Há 103 anos, na Cova de Iria, Nossa Senhora apareceu a três pastorinhos. A memória e a celebração dessas aparições passaram a ser celebradas, todos os anos, com a deslocação até aquele local de milhões de peregrinos que, todos os anos, encheram o espaço que foi crescendo até ser o recinto que hoje existe. Até este ano, em que pandemia e o risco de contágio pelo novo coronavírus obrigou a que as celebrações fossem realizadas sem peregrinos.

Como ontem, foi um cortejo diminuto que acompanhou a Imagem de Nossa Senhora desde a Capelinha das Aparições até ao altar no recinto, furando a neblina que se fazia sentir no santuário. Pouco mais de uma dezena de sacerdotes, leigos que representavam os cuidadores do país (médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, bombeiros e lares de idosos), os responsáveis das Províncias Eclesiásticas de Braga, Lisboa e Évora, D. Jorge Ortiga, D. Manuel Clemente e D. Francisco Senra Coelho, e o bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, ao qual se associou o Papa Francisco, enviando uma mensagem escrita que foi lida pelo bispo de Leiria-Fátima e na qual fala da «ligação» de Nossa Senhora as peregrinos, mesmo com a sua ausência do recinto neste dia.
Na homilia da eucaristia que encerrou a peregrinação internacional aniversária de maio, D. António Marto falou de uma «peregrinação interior». «Neste sentido, talvez estejamos todos a aprender como é uma peregrinação em estado puro, o peregrinar com o coração, a peregrinação interior no percurso mais íntimo da nossa vida, com a companhia espiritual da mãe celeste, que leva cada um a encontrar-se com Deus santo e misericordioso».
Este ano, referiu o cardeal de Fátima, ao contrário dos outros, em que são os fiéis que vêm a Fátima, é Nossa Senhora que vai «ao nosso coração, às nossas casas». «Hoje é ela que abre as portas deste santuário e sai dele, espiritualmente, como peregrina para se fazer próxima das nossas vidas, das nossas casas e levar-nos a consolação do seu coração materno como fez na visita à sua prima Isabel».

D. António Marto fala de uma «luz da fé» que ajuda a ver tudo com «mais esperança», e deixa uma crítica a quem deposita uma «confiança imensa no poder cientifico-técnico, no poder económico-financeiro, pensando que estaríamos porventura imunes a qualquer epidemia ou, se ela viesse, logo se encontraria uma solução rápida». «Mas, inesperadamente, um vírus imprevisível, invisível, silencioso, capaz de contagiar tudo e todos, põe o mundo inteiro a vacilar», referiu, acrescentando que «é uma situação dramática e trágica, sem precedentes, que nos convida a refletir sobre a vida e, em primeiro lugar, a ir ao essencial, que muitas vezes esquecemos quando a vida corre bem».
Este é um vírus que nos obriga, segundo o prelado, «a repensar os nossos hábitos, o nosso estilo de vida, a escala de valores que orienta a nossa vida». «Não se pode viver só para produzir e consumir, para ter e para aparecer», afirmou.
É neste sentido que a pandemia é um «chamamento à conversão espiritual mais em profundidade». «Uma vida melhor na nossa casa comum, em paz com as criaturas, com os outros e com Deus, uma vida rica de sentido requer conversão», defendeu.
Uma conversão que «uniu» a humanidade «na sua fragilidade». «Sentimo-nos unidos e pertencentes a uma humanidade comum, na fragilidade, mas também mais unidos na fraternidade e na solidariedade», destacou, acrescentando que «somos interdependentes e solidários uns dos outros e por isso nos salvamos todos juntos ou nos afundamos todos juntos».
D. António Marto destacou ainda a família como «suporte humano e espiritual», reforçado neste tempo de pandemia e «confinamento», e alertou para uma «pandemia mais dolorosa» que está a aparecer, «a extensão da pobreza, da fome e da exclusão social, agravada pela cultura da indiferença». O bispo de Leiria-Fátima pede um «impulso de solidariedade que oriente uma resposta mundial perante a anunciada quebra do nosso sistema económico e social».
Por fim, a certeza de que «voltaremos» quando «superarmos esta ameaça que no-lo impede. «Voltaremos: é a nossa confiança e o nosso compromisso», concluiu.

No final da eucaristia, o cardeal de Fátima anunciou o cancelamento da Peregrinação das Crianças, que acontece sempre a 10 de junho. «Não quero que vocês apanhem a pandemia e fiquem doentes, mas o Santuário já está a enviar-vos elementos para fazerem, através da internet, esta peregrinação em casa», assegurou o prelado às crianças, a quem pediu que continuassem a rezar pela «humanidade enferma e doente». «Peço que continueis a rezar, pelo menos 3 Ave Marias cada dia a Nossa Senhora, pois, como dizia São João XXIII, um dia sem oração é como um céu sem estrelas ou um jardim sem flores».
A terminar, a surpresa da mensagem do Papa Francisco. O Santo Padre já se havia pronunciado sobre esta data na sua saudação aos peregrinos de língua portuguesa, no final da Audiência Geral em Roma, que por estes dias decorre sem público, mas quis enviar uma mensagem própria, «autógrafa», «cheia de afeto», como referiu D. António Marto, para ser lida aqui, a todos os peregrinos.
«Queridos peregrinos de Fátima: por força das circunstâncias, a 13 deste mês de maio, não vos será possível cumprir na forma habitual a peregrinação até à Cova de Iria. Sei, porém, que aí vos encontrais igualmente, embora apenas de alma e coração, e a razão é simples: um filho, uma filha, não se pode ver longe da Mãe e clama por ela. A confiança que lhe inspira é tal, que basta a sua companhia para cessarem todos os medos e inquietações, abandonando-se a um sono tranquilo logo que se vê no regaço dela.
Com estas minhas palavras, queria apenas tranquilizar-vos a respeito da companhia que vos faz a nossa Mãe do Céu. Hoje conseguimos, através da alma e do coração, fazer a ligação à Virgem Maria, e somos tão limitados! Tão limitados e tão pequeninos que um inesperado vírus pôde facilmente transtornar tudo e todos. Nossa Senhora é pequenina, como nós, mas abandonou-se a Deus e Ele engrandeceu-a, fazendo-a Mãe sua e nossa. Hoje, gloriosa em corpo e alma, toda ela é um coração materno, ocupado e preocupado em restabelecer a sua ligação connosco e a nossa ligação com Deus.
Não esqueçais a sua promessa de 13 de junho de 1917: “o meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus”. A Deus, Ela confia todos e cada um de vós, desde os zeladores do Santuário de Fátima, que hoje nos personificam e representam a todos aos pés de Nossa Senhora, à semelhança do apóstolo João no Calvário: «mulher, eis o teu filho», e pela casa dentro entrou-lhe todo o mundo... até aos doentes, pobres e abandonados, sem esquecer os voluntários e profissionais empenhados a servi-los. Uma oração particular peço a Vós, enquanto vos asseguro a minha, pelas vítimas sem conta desta pandemia do COVID-19 e todos os defuntos. A quantos se viram sozinhos na sua travessia para a eternidade, sei que a mãe do Céu lhes fez companhia até Deus.
Que o Bom Deus vos abençoe e Nossa Senhora de Fátima vos guarde e proteja.»
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Santuário de Fátima
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