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Encíclica «compromete-nos a nós, cristãos, de uma forma particular»
23.03.2023
Eugénia Quaresma é a responsável pela Obra Católica Portuguesa das Migrações (OCPM). Olha para a encíclica como algo de muito «bonita», e aponta a necessidade de que não seja «letra morta», mas antes lida e tornada prática pelas pessoas de todo o mundo.



Que leitura faz da encíclica do Papa?
A primeira leitura que faço é a do título. Parece que foi escrito para a Pastoral das Migrações. Nós temos na Obra Católica este slogan, “uma só família humana”, e Fratelli tutti é como concretizar esta família humana, como viver na prática esta família humana. O Santo Padre vai apontando várias formas de podermos concretizar, enumerar as áreas que precisamos de trabalhar, as zonas sombra, e usa como modelo da Palavra de Deus a parábola do bom Samaritano, que é uma parábola que usamos muito nas migrações, e faz uma leitura faseada, muito pedagógica, que nos ajuda a situar não só pessoalmente, mas também enquanto comunidade e enquanto países e atores de uma sociedade, e também faz críticas à própria Igreja e aos cristãos, e aponta caminhos e soluções para os cristãos. É um documento que nos permite operacionalizar muitas das coisas que vamos rezando pessoalmente e comunitariamente nas eucaristias.

Os migrantes têm um peso grande no documento, sob o ponto de vista do acolhimento, mas também sobre a capacidade dos países desenvolvidos não se envolverem nos países de origem, contribuindo para a saída destas pessoas de lá...
Precisamente. Fala muito nos direitos humanos, e nós nas Pastoral das Migrações falamos muito de dois direitos: o direto a emigrar e o direito a não emigrar, e isto está aqui presente. Se, por um lado, aponta as causas das migrações, e não tão só causas naturais, mas muitas que são alheias a estes povos que são forçados a deslocar-se, por outro lado, também nos fala que as pessoas têm o direito a não emigrar. E aqui lembro-me claramente das ODS e deste compromisso que houve de todas as nações em se envolverem para que as pessoas não sejam forçadas a emigrar. Os 17 ODS, a Agenda 2030, se fossem postas em prática, com certeza que as migrações teriam um outro sentido.

O problema estará em tornar isto possível...
Mas é possível. Há aqui uma reflexão muito bonita. Se há quem faça uma leitura muito política e ponha o enfoque nos estados e nos governantes, há aqui uma leitura onde também o cidadão comum é um ator político. Há uma corresponsabilidade, e é possível fazer qualquer coisa. Também nos fala do modo como o ser humano se desenvolve e humaniza. Nós não construímos sem a relação com os outros, com o diferente, e a Pastoral das Migrações traz-nos isto. Quando alguém vem de fora, ou quando alguém parte e chega a outro lugar, vive esta experiência de se sentir diferente, e o Santo Padre sublinha várias vezes, do início ao fim, que não crescemos sem o diálogo com o diferente, e esta é uma tónica muito importante para a Pastoral das Migrações, que é uma pastoral de diálogo com ouras nacionalidades, outras religiões, outras culturas, o diálogo ecuménico e tudo isto é-nos muito cara e faz parte da agenda da Pastoral das Migrações. É bonita esta visão, a importância desta identidade que não se constrói sem se relacionar com os outros. É uma resposta aos nacionalismos que se vão vendo, que não precisamos de ter medo, não precisamos de nos fechar. Ajuda-nos a desconstruir e a perceber como é que estes fechamentos se formam e como podemos ir combatendo, qual é a forma de ir combatendo este medo que pode ser básico, mas que temos de ultrapassar.

A tónica no diálogo e encontro colocam um peso grande nas ações individuais de cada um...
E compromete-nos a nós, cristãos, de uma forma particular. Logo no segundo capítulo, a raiz bíblica que vai do Antigo ao Novo Testamento de como olhar e lidar com aquilo que é diferente e estranho para nós. E a nossa forma de agir deve ser sempre independente do que vamos na política, deve ser sempre a procura do bem, a identidade do católico cristão implica relacionar-se com todos e pôr o amor em prática não é compatível com determinados discursos, não é compatível com determinadas posturas, e isto está muito sublinhado e vincado aqui neste documento.

O que será preciso fazer, olhando para o papel de quem lidera estruturas na Igreja, para garantir que esta mensagem passa para todos e é colocada em prática por todos?
Há aqui algumas sugestões. Criar espaços de diálogo, de encontro. No fundo, estamos na fase da operacionalização. Muito daquilo que o Santo Padre escreve neste documento já sabemos de trás, há outros papas, bispos e conferências episcopais, é bonito ver esta interligação com outros documentos da Igreja. A grande novidade é pôr estas coisas em prática, é o compromisso. E aquilo que nós gostamos de ler é que vai havendo soluções, é iluminado o caminho. Uma das coisas que sublinhei várias vezes foi a criação destes espaços de encontro e diálogo, criar espaços de reconciliação, que é outra tónica muito bonita, nós não conseguimos viver uns com os outros sem que haja tensões, conflitos, mas não ter medo e criar espaços, daí a importância do diálogo, para resolver as nossas tensões de uma forma pacífica, sem causar mais danos. No passado, sabemos que as guerras foram a resposta para resolução de conflitos, agora já não podemos dizer isto, porque não faz sentido. Muitas das migrações forçadas têm origens nas guerras, e dizem claramente que o conflito armado não é solução. A maneira macro é deixar de financiar as guerras, e temos países da Europa a financiar guerras noutros continentes...

E a ousada proposta de criação de um Fundo Mundial com o dinheiro que se gastaria em armamento...
Exatamente, e combater este crime que é a fome. E não é à toa que erradicar a fome é o primeiro ODS. E temos capacidade e conhecimento científico para erradicar a fome, e de uma forma ética, não de uma forma qualquer. Estes alertas são muito significativos. A questão da ética, do cuidado com o outro, este outro que podemos ser nós, porque como nos lembra a parábola do Bom Samaritano, às vezes somos nós essa pessoa caída e ferida, que precisa de cuidado.

A Laudato si foi uma encíclica muito bem aceite em todo o mundo não crente também. Parece-lhe que esta encíclica terá a mesma aceitação?
Não podemos deixar que isto fique como letra morta. Temos de assumir este documento e pô-lo em prática, divulgá-lo o mais possível, e o Vaticano tem feito isso, com vídeos e assim, mas depois termos a ousadia de criarmos estes espaços de encontro, de diálogo, de reconciliação. Isto é o que podemos fazer aqui, nas pequenas comunidades, e a nível pessoal ter a certeza que, enquanto cristãos, não nos fechamos sobre nós próprios, mas fazemos este percurso de amor e encontro com aqueles que nos rodeiam e são próximos. Outra força muito bonita neste documento é o valor do Amor, que também encontrávamos na Amoris laetitia. Mas aqui é um outro nível, percebemos o que é amar com a tónica na gratuidade, no amor que não é violento, que não espera nada em troca, e sabemos que é Amor quando é assim. O Amor como resposta à violência, e vivemos num mundo que tem vários tipos de violência, e há aqui uma denúncia muito grande à violência estrutural, e como ela vai destruindo, uma violência estrutural que às vezes tem raízes históricas, e que só conseguimos reparar agora porque agora temos uma outra consciência.


Mas é importante reconhecer estas feridas que foram causadas no passado?
É importante reconhecer as políticas que puseram as pessoas à margem e como é que pomos as pessoas a sair dessa marginalidade, e pensar como é que as opções políticas podem destruir uma autoestima. É muito fácil destruir a pessoas baixando-lhe a autoestima. Cuidar da pessoa, valorizar a dignidade da pessoa, fazer justiça são formas de operacionalizar isto. Pensando agora nas migrações, e em coisas que estão ao nosso alcance, a exploração que por vezes é feita na habitação aos migrantes, são feitas exigências que não são feitas ao cidadão nacional, e isto passa pelo cidadão comum, que acha que pode explorar quem vem de outra terra e precisa de uma habitação. Pedir o preço justo é uma forma de reconhecer esta fraternidade. Há coisas que estão ao nosso alcance. O Papa fala da vergonha que é o tráfico de seres humanos, e subjacente a isto está esta mentalidade que explora, que tem de ser combatida desde a educação. Este documento mostra como os diferentes setores da Igreja estão interligados. Fala-nos da educação, onde temos a catequese e a EMRC, da pastoral dos leigos, da cultura, da comunicação social, esta interligação que existe nos setores da Igreja e que bom seria se conseguíssemos ver esta interligação e trabalharmos mais em conjunto.
 
Entrevista e fotos: Ricardo Perna
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