Assinala-se hoje o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF). As irmãs Inês e Daniela Leitão chamam a atenção para esta realidade com a estreia, esta noite, na RTP África, de um documentário que aborda o tema, «Este é o Meu Corpo».

«Eu não sabia que este segredo era tão trágico, e tão grave, e tão menosprezado, ou pelo menos, silenciado, desta forma», começa Inês Leitão, a argumentista do documentário «Este é o Meu Corpo», com realização de Daniela Leitão.
A ideia para desenvolver um novo trabalho nesta área surgiu a partir do momento em que se deu conta de que estas vítimas vivem entre nós, são «mulheres que sofreram mutilação genital em pequenas e são hoje membros da nossa comunidade», mulheres de 35, 40 anos, que sofrem em silêncio num corpo que lhes foi “roubado”.
Os números
A Organização Mundial de Saúde estima que mais de 200 milhões de crianças e mulheres já foram submetidas à prática da mutilação genital feminina em cerca de 50 países e cerca de 3 milhões de meninas anualmente estão em risco de o serem.
O facto de Portugal ser país de residência de comunidades provenientes de alguns países onde a prática é recorrente (sendo a comunidade mais expressiva a da Guiné-Bissau), coloca-nos no radar dos «países de risco». Um estudo de prevalência realizado a nível nacional (Mutilação Genital Feminina: prevalências, dinâmicas socioculturais e recomendações para a sua eliminação) aponta para a possibilidade de existirem mais de 6500 mulheres (valor estimado) com mais de 15 anos a viver em Portugal submetidas à prática e a possibilidade de haver 1830 meninas com menos de 15 anos que poderão vir a sofrer de MGF.
Uma prática secreta e ilegal
Em nome de todas elas, e porque elas não falarão – «nem umas com as outras, porque é segredo», explica a argumentista do documentário –, Inês e Daniela procuram dar a conhecer o tema das suas mais variadas perspetivas. Chegaram a vítimas, técnicos, médicos, magistrados, secretárias de Estado, jornalistas (que deram o pontapé de saída há vários anos para se começar a falar deste tema), responsáveis de organizações não-governamentais, ativistas e até imãs – «uma vitória e tanto», diz orgulhosa –, com o objetivo de uma transversalidade que garanta a promoção do debate e o conhecimento público deste tema, algo que Inês considera não ter acontecido ainda «profundamente». «Acho que as pessoas não estão despertas para este fenómeno. Não estás consciente de que ao teu lado vive uma mulher com este segredo, porque ela nunca falará.»
O secretismo em que se vive este ritual foi uma das dificuldades no documentário. As irmãs não conseguiram confirmar se a prática é realizada em Portugal, embora Inês acredite que sim, «que é feita na clandestinidade, talvez não em grande número, porque está criminalizada». A lei portuguesa criminaliza, num artigo autónomo (o 144.º-A do Código Penal), a mutilação genital feminina, com uma pena de dois a dez anos para quem praticar esses atos e uma pena de até três anos, para quem se envolver em atos preparatórios.
Os testemunhos
Também não foi fácil obter testemunhos com autorização de gravação. Mas Inês falou com muitas mulheres. E ouviu histórias que, não estando no documentário, lhe estão gravadas na memória e na cara, com «um estalo». Como a da mulher que «sofreu três vezes», começa a contar. «Sofreu quando foi mutilada. Ela sofreu mais tarde quando foi de férias e avisou a família toda que ela e o marido não queriam que a filha bebé fosse mutilada, mas alguém levou a criança [quando os pais se ausentaram por algum tempo] e ela foi mutilada. E aquilo para ela foi uma dor profunda, porque ela também reviveu o que tinha passado e viu na sua própria filha o que lhe tinham feito a ela. Já tendo ela a vivência da Europa, já percebia que aquilo era um direito e que aquilo que lhe tinham feito era uma coisa atroz. Ela sofreu uma terceira vez, porque agora que a menina tem 15, 16 anos, ela vai ter de contar, porque tem noção de que ela tem de ser vigiada, ir ao ginecologista, ter apoio médico.»
A mutilação genital feminina deixa quase sempre sequelas: infeções, fissuras, problemas urológicos, dor, partos complicados, etc. E traumas!
Traumas que Inês começou a saber ler à medida que foi ouvindo os relatos. «As pessoas trazem isto na cara. Quando elas falam, e elas falam muito devagar, com alguma dificuldade no português, tu vais percebendo a profundidade da dor. Se fores um bocadinho mais sensível, vais perceber que aquilo é profundo, não é a brincar.»
Apostar na prevenção
Inês diz-nos que é por isso que acredita muito no trabalho «de terreno», de instituições e organizações que trabalham junto destas comunidades e que são em grande parte constituídas por membros destas comunidades. É por isso que considera essencial trabalhar com estas mulheres que passaram por estas experiências, esclarecendo-as e dando-lhes ferramentas para que se tornem testemunhas e ativistas, isto é, donas da sua própria luta. Na sua opinião, a educação tem um papel importante e as escolas podem ajudar a funcionar ao nível da prevenção, por isso, o seu desejo é que este tema possa ser introduzido na escola «com todo o cuidado que é preciso porque estamos perante crianças e jovens».
Da investigação que fez para o documentário, a argumentista revela-se esperançosa com tudo aquilo que já foi alcançado, embora Portugal esteja no patamar do «mais ou menos», comparativamente a outros países, muito trabalho já foi feito. «Nós trabalhámos na área da saúde, do SEF, da formação de magistrados, da criminalização, do asilo», falta trabalhar mais na área da prevenção.
Texto: Rita Bruno
Fotos: D.R / Rita Bruno
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