Bioética, recebemos testemunhos de cuidadores explicando como a família, talvez esgotada, vem pedir a eutanásia para alguém que ficou dependente. Isso sai fora do quadro legal. Nós ouvimos regularmente reações de médicos que não se portam bem. Ouvimos as equipas de cuidadores exprimir o seu mal-estar quando não querem praticar a eutanásia mas cedem à pressão. E mesmo, ousar hoje em dia dizer que a eutanásia é uma má resposta a uma boa pergunta é muito mal visto. Sim, a mentalidade eutanásica é real.
– Há já estudos sobre as pessoas que pedem eutanásia?
– Els Van Wijngaarden publicou uma tese de doutoramento da Universidade de Utrecht. Ela acompanhou várias pessoas idosas pedindo eutanásia e relatou escrupulosamente o que elas exprimiam. Percebe-se que não é forçosamente a solidão dos idosos que provoca o pedido de morrer, mas sobretudo o modo como viveram a sua vida, tendo-a controlada, materialmente confortável, não querendo depender de ninguém. Vendo os seus corpos e capacidades a diminuir, é inconcebível mudar o modo de funcionar. Fecham-se sobre si mesmos, recusam ajuda, rejeitam as famílias e de apreciar as pequenas alegrias, não compreendendo que, mesmo dependentes e frágeis, trazem um outro sentido às relações com os seus próximos. O que me parece novo nesta tese é que as pessoas idosas não querem entrar em relação com os seus próximos. Faz verdadeiramente pensar numa forma de autismo. E, nos Países Baixos e Bélgica, o autismo entra na categoria de doenças para os quais aceitam provocar a morte dos seus pacientes.
«Eutanásia é uma forma de demissão»
– O Instituto Europeu de Bioética está preocupado com a discussão da legalização da eutanásia em Portugal?
– O nosso instituto segue de perto o que se passa em Portugal. É importante que os portugueses compreendam que os países que já “caíram” sob a lei da eutanásia não se portaram bem. A qualidade dos cuidados e o acompanhamento das pessoas fragilizadas pela idade ou pela doença deterioram-se depois da introdução da eutanásia. A sua banalização obscurece enormemente a nossa responsabilidade social de tomar conta das pessoas que nos são próximas. A eutanásia é uma forma de demissão: ela descompromete-nos não só da “especialização” para aligeirar as dores físicas, mas encurrala-nos num individualismo que nos faz perder os momentos únicos e verdadeiros do fim de vida nos nossos familiares e próximos. A morte é um ato para viver em conjunto se possível e de modo natural.O exemplo da Bélgica e dos Países Baixos deve ajudar os outros países, e também Portugal, a resistir.
E nós estamos ao lado de associações em Portugal que se têm mobilizado para informar os cidadãos de Portugal.