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Centros de saúde «não têm capacidade de resposta para o próximo outono-inverno»
23.10.2020
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Rui Nogueira, afirmou à Família Cristã que a aproximação do inverno e a falta de uma «resposta organizada» podem conduzir a um período de caos no setor básico dos serviços de saúde, os centros de saúde.


«Estamos a olhar para um cenário de ter de voltar a fechar as atividades assistenciais regulares com doentes de todas as outras coisas, para atendermos doentes de infeções respiratórias do inverno no dobro ou triplo do habitual, e não temos capacidade de resposta», explica Rui Nogueira, que acrescenta que a situação pode ser mais grave que no início da pandemia. «Enquanto que nessa altura estávamos a vir do inverno, e aconteceu esta pandemia, agora estamos a caminhar para o inverno, e vamos ter as infeções habituais do inverno», às quais se junta a «exaustão» dos profissionais de saúde, muitos que optaram pela reforma durante este tempo e um menor número de recursos. «Em relação aos médicos, temos uma situação que é mais difícil que a que tínhamos em Março-Abril. Nessa altura, tínhamos médicos que tinham concluído o internato, médicos especialistas que ficaram a aguardar concurso e estavam ao serviço. Esse concurso decorreu, está agora a finalizar, e pelo que se vai sabendo, temo que tenhamos perdido 1/3 dos candidatos, médicos que tínhamos disponíveis em Março e que deixámos de ter no SNS» porque o concurso não contratará o mesmo número de médicos que estavam ao serviço naquela altura.

Os centros de saúde têm a responsabilidade de fazer o acompanhamento diário de todos os doentes infetados com COVID, para além de manterem todas as funções antes início da pandemia. «Temos de seguir os doentes COVID numa plataforma específica, onde seguimos diariamente os casos positivos que têm de estar em isolamento. Estamos numa expetativa diária de saber como evolui cada um dos casos, para perceber se temos de ter uma intervenção mais dirigida e logo de início, porque esta doença tem uma particularidade, que é ela evolui muito rapidamente, agrava muito rapidamente, e temos de estar muito atentos a este eventual agravamento. Desde abril, mais de 90% dos casos ativos estão em vigilância pelos médicos de família. Atualmente, são 97%. São telefonemas diários para avaliar a evolução da situação e perceber se é necessário chamar para uma consulta ou enviar para o hospital, se houver um agravamento significativo. Esta é a dimensão do que estamos a falar, com telefonemas diários para os doentes», mostra Rui Nogueira.

Rui Nogueira, presidente da APMGFUma dimensão que leva a que o «universo» de centros de saúde fique sem «capacidade de resposta». «O universo não tem capacidade de resposta para o próximo outono-inverno. Temos 900 unidades no país. A última vez que fizemos o levantamento tínhamos 82 destas 900 em défice significativo de recursos, nomeadamente médicos [antes da pandemia]. Agora a situação é em todo o lado em que há mais pessoas», sustenta, acrescentando que «vamos ter um problema de afluência e temos urgentemente de nos preparar para dar resposta ao que são as necessidades dos nossos doentes». O problema, diz, é que «tarda em haver essa resposta organizada, em haver orientações específicas para dar resposta às necessidades de organização nos centros de saúde».

Esta acumulação de tarefas levou a que os doentes não COVID fossem deixados para trás, denuncia este responsável. «Tivemos a outra face da medalha, que são todos os outros doentes que deixámos de ver, de seguir, de ter condições para seguir normalmente, e hoje estamos muito atrasados com o seguimento destes doentes», reconhece.

Para que o trabalho fosse mais eficaz, e permitisse não perder o acompanhamento também de doentes não COVID, era necessário «retirar com determinação e orientação, de uma forma muito explícita, todas as atividades que não são necessárias, ou que podem ser adiadas, ou que podem ser feitas por outros profissionais. Desnecessárias de todo são declarações médicas para as escolas. As cartas de condução, por exemplo, exames médicos de vigilância de crianças de 3 ou 4 anos que saibamos que não têm possibilidade de ter problemas» enumera o presidente da APMGF.

Confinamento evitou número elevado de mortes
Sobre a pandemia, Rui Nogueira não tem dúvidas em considerar que o confinamento foi útil no combate à pandemia, afirmando que «as medidas tomadas evitaram um número muito grande de mortes». O Sars-Cov2 « é um vírus agressivo, para o qual não há tratamento, como também não há para os outros, mas tem esta capacidade de transmissão rapidíssima e muito fácil, e portanto há uma medida que tem de ser muito cuidadosa de todos, que é o isolamento e o distanciamento social». «Esta doença tem uma particularidade, que é ela evolui muito rapidamente, agrava muito rapidamente, e temos de estar muito atentos a este eventual agravamento», avisa.

Corroborando esta opinião, um estudo efetuado pela Escola Nacional de Saúde Pública divulgado em maio defende que «o número de doentes graves com Covid-19 internados nos Cuidados Intensivos seria o triplo na primeira quinzena de abril sem o confinamento imposto pelo Governo em 19 de março.«Sem o lockdown [confinamento] decretado pelo Governo em meados de março de 2020, as unidades de cuidados intensivos dos hospitais do SNS teriam tido que atender, entre 1 e 15 de abril, uma avalanche de 748 doentes graves com Covid-19, três vezes mais do que os 229 que precisaram desse tipo de cuidados», lê-se na análise divulgada esta quinta-feira pela ENSP, da Universidade Nova de Lisboa, citada pelo Observador.

De acordo com o estudo, as medidas de confinamento contribuíram para que, nos primeiros quinze dias de abril, Portugal tivesse registado menos 5.568 casos (-25%) de Covid-19, menos 146 mortes (-25%), e menos 519 (-69%) internamentos em unidades de cuidados intensivos do que seria de esperar se não tivesse sido decretado o confinamento.

Por isso, o presidente da APMGF considera que «as pessoas mais velhas têm de ser muito protegidas, com um cuidado suplementar no uso de máscara, distanciamento e isolamento de casos», adverte. Para além disso, e porque «há muitos assintomáticos, temos de ser muito cuidadosos porque não podemos contactar com os que estão em risco», o que nos leva aos cuidados da população. «Quando se ouvem aquelas notícias de um surto num casamento ou numa festa, eu pergunto: onde é que não perceberam que não podem estar mais de 10 pessoas juntas [a entrevista foi feita antes do anúncio do estado de calamidade]? Qual foi o bocadinho que não deu para perceber? Há dúvidas sobre o que é 10? Se não pode haver mais de 10 pessoas juntas, como é que há um casamento com centenas de pessoas, sem estarem próximas umas das outras. Como? E isto está a acontecer, e não pode acontecer», exclama.

Rui Nogueira vai mais longe nas críticas e defende que «é mais fácil evitar uma festa com dezenas de pessoas do que organizar os serviços de saúde, cancelar intervenções, adiar consultas, exames... é muito mais fácil evitar a festa, adia-se, faz-se na Primavera, mas agora não dá mesmo», até porque, garante, «sempre que este vírus encontra pessoas juntas, ele ataca. É muito mais fácil encontrar casos quando estão pessoas juntas».
 
Texto: Ricardo Perna
Foto: Unsplash e APMGF
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