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Filarmónicas: «Somos o conservatório do povo»
29.07.2016
São 800 em todo o país. Não se sabe bem quantas pessoas estão envolvidas: os números variam entre os 40 e os 70 mil músicos. Mas a verdade é que por todo o país há bandas filarmónicas. Fomos conhecer duas: uma numa aldeia dos arredores de Leiria e outra na cidade de Lisboa.

Banda Filarmónica da ACULMA, de Marvila.
A Sociedade Filarmónica do Senhor dos Aflitos do Soutocico, perto de Leiria, está a comemorar os seus 70 anos e dá música com fartura. Tem a banda filarmónica, a miniorquestra e uma escola de música. A banda tem 56 elementos. Sérgio Ferreira, presidente da direção, explica que «a miniorquestra serve para integrar os mais pequenos na filarmónica. É como se fosse uma classe de conjunto.»

Rui Santos é o músico mais novo da Banda Filarmónica do Soutocico.Rui Santos tem 14 anos, toca trompa e é o elemento mais novo da banda filarmónica. Entrou há cerca de quatro anos na escola de música. Na banda, está há um. «Estou a gostar. É sinal que me chamaram e eu sinto-me muito bem.» O jovem só tem aulas de música na Sociedade Filarmónica. Mas há colegas que estão no ensino articulado de música e outros frequentam o Conservatório. No dia da festa de aniversário, dois elementos da banda faltaram ao concerto. «Estão a prestar provas para o Conservatório. Já atingimos níveis muito bons. Há dois ou três casos de músicos profissionais», explica Sérgio Ferreira.

A festa de aniversário junta familiares, amigos e antigos executantes num almoço seguido de concerto. O ambiente é descontraído e familiar. «As bandas filarmónicas são os conservatórios do povo, ensinamos música de forma praticamente gratuita. Mas ensinamos valores e não só música. Eles saem daqui com formação musical, de espírito de exigência, solidariedade, espírito de grupo.» O presidente emociona-se ao falar. Não sabe tocar nenhum instrumento. Nem ele nem nenhum dos membros da direção. Mas vivem intensamente o espírito.

Há 37 anos que Antónia Faustino Vieira está na direção da Filarmónica.Na festa dos 70 anos não faltou a homenagem ao elemento há mais tempo na direção. Antónia Faustino Vieira faz parte da equipa à frente da Sociedade Filarmónica há 37 anos. «Na altura, a filarmónica esteve parada um ano por causa da emigração. Foram ter comigo a minha casa e pediram-me a mim e a uma prima para tentar voltar a ter a banda.» Antónia e a prima foram convidar miúdos para a escola de música. «Conseguimos 25 e íamos aos recreios dar-lhes rebuçados e chocolates para não desistirem. Depois vieram e gostaram muito.»

Quase 40 anos depois, Antónia ainda faz parte da Sociedade. Quatro dos seis filhos passaram pela filarmónica. Muita coisa mudou, têm agora casa de ensaio e mais instrumentos. Um balanço? «Sinto-me orgulhosa. Os pais fizeram o favor de confiar em mim e na minha prima. Foi giro. Tivemos concertos muito giros. A filarmónica é uma espécie de filho. Eu vivo muito isto.»
 
Mais a sul fica Marvila, na zona oriental do concelho de Lisboa. A sede da Associação Cultural e Social (ACULMA) fica num rés do chão e cave de um edifício de habitação. Está rodeada de prédios com vários andares. Em frente, a escola EB 2,3. Lá dentro, o ambiente é muito familiar. Fátima Duarte é a presidente da ACULMA. «Vim para a associação quando a minha filha veio para a música, há 12 anos. Agora a mais nova está no rancho folclórico e na banda e já consegui meter o meu marido no rancho.» Mais tarde há de confidenciar que gostaria de aprender a tocar cavaquinho para ir para o rancho também.

A Banda Filarmónica da ACULMA tem 46/47 elementos. O número varia porque há sempre alguém que não pode estar presente nos serviços. O mais novo tem apenas oito anos e o mais velho pouco mais de cinquenta. «A média de idades andará pelos 20. Há muitos miúdos entre os 15 e os 20. Temos uns que são militares e pertencem a bandas militares. O maestro é elemento da banda da PSP.»

Fátima passa a palavra a Fernando Mota, professor da escola de música e maestro desde 2011. «Quero alimentar o trabalho deles, mostrar o que fazem dentro de quatro paredes. É como um pintor. Se tiver um que pinte um quadro muito bonito, mas o deixar debaixo da cama e ninguém o vir…»
O ambiente na ACULMA é muito familiar.
Na escola de música – que funciona todos os dias das 18 às 21 horas, há madeiras, percussão e metais. Fernando Mota explica que os miúdos aparecem porque «vão ouvindo falar, ou pelos escuteiros, por curiosidade ou por uma paixoneta». Na banda, o ambiente é muito familiar e o maestro diz mesmo que já viu «muitos casamentos». Há mais de 20 anos que dá aulas na ACULMA e tem uma relação especial com os alunos. «Vi-os crescer. É uma ligação muito especial. Vai ser duro um dia.» Emociona-se e não diz o que fica subentendido: vai ser duro ir embora um dia. Fátima continua e sabe do que fala: «Os músicos gostam muito dele e os miúdos falam mais depressa com ele do que com os pais.» O professor completa o ciclo. «Os pais também vêm falar comigo para saber dos filhos.» Há um acompanhamento das crianças e jovens muito para lá da música, como explica Fátima. «Sempre que notamos que algum miúdo está em baixo, tentamos ajudar no que pudermos.»

Fernando Mota irrita-se quando pergunto acerca da qualidade das bandas filarmónicas. O tom de resposta é irónico e certeiro. «Dizer que as bandas fazem música fraca é o mesmo que tratar mal as escolas primárias. Se não fossem as filarmónicas, os miúdos não aprendiam a andar. Quando vão para o Conservatório e escolas superiores de música, já vão a saber a andar e correr.» E dá vários exemplos de músicos portugueses que dão cartas dentro e fora do país e que «nasceram nas filarmónicas». Atualmente há alunos seus de Marvila no Conservatório e na Escola Superior de Música.

O papel das bandas filarmónicas na construção da identidade musical e profissional dos jovens foi já estudado academicamente. A investigação partiu da constatação da realidade. Muitos jovens músicos candidatos ao curso de Professores do Ensino Básico, Variante de Educação Musical, da Escola Superior de Educação do Porto tinham formação musical em bandas filarmónicas. Um contacto que se mantinha ao longo do curso e depois.
Essa realidade levou o Centro de Investigação em Psicologia da Música e Educação Musical a questionar se haveria influência na vida dos jovens. A investigação foi publicada em livro, com coordenação de Graça Mota, a presidente do centro. Concluiu-se que «as bandas têm uma maneira própria de estar musicalmente, os seus reportórios, os seus convívios representam algo muito característico na cultura musical». Além da música, existe «uma coesão social, uma pertença a alguma coisa». E isso acaba por ser determinante para estar e pertencer numa filarmónica. Outra das conclusões é que estes músicos das bandas procuram sempre ser melhores.
Tanto Sérgio Ferreira como Fátima Duarte salientam o papel das bandas na formação musical de crianças que, de outra forma, não teriam acesso a ela. Para sobreviver, fazem espetáculos, procissões e organizam outras atividades.

O espírito de sacrifício e de “amor à camisola” é uma evidência, até porque as bandas filarmónicas amadoras vivem sobretudo da «carolice». Sérgio e Fátima repetem: «Somos uma família.»  
 
Texto: Cláudia Sebastião
Fotos: Cláudia Sebastião, António Miguel Fonseca e ACULMA


 
Reportagem publicada na íntegra na edição de julho/agosto de 2016 da FAMÍLIA CRISTÃ
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