Jaime Nogueira Pinto escreveu o livro
Contágios, onde passa em revista os últimos 2500 anos com as suas respetivas "pestes" e pandemias. Foi o ponto de partida para uma conversa sobre a COVID-19, mas também sobre Portugal e política.
Quais as suas motivações para escrever este livro?
A motivação foi muito simples foi estar encerrado em casa por causa de “uma coisa” e ir ver que coisa era essa. Eu saía todos os dias a andar no Jardim do Campo Grande. Mas estava como toda a gente com a vida. Achei que era capaz de ser interessante naquele tempo todo de sobra, era capaz de fazer sentido ir perceber melhor o que é que… Eu já tinha um certo um certo interesse por estes temas. Achei que era uma forma interessante de passar o tempo.
Surpreenderam-no as coincidências que encontrou, mesmo socialmente no que acontece com as pandemias?
Surpreender não, porque eu tenho uma teoria politicamente muito incorreta de que a Humanidade e a natureza humana não mudam. A única coisa que muda é a tecnologia e mudam as sociedades, claro. As pessoas não mudam e basta haver um pequeno rompimento da ordem tecnológica e social e rapidamente ficamos primitivos e selvagens. Portanto não admira que este tipo de fenómenos, numa época em que toda a gente acha que está segura, que está protegida e tem uma crença infalível na ciência e na técnica… Não admira que fiquem apavorados quando aparecem estas coisas.
Encontrou semelhanças na maneira como as pessoas reagiam, as divergências entre os cientistas…
Sempre. Clássicas. Os cientistas antigos, esses também se dividiam imediatamente e há uns que dizem que não é nada, que não é coisa nenhuma, que vai passar e não vale a pena perder muito tempo com aquilo. Depois há outros que ficam em pânico.
Depois há sempre a ideia nas sociedades tradicionais, sobretudo é muito a ideia de castigo de Deus, ou dos deuses. Isso aparece muito. Por exemplo, as pestes bíblicas são intencionais, têm uma direção. As pragas do Egito foram dirigidas exatamente para o faraó deixar sair os Israelitas do Egito. Eu comecei o livro pelo Apocalipse de São João. Começa exatamente pelo derramar das pestes, os anjos com as taças das pestes. Lá está, mesmo a ideia apocalíptica é a ideia de castigo.
Há sempre um bocadinho essa ideia de castigo divino não é? Ou se calhar mais recentemente menos talvez pela secularização…
As pessoas substituíram, uma parte das pessoas pelo menos, Deus pela ciência e depois pela ideia do castigo. Como também não lhes dava muito jeito castigo divino é castigo das maldades feitas à terra. De facto, no fundo, estamos sempre rodeados, apesar de todos esses conhecimentos científicos, por mistérios, por surpresas, por terror, por medos. Há um lado do mundo e da vida que continua na sombra.
No seu livro vai fazendo também uma análise das consequências das pestes. Na COVID diz que é prematuro fazer alguma leitura, mas faz algumas, não é?
Eu acho que a chamada euforia globalizadora sai bastante mal desta peste ou desta pandemia. Porque exatamente as pessoas a partir de agora vão querer ter referências de confiança quanto àquilo que comem, quanto àquilo com que se tratam. A chamada segurança alimentar e a chamada segurança sanitária vão ter incidências nos mercados. As pessoas vão gostar de ter, por exemplo, mais produtos nacionais, mais produtos de proximidade não só geográfica como até cultural. Isso vai ter uma incidência forte e não se vão importar de pagar mais por isso.
Uma das consequências de que fala é dos nacionalismos e dos populismos. É um acentuar do que já vai acontecendo ou em consequência desta pandemia? Qual é a sua leitura?
Aqui há várias coisas e várias sobreposições. O nacionalismo sempre existiu e hoje em dia a maior parte dos grandes estados são governados por nacionalistas. A China é governada por nacionalistas, a Rússia é governada por nacionalistas, os Estados Unidos são governados por nacionalistas, os brasileiros também são, alguns países europeus também são.
Havia dois internacionalismos: havia o internacionalismo marxista, que foi derrotado quando a União Soviética acabou, e havia um internacionalismo capitalista, que era o que se traduzia na globalização. Mas esse internacionalismo capitalista da globalização trouxe consequências negativas. Se, por um lado, trouxe consequências positivas sobretudo para os novos países que passaram a ter uma industrialização acelerada, como é o caso da China e dos países asiáticos, também teve o reverso da medalha que foi o desemprego e a desindustrialização dos Estados Unidos e de parte da Europa. As razões não são só socioeconómicas, há razões políticas também. Mas é o que explica a vaga grande de apoio a personalidades como Trump, apoio a partidos nacionalistas populares ou populistas como se lhes queira chamar na Europa. É de facto a reação a estas consequências negativas para a parte euroamericana a globalização.
É um bocadinho cedo [para avaliar]. Mas há aqui várias coisas que são inevitáveis. Primeiro, o papel dos governos. Os governos vão ter um papel maior. É evidente que não vão ser as empresas ou os mercados que se vão ocupar da saúde pública. Não é para isso que foram feitos. Bem ou mal, o papel dos governos vai-se acentuar em toda a parte, de todos os governos.
Segundo, a máquina das notas vai ser posta a trabalhar e ninguém se vai atrever a opor a isso. Não há outra solução. Porque senão em dois ou três meses tínhamos aí as revoluções na rua. Depois vamos ver como é que é. Curiosamente, por exemplo, nos Estados Unidos a recuperação tem sido muito rápida. No fim de maio, no auge, estavam com 14% de desemprego e estão com 8,4 [em setembro]. Desta vez estamos a ter uma crise muito rápida. A crise de 1929 durou anos nos Estados Unidos e praticamente só acabou com o emprego que a guerra forçou, levando milhões para as fileiras e criando postos de trabalho para os que ficaram.
Isto também tem aqui um problema que é a desigualdade perante a epidemia.
Desigualdade nas consequências?
De um modo geral, os mais novos e que não tenham assim outras doenças, passa por eles sem grande consequência. Não tem nada que ver com essas pestes do passado, como a peste bubónica ou a pneumónica. Os jovens, naturalmente, expõem-se mais. Até um pouco egoisticamente, porque podem contaminar os que não são novos ou que são doentes. Depois há aqui um imperativo muito complicado que é a questão do trabalho, da economia. Se as pessoas não morrem da COVID, podem morrer de fome ou ter implicações seriíssimas na sua vida.
Politicamente, eu acho que, por um lado, o tema deixou de ser tão central como era. Os governos vão ser mais julgados em função do modo como tratarem e lidarem com esta epidemia. Embora às vezes lhes escape completamente.
Eu acho que de qualquer maneira a euforia globalizante levou um golpe de morte. Quer dizer, já tinha levado. Isto de certo modo é mais um golpe. É evidente que não vai acabar a globalização, mas vai passar a ser encarada com muito mais reserva e cautela.
Disse que a COVID não se compara com outras pestes até no número de mortos. Mas também diz que as consequências podem ser piores ou mais graves, não é?
Podem, sobretudo porque houve uma paralisação da economia.
Mas porquê? Por medo?
O medo e por causa de uma coisa muito importante. As sociedades ocidentais tornaram-se de tal forma paternalistas e protetoras … deram a ideia de que éramos eternos, que temos enormes garantias. Como isto abalou muito isto, acho que houve um reflexo exagerado de protecionismo, sem se pensar muito nas consequências. O que os governos quiseram acima de tudo foi que não se dissesse que estavam a morrer pessoas por causa deles. E depois fizeram aquilo que também todos os governos fizeram historicamente que é recorrer aos chamados especialistas, porque também não querem assumir responsabilidade. Só que o problema é que os especialistas sempre estiveram divididos. O que também é normal. Esta ideia de que a ciência é uma coisa objetiva, certíssima, absoluta… Essa ideia de cientista é ideia de homens de letras.
Há sempre uma polémica muito grande entre os apocalípticos e os negacionistas. Depois há muitos interesses também em jogo nestas coisas. Na peste de Marselha, os comerciantes e as pessoas importantes de Marselha não queriam que a cidade ficasse com aquela marca de estar com a peste, porque achavam que ia prejudicar. Até quase ao limite tentaram afogar e apagar vestígios. Pois claro que aquilo lhes rebentou.
Como agora a China?
A China, a gente não sabe muito bem o que se lá passa. Podemos sempre dizer três ou quatro coisas: na forma mais benigna, se foram os tais mercados onde os morcegos e os pangolins e os ratos e tudo isso convivem, é uma porcaria, são tão avançados que já podiam ter acabado com esses mercados. Se foi uma fuga de um laboratório, também podiam ter mais cuidado com os laboratórios. Não indo para aquelas linhas mais radicais que dizem que teria sido uma coisa intencional. Embora essa história da coisa intencional tenha sempre isso: é que se fosse não podia ter corrido melhor. Puseram de rastos os Estados Unidos e uma parte do mundo. Mas não creio que fosse uma coisa intencional. Agora, que há pelo menos culpa e negligência há.
Que leitura faz da maneira como o Governo e as autoridades de saúde reagiram?
No princípio, houve aqui um pavor que eu percebo. Até porque estávamos com as coisas da Itália e Espanha muito quentes. Aquelas cenas que sobretudo se passaram em Itália, de facto, a escassez de ventiladores e tudo isso. Pessoal médico no fundo a ter de tomar decisões sobre quem vive e quem morre. São as coisas que marcaram. Tomaram-se medidas corretas. Também no princípio houve a ideia de que era uma coisa que não chegava cá. Foi a primeira mensagem.
Os governos democráticos contemporâneos normalmente fazem muito uma infantilização do cidadão. Como a gente faz em relação às tias velhas que é dizer “está tudo bem”, “não aconteceu nada”, “está tudo está tudo sossegado”, “não há problemas”. Estes nossos governos dizem que os cidadãos são esclarecidos, capazes e lúcidos e votam todos com sabedoria. Mas fazem deles uma espécie de crianças que precisam de ser protegidas de más notícias ou de velhinhas que também precisam de ser protegidas de más notícias. Dentro disso, depois, penso que as medidas tomadas estiveram bem. Depois houve um exagero.
Em democracia as pessoas não percebem que se não fizerem barulho ninguém quer saber delas para nada. Eu vi aquela coisa que achei chocante da senhora diretora-geral de Saúde a dizer como é que os católicos deviam comungar nas igrejas e os bispos todos calados. Alguns padres que falaram – e bem – contra isso foram mandados calar pelos superiores.
Embora fosse um exemplo e acho bem que se tivesse tido cuidado e cautela. Mas não se pode de repente ser-se tão calado e tão obediente que se deixe… A Igreja é que deve dizer como é que é. Não são as autoridades, sobretudo dentro dos espaços como os templos e a comunhão.
Houve alguma submissão?
Muita submissão! Mas isso é tradicional. É uma fraqueza muito grande que nós temos aqui. No mundo católico às vezes há uma submissão de mais aos poderes instituídos sejam eles quais forem. No tempo do Dr. Salazar também era assim. Só não houve submissão no tempo da República, porque de facto os republicanos trataram muito mal os católicos. Correram com bispos, mataram padres, deram cabo das igrejas, expulsaram as ordens. Fizeram essas patifarias todas. Aí a Igreja agiu e bem. Depois houve o fenómeno de Fátima, um fenómeno de catolicismo popular que foi muito importante. Aliás quase coincidindo, precedendo a pneumónica. Os pastorinhos morreram com pneumónica.
Tem havido muito erro, muita estatística. Mas não acho que seja das coisas piores. Não se comparou, por exemplo, com a loucura de Espanha onde no dia 8 de março ainda fizeram uma daquelas manifestações do Dia da Mulher com gente do governo envolvida e com dezenas de milhares de pessoas na rua a infetarem-se uns aos outros. Por comparação, as coisas nem correram mal. Agora parece que está a haver outra vez um surto grande, mas a letalidade é relativamente baixa. É uma letalidade que atinge sobretudo os mais velhos e os que cumulativamente já têm outras doenças. Há aqui uma coisa que também não tem sido falada e que é grave.
As sequelas?
De facto, há pessoas que passam por isto que se curam, mas ficam com sequelas graves. Tenho duas ou três pessoas que conheço no meu círculo de amigos a quem aconteceu exatamente isso. Não é também aquela coisa “olha passa e depois”. Não é! Há pessoas que ficam com problemas graves.
Depois, como viu, a perspetiva entre o diagnóstico e a cura é muito demorada. Historicamente, a descoberta do bacilo da tuberculose pelo Koch acontece nos finais dos anos 1880 e qualquer coisa e a penicilina veio 40 anos depois. Na sida, por exemplo foram também 15 anos. Desta vez está tudo muito excitado, mas não sei…
São coisas que nós pensamos muitas vezes se poderá haver um tratamento único. É capaz de não haver. A História é um bocadinho isso. Na Europa, a peste negra veio nos meados do século xiv e ficou praticamente até aos fins do século xviii.
Foi voltando, não é?
Foi sempre voltando. Os ciclos vão alargando. É evidente que a partir do século xviii, com cidades já construídas noutros materiais, cidades com maior higiene pública, as coisas começam a regredir. Mas não há cura. A peste desaparece – é uma das teses e que me pareceu até mais interessante… A peste na Europa acaba quando? É quando os ratos se tornam imunes, e como se tornam imunes as pulgas não precisam de ir para outros hospedeiros e deixam os homens em paz.
Estas batalhas entre os cientistas e os virólogos é uma coisa que se percebe. Não digo que eles não sabem nada. Os saberes deles são diferentes.
No seu livro fala do populismo. Em Portugal fala-se do Chega, que tem ganhado cada vez mais adeptos. Como vê o futuro deste partido e do seu líder, que é candidato à Presidência da República. Cresce por ausência ou por asfixia da direita ou por…
Desde o 25 de Abril que, aliás, fundadores do regime tiveram esse cuidado… A História é assim, tem algumas compensações e descompensações. Todos os partidos que aparecem foram homologados em 1975 no pacto MFA-Partidos. Foram homologados pelo MFA, pela esquerda. A direita permitida foi a domesticada. Assim como uns cãezinhos amestrados.
O primeiro PSD de Cavaco [Silva] é aguerrido. Não está muito preocupado com essas histórias do antifascismo, não está propriamente a prestar homenagem aos Capitães de Abril, nem coisa nenhuma e por isso até tem bastante sucesso. Depois também vai sendo integrado e vai sendo domesticado. Depois há ali um segundo fenómeno que é o PP do [António] Monteiro e depois do [Paulo] Portas. Também quebra com algumas coisas, mas depois também o próprio partido entra na linha.
Não podemos esquecer que Portugal faz parte do mundo euroamericano. Se no mundo euroamericano estão a dar-se estes fenómenos todos de nacionalismo identitário… São coisas sérias. Não temos, por enquanto, esses fenómenos aqui. Aliás, é curioso que no programa do Chega aparecem páginas várias sobre uma coisa que não existe em Portugal, que é um islamismo agressivo. Foi tirado da situação francesa. É como o Bloco de Esquerda, que também traz uns conceitos de racismo que são tirados dos Estados Unidos e das situações americanas. O Chega pega em certos fenómenos de tipo, por exemplo, identitário que têm a sua importância e sobretudo não tem essa submissão histórica.
Aquilo a que a gente muitas vezes chama direita é a direita da esquerda.
Não é verdadeiramente direita?
Não! É a direita da esquerda. São os arrependidos. Há uma grande quota de arrependidos de esquerda que até foram de extrema-esquerda e fizeram uma evolução e passam hoje por direita. É a direita da esquerda.
O Chega é uma coisa que aparece e não pede licença, de facto. Não tem a homologação e portanto também é um partido de protesto.
Dou-me bem com o André Ventura, tem valor e tem uma coisa que eu acho que é fundamental que é uma couraça em relação aos insultos. Hoje também faz parte.

Não tem essa submissão?
Não tem nenhuma. De vez em quando lá diz umas coisas mais politicamente corretas, mas também de vez em quando também terá de dizer algumas. Mas não tem essa submissão.
Mas há ali uma insistência em temas punitivos e securitários que eu acho que não fazem sentido. A questão da pena de morte, por exemplo. Portugal tem esse fator histórico de ter sido pioneiro na abolição da pena de morte. A questão é: a sociedade portuguesa requer? Por amor de Deus! Em Portugal, houve 60 ou 70 homicídios nos últimos anos, não há crime organizado. Mesmo aquelas coisas das castrações. Bem sei que é uma coisa que é usada, a castração química, em que normalmente são os próprios a pedir. Mas as pessoas não pensam nisso. Pensam em coisas piores. Não acho que seja isso o ponto mais importante. Eu acho que os pontos importantes nesse aspeto, e alguns ele tem tocado, é a questão de facto de identidade nacional. Nós somos uma nação muito antiga e temos muitos benefícios a partir disso e portanto devemos defender essa identidade. Não é de repente fabricarmos portugueses assim em dois anos, mas pelo menos uma ou duas gerações são precisas. Isso é um ponto importante. Como é um ponto importante a questão da corrupção, da gigantesca corrupção. É um ponto que aliás um partido novo como o Chega pode pegar, porque a maior parte dos outros têm sempre pessoas relativamente contaminadas. Como se viu nas audições sobre os bancos. Viu-se ali uma série de situações que ficaram para o esquecimento.
Os internacionalismos são todos iguais. Os nacionalismos esses são diferentes todos e têm agendas diferentes. A tradição do nacionalismo português, até por causa do império tardio, foi uma tradição integradora.
Fala no livro e agora também nesta resposta da extrema-direita e da extrema-esquerda, do ressurgimento ou surgimento das duas. Como é que vê isto na atualidade em Portugal? A chegada ao Parlamento da Iniciativa Liberal e do Chega?
A Iniciativa Liberal é puramente liberal na economia. É liberal em tudo.
Mesmo nos valores?
Exatamente. É-lhes indiferente o aborto, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a eutanásia. Não considero um partido de direita. É um partido liberal. Numa altura em que a própria China é hipercapitalista – capitalismo dirigido, mas é capitalista – não traz novidade nenhuma. Talvez há 30 anos trouxesse alguma novidade. Foi quando apareceram os movimentos de Thatcher, de Reagan, movimentos muito marcados pela ideia de baixar impostos, de tirar aquela permanente invasão do Estado na economia. Numa época de pós-pandemia ou de pandemia, o Estado vai ter de estar presente, sejamos liberais ou sejamos socialistas. O Estado vai ser um facto irremediável de presença na vida pública e na vida económica. Vai ser preciso para injetar os tais recursos.
A direita portuguesa foi sempre uma direita que teve fatores, teve sempre uma forte carga religiosa. Até porque a esquerda moderna, sobretudo a I República, encarniçou-se contra a Igreja. As revoluções matavam sempre padres. O 25 de Abril foi a primeira revolução em que não mataram padres. Em 75, os padres tiveram um papel contrarrevolucionário bastante interessante.
O Chega tem posições mais conservadoras. Tem posições mais determinadas em relação à religião. No fundo, isto vai dar um bocadinho ao Deus-Pátria-Família. Também não há grandes variantes à volta. É um conservador da Europa nacional conservadora. O fascismo é outra coisa. Não necessariamente, mas tem alguns aspetos que se podem considerar um bocadinho neopagãos. Até porque à partida o próprio fundador, Mussolini, e o nacionalismo italiano foi sempre um nacionalismo não direi anticatólico mas muito crítico do Vaticano, até porque a Santa Sé foi um obstáculo à unidade italiana. O nacionalismo italiano, mesmo na direita, era um nacionalismo anticatólico, com muita marca até da franco-maçonaria. Aqui essas soluções não tiveram grande vigência. Até porque Salazar era um conservador não-democrático, nem pouco mais ou menos, mas era um conservador autoritário muito marcado pela coisa católica. A questão da Doutrina Social da Igreja foi também um bordão, uma bengala que esteve sempre muito na tradição das direitas em Portugal. Um certo aspeto solidarista.
A direita em Portugal nunca foi liberal. Foi essencialmente intervencionista. Mesmo o Estado Novo é muito intervencionista na economia, profundamente intervencionista. Nunca tivemos muito, nem em épocas mais liberais… O que o capitalismo português gosta é de encontrar ajudas do Estado. Quando diz que não quer intervenção, quer intervenção para o ajudar. Estes movimentos querem trazer para cá algumas coisas que não têm nada que ver com a tradição continental europeia.
Falou aqui de Deus-Pátria-Família, tendo em conta todas as mudanças sociais que vamos vendo, são valores que estão em desuso?
Estão em desuso onde estão em desuso. Depende dos países. Nos Estados Unidos e no Brasil, politicamente a força de choque destes movimentos direitistas e dos apoiantes quer de Trump quer de Bolsonaro são os evangélicos, muito mais do que os católicos. Porque os evangélicos fazem uma leitura mais direta dos textos tradicionais. São mais tradicionalistas e de certo modo são mais reacionários. Os católicos, na política, tradicionalmente estão divididos. Há sempre uma linha mais progressista e há sempre uma linha mais tradicionalista. Hoje em dia isto também se radicalizou, porque nos católicos temos alguns destes movimentos carismáticos, fundamentalistas, de regresso quase pré-conciliar e temos também movimentos que se aproximam daquilo que eram os partidos comunistas ou dos bloquistas. Os católicos têm mais divisão e mais fragmentação.
Mas não há sociedade organizada que possa prescindir desse tipo de valores, embora com outros nomes e com outras referências.
O que está a acontecer com esses valores é uma coisa muito curiosa. Como foram muito sufocados porque de facto há uma elite intelectual e mediática – mediática não é tanto elite, mas segue a intelectual – que é desesperadamente contra isso. A ofensiva moderna contra isso não foi combater a família, mas foi dizer, por exemplo, “dois homens é uma família”, “duas mulheres é uma família”, como se fosse. Eu tive a sorte de ter uma família assim que é para as pessoas gostarem uma da outra, dentro de determinadas regras. Mas não é só isso. É a criação dos filhos e é a criação de um património que torne exatamente possível essa educação dos filhos e a substância da família. Pessoas podem amar-se e viver juntas. Não precisam de ser uma família. Aí podem ser dois homens ou duas mulheres. É lá com eles. Agora não são uma família. Não têm continuidade. Está bem, podem arranjar barrigas de aluguer ou coisas dessas.
Hoje aquele comunismo das revoluções à Lenine, a queda do Palácio de Inverno, isso tornou-se praticamente impossível. As pessoas que tinham essas ideias perceberam que não é maneira de ir lá. Seguiram o método que é o método gramsciano, que é de facto fazer a cabeça às pessoas. E é contra isso que hoje há reações, até talvez algumas, admito, que sejam exageradas, se quiser usar a palavra, mas que são naturais. Porque as pessoas estão fartas.
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