A diocese de Aveiro
publicou um documento de nome «ACOMPANHAR, DISCERNIR, INTEGRAR - Critérios de orientação pastoral para aplicação do capítulo VIII da Exortação Apostólica
Amoris Laetitia», no qual procura contextualizar e uniformizar a aplicação do capítulo VIII da
Amoris Laetitia, a exortação pós-sinodal do Papa Francisco, explicando porque considera que o se trata de um «aprofundamento da doutrina», e não uma rutura com a mesma.
O documento é «instrumento e guia oficial, na Diocese de Aveiro, no complexo apostolado de integração eclesial de quantos, contraído o Matrimónio à face da Igreja e, mediante o divórcio, instauraram nova união, alimentando contudo legítimos anseios de se virem a incorporar na prática normal da vida cristã», conforme explica a norma introdutória da autoria de D. António Moiteiro, bispo da diocese.
Na nota introdutória, pode ainda ler-se que «a possibilidade de acesso aos sacramentos da Confissão e da Eucaristia, sendo uma decisão do foro interno que pertence a cada um (cf. AL 37), não pode ignorar que está em causa uma realidade objetiva como é a indissolubilidade da aliança contraída no sacramento do Matrimónio», e, por isso, o bispo indica que os processos de discernimento deverão passar pelo «bispo diocesano, ou em quem ele confiar».
O documento descreve um processo muito semelhante ao
proposto em Braga, com um discernimento que «reclama a caridade pastoral do sacerdote que acolhe o fiel, o escuta atentamente e lhe mostra o rosto materno da Igreja, na medida em que aceita a sua reta intenção e o seu bom propósito em iluminar toda a vida com a luz do Evangelho e praticar a caridade», e onde «o sacerdote deve aparecer como pastor e não como “controlador da graça”, porque “a Igreja não é uma alfândega, mas uma casa paterna onde há lugar para todos com a sua vida fatigante” (
Evangelii Gaudium 47)».
Aprofundamento da doutrina ou rutura?
Pedindo que o pastor acentue «o anúncio fundamental, o
kerygma, o anúncio do amor e da ternura de Cristo, que estimule ou renove o encontro pessoal com Jesus Cristo vivo (cf. AL 58) e não o aspeto jurídico ou moral da lei», este documento não se furta à justificação que tanta polémica tem dado desde que saiu a exortação do Papa, e explica como «é que as diretivas consagradas no capítulo VIII da Exortação Apostólica
Amoris laetitia e que integram o processo de discernimento pessoal e pastoral dos católicos divorciados e constituídos em nova união com vista a serem admitidos aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia e, porventura a outras atividades eclesiais, é um aprofundamento e não inovação que vem proporcionar uma maior dimensão equitativa à Disciplina Canónica».
O documento da diocese de Aveiro começa então por indicar que, «nas crises conjugais, nas quais a debilitação da comunidade de vida e de amor degenerou em rutura e deu lugar a outra ligação de substituição, a imputação de responsabilidades diversifica-se numa variedade de graus de culpa, a ponto de cada caso ser um caso específico».
Por isso, o processo de discernimento que agora é sugerido «não força o Direito Canónico como inovação ao mesmo, mas até lhe garante uma equidade redundante em aprofundamento». O cânone 204 estabelece que «o Povo de Deus “subsiste na Igreja católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele”», sob uma perspetiva «triforma de participação no múnus de Cristo». «Os que foram incorporados em Cristo pelo batismo e tal incorporação, por força do Espírito, consistiu numa participação ontológica do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo. Pela participação no múnus sacerdotal, todos os fiéis cristãos recebem um sacerdócio comum pelo qual participam na oblação da Eucaristia, exercem-no na receção dos sacramentos, na oração e na ação de graças, com o testemunho de uma vida santa e caridade operante; pela participação na missão profética, dão testemunho da fé, exercem um apostolado pessoal não hierárquico, difundem e defendem a doutrina da Igreja; pela participação no múnus real, santificam as realidades terrestres à semelhança de fermento na massa», pode ler-se no documento, que cita a Lumen Gentium, nos seus pontos 10 a 12.
Neste sentido, os fiéis cooperam «a seu modo» nessa vocação. Por isso, diz o documento, «pela participação no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo e pela vocação daí consequente, os fiéis cristãos foram agraciados com uma dignidade específica, donde flui nuclearmente um património de obrigações e direitos fundamentais daquela personalidade de serem “filhos no Filho”, enuncia um aforismo teológico corrente. São obrigações e direitos que se configuram em objetos de justiça na Igreja e, por isso, urge classificá-los de fundamentais, invioláveis e inauferíveis», justifica, citando um documento da associação de canonistas espanhóis, da autoria de A. Pérez Ramos.
Deste direito há apenas três situações que o podem suspender, embora nunca anular, diz o documento: «a heresia ou negação pertinaz, depois de recebido o batismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica; a apostasia ou repúdio total da fé cristã; cisma, isto é, a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou a comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos».
A juntar a esta questão, os autores deste documento indicam o cânone 223 do Código de Direito Canónico (CDC), que diz que «os fiéis têm o direito de receber dos sagrados pastores os auxílios hauridos dos bens espirituais da Igreja, sobretudo da palavra de Deus e dos sacramentos». «Ora os fiéis cristãos divorciados e em nova união não perderam esse direito fundamental, nem caíram em heresia, apostasia ou cisma por que possam estar privados do exercício do mesmo, encontrando-se embora numa situação de irregularidade canónica», indica o documento.
Finalmente, acrescentam que «o CDC, ao descrever, no c. 529 §1, as funções que integram o ofício do pároco, nomeia entre outras a de “acompanhar, com particular diligência, os paroquianos que padecem dificuldades especiais”; torna-se praticamente unânime a interpretação que, dentre os que se encontram nessas “dificuldades especiais”, se devem destacar as famílias em crise em virtude de terem rompido a unidade conjugal», e citam aqui um documento do V Congresso Internacional de Direito Canónico, que decorreu em Ottawa, no Canadá, em 1986.
No final do documento, a diocese declara que aguarda «que o processo pessoal e pastoral proposto na Exortação Apostólica seja bem compreendido, assimilado e aprofundado para, na sua aplicação, não se desvirtuar por um rigorismo que o prive de ser resposta da misericórdia divina à fragilidade humana pecadora, ou por um laxismo que entorpeça e vulgarize o ser carácter de ser verdadeira caminhada de conversão da culpa para a reconciliação com a Igreja, Sacramento de Salvação».
Texto e foto: Ricardo Perna
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