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Celibato dos padres: sim ou não, eis a questão
01.06.2016
Desde o início da História da Igreja que o celibato dos religiosos tem sido disciplina aceite, embora criticada. O facto de ser disciplina e não doutrina abre a porta à reflexão sobre a real necessidade do voto de celibato na ordenação sacerdotal. O tema é polémico, e as opiniões dividem-se.
 

«Porque é que os padres não se podem casar?» Esta é uma interrogação tão velha quanto a existência dos próprios padres. Durante os primeiros tempos do Cristianismo, muitas comunidades eram lideradas por homens casados, a quem era pedido que fossem «irrepreensíveis, esposos de uma única mulher, e seus filhos deveriam ter fé e não ser acusados de maus costumes ou desobediência», conforme diz São Paulo a Tito na carta que lhe escreveu. Sabemos ainda pela Bíblia que Pedro tinha uma sogra, e séculos mais tarde surgiram relatos de uma filha. E seria de imaginar que muitos dos que seguiram Jesus, por terem sido chamados em idade mais avançada, já tivessem família constituída. No entanto, a Bíblia também não refere, em qualquer lugar, que essas famílias acompanharam os Apóstolos. «Se Pedro tivesse levado a esposa para Roma, se vivessem como marido e mulher, numa família muito cristã, como é que a tradição ia esquecer o nome da esposa de Pedro? E o mesmo para os outros Apóstolos», questiona D. Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa e membro da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé.

Apesar de a disciplina ser antiga e de remontar aos tempos de Jesus Cristo, também Ele celibatário, o facto é que ao longo da História da Igreja muitos têm pedido para que esta se altere, e muitos a têm defendido com unhas e dentes. Mais recentemente, um congresso do Movimento pelo Celibato Opcional (MOCEOP), uma organização espanhola que congrega muitos sacerdotes que pediram dispensa do voto de celibato e casaram, voltou a insistir nesta questão.

Luis Salgueiro, presidente da FraternitasLuís Salgueiro, presidente da Fraternitas, uma organização que, em Portugal, congrega sacerdotes que pediram dispensa, esteve presente no congresso e explica que o que se pretende é um «amadurecimento» das comunidades e uma «abertura da Igreja a novas realidades, fruto dos sinais dos tempos». «A disciplina que existe deve ser tomada na sua devida consideração. É um elemento importante, mas não é fundamental, porque se a disciplina não ajudar a que o núcleo evangélico seja conhecido, a disciplina torna-se obstáculo, mais uma barreira do que uma ponte», diz este responsável, também ele um sacerdote que pediu a dispensa do voto de celibato e se casou, mantendo no entanto uma vida comunitária e de participação na paróquia.

D. Nuno Brás discorda e aponta outros motivos para justificar esta nova tentativa de alteração da disciplina do celibato. O prelado fala de uma «hipervalorização da dimensão sexual na nossa vida». «A publicidade, a música, os filmes, as notícias, tudo hipervaloriza a dimensão sexual. O que é perigoso, porque se está a hipervalorizar uma dimensão que, sendo importante e essencial, não é tudo. Nós reduzimos tudo na vida à economia e ao sexo. Assim como parece impossível que pessoas ofereçam parte da sua vida voluntariamente sem ganhar nada, há quem ache impossível uma pessoa ser celibatária, porque “é impossível resistir” a esta dimensão sexual. Mas é importante percebermos que assim como há gente que faz verdadeiro voluntariado, também há quem faz verdadeiro celibato», explica, acrescentando que «lamenta» que alguns antigos sacerdotes que pediram a dispensa tenham estes «motivos de batalha», que caracteriza como «autojustificações pessoais de pessoas que foram ordenadas e que a um dado momento pediram a dispensa do celibato».

Luís Salgueiro, no entanto, diz não pretender nenhuma batalha. «Eu não me sinto do lado de lá, eu sou Igreja como tantos outros homens e mulheres na mesma situação, e é uma reflexão nossa, que só se faz com caminho e abertura ao mesmo Evangelho, com um respeito muito grande pela doutrina ortodoxa da Igreja Católica, e pela atenção concreta aos sinais concretos dos tempos, para daí retirar consequências. Não é olharmos para os sinais dos tempos e dizermos que os tempos estão errados, não é o tempo que está errado, mas o Evangelho que não tem a adequada concretização por vários obstáculos», argumenta.
Em Espanha, há casos de sacerdotes que, com o conhecimento e a anuência do bispo da sua diocese, se uniram com mulheres e mantiveram o ministério sacerdotal. Um exemplo é Julio Pinillos, da arquidiocese de Madrid. «Estou casado com Deus, com a minha mulher e com a minha comunidade. E procuro ser-lhes fiel cada dia. Quando celebro a Eucaristia, celebro a alegria do Evangelho com um povo que crê nele», afirmou este sacerdote numa entrevista ao jornal espanhol El Mundo.

D. Ilídio Leandro, bispo de ViseuEm paralelo com esta questão, também tem sido levantada a possibilidade da ordenação de homens casados, como já existiu antes na história da Igreja. «Isto não é contra a fé nem contra a doutrina, pelo que nada obsta contra essa possibilidade. Seria uma evolução do pensamento da Igreja, que não colidia com nenhum dogma ou verdade fundamental, seria uma norma prática que respondia às situações concretas existentes atualmente», defende D. Ilídio Leandro, bispo de Viseu e membro da Comissão Episcopal das Vocações e Ministérios, que acrescenta não ser também contra o regresso de sacerdotes que pediram dispensa do voto de celibato, se fosse esse o «entendimento da Igreja após uma reflexão profunda sobre o assunto», embora adiante que, nesta altura, «a proposta do celibato opcional é um processo que não está ainda muito clarificado na Igreja do Ocidente». O caminho de consenso é o único caminho possível para o prelado, que não concorda que o assunto seja «motivo de divisão». «Todas as decisões sobre os padres casados dependem das conclusões da Igreja na sua orientação superior e com uma reflexão que, embora se tenha vindo a fazer há algum tempo, não encontrou ainda a forma e o momento apropriado para a sua implementação», diz.

Luís Salgueiro defende o regresso dos sacerdotes que, tendo pedido a dispensa, se sintam em condições para abraçar ambos os ministérios para dar resposta a comunidades que estejam sem apoio direto de um sacerdote. «O que é melhor para todos: um presbítero celibatário andar a correr para celebrar seis missas num fim de semana e chegar completamente estafado, ou uma situação em que um diácono permanente faz a celebração com uma serenidade maior, que acompanha mais a comunidade? Eu vejo isso com bons olhos», diz, defendendo que se esses diáconos, que são homens casados, fossem ordenados sacerdotes, as comunidades ficariam bem mais «acompanhadas».

D. Ilídio também considera que os «primeiros passos» seriam em «determinados locais, determinadas comunidades», onde a falta de um sacerdote fosse mais evidente. «A nível da doutrina, nada obsta que um leigo numa determinada zona presida a celebrações da palavra, desde que tenha uma vida recomendada. Nada obsta também que esse homem possa ser ordenado sacerdote para responder a essa carência de homens ordenados na regulamentação jurídica atual. Penso que esses passos poderiam vir muito em breve, porque a Igreja, mesmo a nível dos Papa e de outras instâncias, vai fazendo o seu caminho, observando e interrogando-se sobre como responder a essas comunidades que não têm o sacerdote para a celebração da Eucaristia, para a administração dos sacramentos, e alguma resposta tem de ser dada. E esse é um pequeno passo que faltará dar, o da ordenação de homens casados», prevê o prelado.

D. Nuno Brás, membro da Comissão Episcopal da Doutrina da FéD. Nuno Brás não acredita que esta seja a resposta para essas comunidades, e dá como exemplo outras confissões cristãs, como os anglicanos e luteranos, onde é permitido a homens casados serem ordenados presbíteros. «A questão de permitir a ordenação de homens casados não é solução para a falta de vocações. Olhamos para os anglicanos e os luteranos e não é por causa disso que as comunidades anglicanas e luteranas estão mais vivas e não há falta de ministros. Essa não é a questão, a questão passa por revalorizar o celibato, revalorizar aquilo que é a escuta da vontade de Deus», afirma. Apesar disso, o bispo auxiliar de Lisboa também não vê incompatibilidades com a ordenação de homens casados, apesar de achar que a disciplina, por vir do próprio Jesus, não pode «simplesmente desaparecer». «Existe uma tradição ininterrupta que vem de Jesus Cristo, não é simplesmente uma coisa definida pelos homens, que relaciona o ministério apostólico e o celibato», argumenta.

Em todos os casos, esta seria uma vertente a aplicar apenas a sacerdotes diocesanos. «Os religiosos têm um carisma de vida comunitária e, per se, isso tem um valor muito grande, porque há um apoio. A vida comunitária tem os seus desafios, mas é por aí que se faz o caminho mais autêntico do Evangelho», considera Luís Salgueiro. Mas mesmo no caso dos sacerdotes diocesanos, isso implicaria uma gestão de vida sacerdotal e familiar que colocaria restrições à missão. «Penso que fazia sentido criar duas classes de sacerdotes, duas maneiras de estar e de servir, tendo em conta o Evangelho. Os carismas que o Espírito Santo concede às pessoas são para isso, para colocar ao serviço. O celibato é um dom, mas o matrimónio também, não casa quem não serve para o celibato e não vai para o celibato quem não tem perfil para casar. Não pode ser colocado desta forma, porque podem as duas conviver», defende o presidente da Fraternitas.

Com todas estas questões em aberto, é importante relembrar que Bento XVI criou uma estrutura canónica que permite acolher sacerdotes anglicanos casados e com família, que mantêm a sua família e o ministério de sacerdotes, agora católicos. Isto vem relançar a questão da possibilidade de homens casados serem ordenados presbíteros, mesmo dentro da Igreja Católica, mas não abre mais a porta ao regresso ao ministério daqueles que pediram a dispensa do voto de celibato, uma realidade que se deverá manter inalterada nos próximos tempos.
 
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna e Catholic Press Photo
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