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Igreja na Europa está a aprender «a ter sede» de Deus
09.01.2019
D. José Ornelas, bispo de Setúbal, tem sido missionário toda a vida, mesmo que tenha apenas dois anos de missão Ad Gentes em Moçambique. Em entrevista, fala à Família Cristã sobre o Ano Missionário declarado pela Conferência Episcopal Portuguesa e explica porque é que o conceito de Missão está a mudar e de que forma tem a Europa de voltar a ser espaço onde cresce «o fermento» da evangelização.


 
Porque é que os bispos decidiram promover este Ano Missionário?
Antes de mais, em união com toda a Igreja, o Papa Francisco, declarou o mês de outubro o mês missionário, alargando assim o domingo das missões que se celebra em toda a Igreja. Isso já é habitual em Portugal, o mês de outubro ser o mês das missões. Por isso, sublinhar este carácter, dando-lhe um âmbito anual, pareceu-nos importante para o momento que a Igreja em Portugal vive.
Concretamente aqui na diocese, quando surgiu esta ideia, nós tínhamos já iniciado a programação de um biénio declarado à juventude, mas não achámos que isso fosse concorrência, antes pelo contrário, uma feliz coincidência de objetivos, uma vez que, se nós queremos realmente ter uma Igreja missionária, tem de ser uma Igreja virada para os jovens, que não mantém apenas aqueles que já estão na Igreja, mas sermos também uma Igreja que se lança para o futuro.
 
Que momento é esse que a Igreja está a viver?
Fui durante 12 anos superior-geral de uma congregação religiosa e todos estamos conscientes de que aquilo que nós somos hoje em termos de Igreja na Europa representa uma mudança muito, muito radical. Nos últimos séculos, sobretudo, a Igreja da Europa, e também parcialmente a da América do Norte, foi uma Igreja muito voltada para as missões, no conceito de missões como ida aos ad gentes, às regiões e povos não naturalmente cristãos. Mas isto é um período que mudou radicalmente nos últimos decénios. A construção de Igrejas novas sobretudo em África, na América Latina e na Ásia, com a constituição de comunidades e dioceses locais, empenharam milhares, dezenas, talvez centenas de milhares de missionários e missionárias, sobretudo religiosos e religiosas que foram, de facto, promotores de uma época missionária extraordinária. E aquilo que nós temos hoje, sobretudo na América Latina, África, é fruto desse espírito missionário em que toda a Igreja participou, particularmente a Igreja europeia, não só aqueles que partiram, mas aqueles que aqui eram promotores e sustentadores dessa empresa missionária, nas missões populares que se faziam, na colaboração económica, de oração e de simpatia para com os missionários. Agora, esse movimento de norte para sul hoje é muito mais débil, e é muito interessante que foi crescendo o número de missionários e missionárias leigos, o que é uma característica muito interessante a analisar.
 
Mudou o fluxo missionário?
O que nós temos hoje é uma Igreja que se desenvolveu a sul do planeta e que diminuiu, muito, muito substancialmente nos países do Norte. Nós aqui [Portugal] também, embora haja países da Europa onde esta redução se tornou muito mais significativa. Então, nós temos de mudar o princípio, aquela ideia tradicional que nós tínhamos de missão, “alguém que põe o chapéu colonial na cabeça e parte para o sul do planeta.” Este movimento hoje não é assim, pelo contrário: nós temos gente que vem do Sul para o Norte, não só padres, mas religiosos, leigos, porque no Norte não temos mais uma terra cristã; a nossa ideia de que tínhamos aqui terras cristãs e que íamos evangelizar terras não cristãs, isso hoje já não é ideia.
 
É preciso uma mudança de paradigma nesta questão da Missão?
Absolutamente. Primeiro, redescobrir que o princípio do Vaticano II de que a missão é constitutiva do “ser Igreja” é para qualquer comunidade. Esta ideia de pensar que nós já somos cristãos, portanto, a missão não faz falta para nós, não é correta, nunca foi, mas sobretudo não é hoje. Nós não somos países cristãos, sobretudo na Europa. Temos uma grande tradição cristã, temos valores cristãos que passaram para a sociedade, mesmo que não lhes deem paternidade, mas que vêm do Evangelho, se pensarmos em comunidades cristãs e organizadas, temos ainda, e as estatísticas dizem-no, aqui em Portugal, uma larga faixa da população que se revê nos valores cristãos, uma maioria mesmo, mas isso não significa o empenhamento concreto dentro da Igreja.
E as novas gerações não nascem assim. Daí que eu dizia que fazer missão, e fazê-la entre os jovens, é algo de fundamental para nós, no nosso ambiente. Além disso, perceber a Igreja assim significa perceber que a missão parte de todas as comunidades para os quatro cantos do mundo em qualquer direção. O mundo multicultural que nós vivemos hoje, também nas nossas sociedades, aconselha precisamente esse esforço missionário comum, multicultural, multi-integrado, porque a multiculturalidade não se encontra só quando a gente parte do nosso país. Nos países da Europa ela está por toda a parte, e concretamente esta diocese aqui [Setúbal] é uma diocese tipicamente multicultural.
 
E o que é isso de ir em Missão?
A missão não é uma questão de lugar, nem de ir para muito longe, a questão é ser, ter um espírito missionário. Aliás, foi isso que o Papa Francisco me disse: «não te mando, mas peço-te que vás para Setúbal, mas que vás como missionário, senão não vale a pena». A Igreja tem de ser missionária, porque senão atraiçoa o mandato do seu Criador e a função que é chamada a ter no mundo. E isso não tem fronteiras. Mas não se pode sonhar simplesmente com a missão, que era a tal coisa dos tais idílios de “irmos para África, e a beleza de África…” isso é verdade; deixei muito do meu coração em Moçambique e continua a ser uma referência, mas também, se eu ficasse parado nisso, o Moçambique que eu conheci, os últimos dias do colonialismo tradicional, o Moçambique de hoje não é o mesmo. Quem pensa simplesmente nesses idílios vai-se dececionar rapidamente.
 
Referiu há pouco que muitas vezes o conceito de missão estava ligado à missão ad gentes. As pessoas têm facilidade de perceber este conceito de uma missão até mais virada para dentro e até num sentido mais restrito, dentro da própria comunidade?
Aqui nesta diocese o que eu encontro é já um caminho feito aí muito grande. Veja, esta diocese tem só 43 anos e fez um trabalho imenso desde que foi criada. O primeiro bispo D. Manuel Martins, que faleceu o ano passado, foi impulsionador de um movimento missionário e organizador interno. Missionário, virado sobretudo para gente que até tinha sido batizada, mas não estava aqui. Enquanto noutras partes do país o número de igrejas se foi esvaziando, aqui criaram-se nestes 43 anos da diocese mais de 30 igrejas, igrejas novas, o que significa [além] do aumento da população, um trabalho muito interessante que se fez de evangelização, de atração de pessoas, de comunicação do Evangelho. Isso é um esforço já muito grande. Todos os anos se batizam muitas pessoas, adultas, é muito comum ver pessoas que, ao fazerem o Crisma, fazem também a Primeira Comunhão… agora, nós precisamos de dinamizar tudo isto e este esforço missionário que não é alternativo ao conceito da missão para fora de cada igreja diocesana, mas que se integra nela.



Isso significa que se acaba o envio de sacerdotes europeus para esses terrenos de Missão?
Faltam-nos ainda padres, mas se um padre me pedir para partir em missão vai ter todo o meu apoio. Nós temos de partilhar e de perceber esta igreja que se ajuda, uma igreja solidária entre as diversas igrejas locais e que partilham o mesmo ideal de uma Igreja em missão.
Isto é muito importante no tempo de globalização em que nós vivemos, em que se corre o risco de retorno a uma globalização selvagem que impõe modelos iguais para todos, e não é isso que nós queremos. Muitas vezes, a missão também não foi respeitosa das culturas locais e isto é preciso assumir. Hoje, quando a gente parte em missão, já não é aquele ideal de levar o Evangelho e a cultura, com a arrogância de que os outros, cultura, não tinham, nós é que levávamos. Quem ainda tiver essa noção é melhor que não parta, porque isso destrói o princípio da missão que é a de se fazer encarnar no ambiente onde a gente vive.
 
Qual é o espírito correto então?
O Evangelho tem de se revestir lá de outras cores. Entender a missão aqui, para aqueles que estão e para aqueles que chegam. E não é só para aqueles de fora que se tem de encarnar aqui. É também para aqueles de cá que têm de se encarnar num mundo novo. O mundo dos nossos jovens não é absolutamente o mundo em que eu vivi a minha juventude. Estamos em missão constante dentro do tempo, dentro da História. Por isso é que é o absurdo, aqueles que continuam de cabeça voltada para trás. Isso é exatamente o contrário da missão. Nós não podemos ter uma missão de levar as pessoas para um modelo de há 500 anos, não pode ser.
 
Mas esse espírito ainda existe?
Esse espírito está voltando, porque o populismo dos saudosistas… a saudade de um tempo que não se viveu, de uma igreja que não me deixa absolutamente saudades nenhumas… mas que foi uma igreja que, por outro lado, não julgo, porque foi a Igreja daquele tempo. Uma Igreja que tem de ser missionária para si própria significa uma Igreja que acompanha o tempo com a força constantemente renovadora do Evangelho. Eu tenho de fazer uma migração dos meus tempos de jovem, e de jovem padre, para entender a igreja de hoje, porque senão não sou missionário.
Do ponto de vista juvenil, nós podemos lamentar-nos que os nossos jovens não vêm à Igreja, mas eu pergunto: quando os nossos jovens vêm à Igreja que espaço é que encontram e que espaço é que lhes é deixado? A primeira coisa que nós temos de entender é: ir ao encontro dos jovens, abrir-nos para eles, não significa transigir com os nossos valores, não senhor! Mas significa encarnar os nossos valores dentro de critérios novos. Daí que quando eu dizia no início que uma pastoral vocacional, em que cada um encontra o seu caminho dentro da Igreja, para o matrimónio, para a vida consagrada, para o cuidado dos outros, etc., esta é a vocação e o sentido da missão. Isto significa que a Igreja tem de converter, não só a sua linguagem, mas também o modo de se organizar hoje, para responder ao homem de hoje e não ao de há 500 anos. A Igreja sempre se organizou para a missão, em cada contexto, em cada época, em cada história, de modo diferente.


 
Poderíamos considerar que o seu propósito de Missão é também o seu principal desafio?
É a razão de ser da Igreja. A missão da Igreja é levar o anúncio, a salvação, mas a função da Igreja é estender, levar o amor salvador de Deus aos quatro cantos do mundo. Claro que levar esse amor salvador de Deus significa constituir comunidades, pois quando se anuncia o Evangelho surge uma comunidade; o Evangelho não é uma devoção particular de cada pessoa; serve para formar a comunidade, formar uma cultura evangélica, um modo de relacionamento evangélico, uma comunidade fecundada pelos valores do Evangelho. Isto é para levar sempre, o Evangelho é para comunicar. A razão de ser da Igreja é a apresentação a todo o mundo da salvação de Deus. Não é uma questão simplesmente de estabelecer uma agência de serviços religiosos para quem quiser. A Igreja tem de estar constantemente em saída.
 
E o que é isso de estar em saída?
Em saída significa em saída de si própria e dos seus próprios critérios. Porque o querer permanecer congelado nos seus princípios de sempre, não é fidelidade nenhuma, é ser infiel, porque a fidelidade é fidelidade ao espírito de Deus que vai à nossa frente e é Ele que puxa e que leva a Igreja ao encontro do mundo. Claro que é um risco, sim! Há um risco da Igreja se mundanizar, isto é, de eu chegar e de dizer: “vamos fazer um discurso um bocadinho mais fácil para esta gente!” Nem mais fácil ou mais difícil; trata-se de apresentar o Evangelho a toda a gente na linguagem de cada um e na cultura de cada um.
 
A Igreja da Europa está a aprender esse caminho inverso da Missão?
Está a aprender, mas não vejamos isto simplesmente como um efeito de maré. Não é isso. Está a aprender a ser missionária no seu conjunto. É porque, nós, na Europa, tínhamos uma Igreja de cristandade, quando pensávamos em missões era para fora da Europa, era como deitar água na água benta. Agora, ser uma Igreja que sente que é minoritária, torna-se muito mais rapidamente missionária, sente esse impulso missionário. É uma Igreja que aprende a ter sede.
Temos de aprender a ser de novo um pequeno rebanho, porque esta é a nossa realidade. Temos de aprender de novo a ser semente e a ser fermento. Esse é o sentido da missão. Não é: não temos missionários, vamos ter de chamar os de fora, não. Temos de aprender a ser missionários no nosso contexto. Quando aprendermos isso a missão vai chegar aos quatro cantos do mundo.
 
Entrevista: Rita Bruno
Fotos: Ricardo Perna
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