Os funerais são sempre alturas tristes. Quando uma pessoa parte, deixa na Terra um corpo que precisa de ser enterrado, segundo ritos que remontam aos primórdios da humanidade. É costume que essa despedida do corpo seja acompanhada por amigos, familiares e conhecidos. Em alguns casos, no entanto, isso não acontece, e não há ninguém para acompanhar o corpo com o sacerdote. É nessas alturas que surgem grupos como a Irmandade de São Roque, que tem uma equipa de voluntários e irmãos que se dedicam a acompanhar à última morada aqueles que não têm ninguém. Há muitos anos que a Santa Casa de Misericórdia assegurava este serviço, por via de uma irmã, mas há cerca de cinco anos a Irmandade assumiu este projeto a 100%.

Uma dessas pessoas que acompanha os corpos até à sua última morada é António Balcão dos Reis, de 77 anos. «Eu aderi a esta obra de misericórdia porque a todos nós já aconteceu estar na rua e ver uma carreta a passar sem ninguém atrás, às vezes sem uma flor sequer. Isto mexe connosco, e a mim tocou-me. Quando me reformei, colocaram-me esta questão, e eu disse que também queria ir. Se eu sentia isso, era lógico tentar impedir que essa situação se reproduzisse», conta-nos. Outras pessoas, conta, têm motivações diferentes. «Alguns não conseguiram enterrar os seus familiares, pois o corpo só foi descoberto anos mais tarde, outros já enterraram filhos e sentem-se realizados acompanhando estes que ninguém quer… as motivações dependem de cada um, e as recompensas que cada um retira de fazer esta obra de misericórdia são também muito pessoais», explica.
António ainda se lembra do primeiro funeral que acompanhou e recorda-o com a voz embargada pela emoção. «Lembro-me muito bem do primeiro funeral a que fui. Foi um dos que mais me impressionou. Foi um funeral em que não estava previsto aparecer ninguém, e nós fomos. Mas à última da hora vimos aparecer um pequeno grupo de trabalhadores das obras. O falecido era um imigrante, penso que da Ucrânia, que tinha estado nas obras durante pouco tempo, adoecido e falecido. Os colegas de trabalho acompanharam no hospital, mas depois desapareceram, e achou-se que ele iria enterrar sozinho.
Mas no dia eles apareceram e juntaram-se a nós. Eram cerca de uma dúzia. Homens rudes, de trabalho, que fizeram um acompanhamento impecável, com uma dignidade, um respeito, desde a entrada do cemitério até à cova. É impossível não fazer a comparação com alguns funerais onde todos conversam e contam anedotas. Mas eles não, foram exemplares na maneira como o fizeram. E isto ficou-me marcado, porque não era o que eu estava à espera», recorda.
A média de pessoas que vão a enterrar sem ninguém para os acompanhar em Lisboa é de cerca de uma por semana. Pode haver semanas sem enterros, mas depois semanas onde há vários por dia, isto porque os corpos só são libertados depois de processos administrativos longos, ou mesmo casos de tribunal.
Os voluntários não conhecem a história daqueles que vão enterrar. Sendo que a maioria são idosos que foram abandonados em lares ou morreram sozinhos em casa, sem ninguém, há também um número significativo, embora não tão elevado como se poderia pensar, de sem-abrigo. Mas o que impressiona mais são os nados-mortos. «A maioria das pessoas são idosas, mas também há jovens, crianças e nados-mortos. Sem-abrigo são cerca de 30%, não mais do que isso. Nados-mortos começa a haver alguma percentagem, e é muito doloroso. O nado-morto pode ser entregue pelo hospital, ou porque os pais não têm disponibilidade para o funeral, e preferem não acompanhar para não serem chamados à responsabilidade (às vezes até acompanham de longe no cemitério). Já mais do que uma vez ficamos com a sensação de que os pais andam por ali, no funeral. Não se aproximam, mas estão… e isto é doloroso de se saber», refere.

A Irmandade é avisada sempre que há um funeral de alguém que não tem quem o acompanhe, e destaca sempre um ou dois irmãos. «É um funeral como outro qualquer. Nós somos avisados, a Irmandade tem 15 irmãos e voluntários que contacta, normalmente gente reformada, já que a hora dos funerais é durante o horário de trabalho. Os irmãos apresentam-se no cemitério para o funeral marcado e levamos um pequeno ramo de flores.
Esperamos à entrada, são feitas as formalidades da parte do cemitério e acompanhamos o cortejo até à capela, onde se faz a encomendação do corpo. Antigamente era perto da cova, mas por causa das condições climatéricas, vai passar a fazer-se na capela, para ser mais digno. É uma encomendação curta, e o corpo segue para a zona onde será enterrado, onde teremos um pequeno momento de oração. Depois regressamos a pé ou com o carro funerário», relata António dos Reis.
Qualquer pessoa pode ser voluntária na Irmandade, e prestar este serviço, desde que tenha disponibilidade de tempo. «Não há requisitos especiais, fazemos aqui alguma formação, o que é preciso é ter sentimento pelo que se está a fazer», diz.
Sente-se um agente da misericórdia de Deus, embora o título o “assuste” um pouco. «Bom, quando põe as coisas dessa forma fica mais estranho… (risos), mas sim, sinto que levo a misericórdia de Deus, pois tenho o desejo de, com este gesto, a colocar em ações concretas», defende.
Mas ações concretas para com alguém que já morreu? «Temos uma formação cristã, e essa formação cristã leva-nos a dizer que a vida na Terra é uma passagem, não é um fim. Ali acabou a vida terrena, mas continua a ter o nosso respeito. A Igreja Católica é muito clara no respeito pelo corpo, mas também pelo falecido, que é muito mais do que aquele corpo», afirma.
Quando está no cemitério, António pensa em pouca coisa. «Cada um tem a sua motivação, e a sua forma de viver o momento. Eu não tenho grandes reações. É impossível não se pensar que mais cedo ou mais tarde lá estarei eu, e pensar na história que estará por trás desta pessoa que não tem ninguém com ele. Estamos ali a acompanhar um irmão e os sentimentos que se têm são idênticos a qualquer outro funeral. Este irmão já fez a sua caminhada terrena, e rezo para que seja bem acolhido pelo Pai», conta.
NOTA: Artigo publicado na edição de junho da revista Família Cristã.
Texto e fotos: Ricardo Perna
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