19.10.2020
Quando vejo imagens de casas abandonadas ou em processo de reconstrução, em que existem buracos no telhado, facilmente viajo até à passagem relatada nos Evangelhos de um dos muitos milagres de Jesus: a cura do paralítico! A Bíblia está cheia de histórias riquíssimas em valores e princípios, que deveriam ser contadas, estudadas e disseminadas, independentemente de as considerarem realidade, como eu, ou ficção.
Lembro-me, aliás, de estar na cidade de Cafarnaum, em Israel, há quase uma década, a contemplar as ruínas e pensar: onde terá sido a casa, cujo telhado foi partido pelos amigos do paralítico, para o fazer chegar mais rapidamente a Jesus?
Queria tanto tirar uma fotografia! Pois, na impossibilidade de guardar, ao longo dos meus 37 anos de vida, uma única fotografia em que figurassem todos os meus verdadeiros amigos, esta é na, minha opinião, a imagem mais simbólica da amizade, feita amor, com que tenho sido abençoada. Tê-la presente, como metáfora visual, é assim uma forma de agradecer, lembrar, celebrar e reconhecer cada amigo que já “rebentou o telhado” por mim. Porque estes quatro amigos, de que ninguém sabe sequer o nome, foram nesta história os pés, as mãos e a voz daquele homem paralítico. Estes amigos podiam muito bem ter sido os meus, cada um dos meus, em tantos momentos, ao longo da minha própria história. Estes são os amigos que devemos querer por perto, quando até nós deixamos de acreditar que a vida ainda vale a pena. São os que nos ajudam a viver que contam, e não o contrário.
Nesta história nem é tanto o testemunho pessoal daquele homem, nem mesmo o milagre da cura que aconteceu, que me impactam e emocionam, mas aquilo que os seus amigos fizeram como um hino de empatia, serviço, sensibilidade, esperança, compaixão, determinação, altruísmo e muita fé. Se a frase “não olhar a meios para atingir os fins” ganha alguma conotação positiva possível é nesta narração. Só o amor incondicional, aqui vestido de amizade, tem este poder!
Considero que a eutanásia é um tópico ainda, e infelizmente, em discussão na sociedade portuguesa, pois contam-se pelos dedos as pessoas que estão dispostas a “rebentar telhados” pelos outros, nestes moldes. Estar ao lado de alguém na dependência, doença, angústia e desânimo requer um investimento muito mais trabalhoso do que simplesmente fazer-lhe a vontade e deixá-lo ir.
Aqueles que pela agonia se desfocam da vida, em prol do alívio da morte, se não se sentissem um fardo para quem os rodeia encarariam decerto o seu fim, independentemente do quando, como uma finalidade. E nós podemos ter um papel ativo nisso.
D. Tolentino Mendonça escreveu no início deste ano o texto 10 razões civis contra a eutanásia, publicado no Expresso. A quarta razão diz que «o sofrimento humano é uma realidade do percurso pessoal, que pode atingir formas devastadoras, é verdade. Mas o próprio respeito devido ao sofrimento dos outros e ao nosso deve fazer-nos considerar duas coisas: 1) que temos de recorrer aos instrumentos médicos e paliativos ao nosso alcance para minorar a dor; 2) que temos de reconhecer que o sofrimento é vivido de modo diferente quando é acompanhado com amor e agrava-se quando é abandonado à solidão. É fundamental dizer, por palavras e gestos, que “nenhum homem é uma ilha”».
Façamos mais para sermos o amigo oásis de alguém que precisa de um “telhado rebentado” no deserto do sofrimento.