O dom da contemplação que o Senhor dá aos melhores dos seus amigos é o dom para se viver em profundidade a consagração ao Senhor. Já quase no fim do Ano da Vida Consagrada, a Santa Sé fez aparecer o Contemplai – Aos consagrados e às consagradas sobre os sinais da Beleza (PAULUS Editora, 2016), dirigido aos consagrados de especial modo na vida religiosa. Trata-se de deitar um olhar com profundidade para toda uma vida de amor a Jesus, a fim de «redescobrir que somos depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova» (Evangelii gaudium, n.º 264) e que é o amor que Jesus nos tem. «Nem há nada de melhor para transmitir aos outros» (ibidem) que o amor de Jesus!
Quando em todas as coisas começarmos a “ver” o Deus vivo e verdadeiro, aí já estamos bem dentro do mar da contemplação. Desta forma, completamente banhados pelo amor de Deus, entramos num horizonte nunca alcançado e nunca totalmente experimentado; e então é quando a nossa vida inteira é verdadeiramente uma confessio Trinitatis – um perene “louvor à glória” da Santíssima Trindade (Santa Isabel, carmelita de Dijon).
Sugiro que se tome o Contemplai como um comentário bem apropriado ao livro bíblico do Cântico dos Cânticos, que sempre foi o encanto de todos os contemplativos, mas que não deixa de ser difícil de ser espiritualmente lido com o devido proveito. Desta vez, foi ideia feliz da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica vir à fala sobre a vida espiritual dos religiosos/as, seguindo as pegadas do Cântico.
«Este é o dinamismo que atravessa o Cântico dos Cânticos (em hebraico sˇîr hasˇsˇîrîm), livro de tal modo superlativo que foi definido o “santo dos santos” do Antigo Testamento. É o primeiro dos cinco rótulos (meghillôt) que para os judeus têm uma especial relevância litúrgica: é lido durante a celebração da Páscoa. Este cântico sublime celebra a Beleza e a força atrativa do amor entre um homem e uma mulher, que germina dentro de uma história feita de desejo, de procura, de encontro, que se faz êxodo atravessando caminhos e praças (Ct 3,2) e que acende no mundo o fogo do amor de Deus.
Se o amor humano é considerado no livro como uma chama divina (Ct 8,6: sˇalhebetyâ), chama de Ya¯h, é porque o caminho mais sublime (1Cor 12,31) é a realidade sem a qual o homem nada é (1Cor 13,2), mas é o que mais aproxima a criatura de Deus: o amor é ressonância e fruto da própria natureza de Deus. A criatura que ama humaniza-se, mas ao mesmo tempo também experimenta o início de um processo de divinização (deiésis) porque Deus é amor (1Jo 4,10.16). A criatura que ama chega à plenitude e à paz, chega ao sˇalom, que é um porto de comunhão, como para os esposos do Cântico este sˇalom está no Nome, ou na lei (Sˇ ûlammît).
O Cântico foi interpretado de modo literal, como celebração da força do amor humano entre uma mulher e um homem, mas também de modo alegórico, como na grande tradição judaico-cristã, para falar da relação Deus-Israel, Cristo-Igreja. O livro, porém, encontra o seu fulcro na dinâmica esponsal do amor e – a modo de parábola que ajuda a transferir-nos para outro lugar onde se fala a linguagem viva dos enamorados que cura a solidão, o fechamento sobre si mesmo e o egoísmo – reconduz-nos ao nosso presente, sugerindo-nos que a vida não procede por imposição de ordens ou de obrigações, não procede por regras mas em força de um êxtase, de um encanto, de um rapto que nos leva para fora de nós, nos põe em caminho e lê a história em chave de comunhão, relacional e agápica.
Este amor de natureza esponsal que integra todos os sentidos e inspira os passos do caminho, pode ser vivido pela criatura humana não apenas nos confrontos de um outro ser humano, mas também de Deus. É o que acontece a quem se consagra a Deus no horizonte sapiencial e na atmosfera fecunda dos conselhos do Evangelho, que servem para proclamar o primado da relação com Ele. Por isso, o Cântico é um farol que ilumina os consagrados.
O Cântico, definido cântico de mística unitiva, pode também ser lido como itinerário do coração para Deus, como peregrinação existencial para o encontro com Deus feito carne que ama de forma nupcial. Ele pode ser lido como uma sinfonia de amor esponsal que compreende a inquietação da procura do amado (dôd), a preparação para o encontro que sacia o coração e o demorar na degustação da eleição e da mútua pertença.
À luz do Cântico, a vida consagrada parece uma vocação ao amor que tem sede do Deus vivo (Sl 42,3; 63,2), que acende no mundo a procura de um Deus escondido (1Cr 16,11; Sl 105,4; Is 55,6; Am 5,6; Sf 2,3) e que o encontra nos rostos dos irmãos (Mt 25,40). É ali que Deus encontra espaço para pôr a sua tenda (Ap 21,3); na oração ou então na profundidade do coração onde Deus gosta de estar (Gl 2,20).
Homens e mulheres consagradas movem-se para Cristo para encontrar as suas palavras que são Espírito e vida (Jo 6,63), tentando encontrá-l’O em lugares sagrados, mas também pelos caminhos e nas praças (Ct 3,2), destinados a fazer do encontro pessoal com o seu amor uma paixão que intervém na história.» (Contemplai, n.º 2)
Em conclusão, agora se a partir das exortações do Contemplai se tomar a decisão de se ir ler o Cântico diretamente na Bíblia, a vida espiritual dos que o fizerem ganhará uma mais profunda dimensão.
Texto: Pe. Mário Santos, ssp
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