No final dos trabalhos da assembleia pré-sinodal que acolheu em Roma mais de 300 jovens de todo o mundo para refletirem sobre a juventude, o
documento final mostra um retrato global da juventude e das suas aspirações, desejos e preocupações. O Papa Francisco tinha pedido que os jovens falassem sem filtro, sem vergonha, e este documento, «aprovado por unanimidade», informou o Cardeal Lorenzo Baldisseri, responsável pelo evento, toca muitos dos aspetos da vida dos jovens em todo o mundo, embora deixe, de forma algo surpreendente, outros de fora.
A reflexão dos jovens, convertida neste documento final que foi hoje apresentado, foi dividida em três áreas: desafios e oportunidades dos jovens nos dias de hoje, fé e vocação, discernimento e acompanhamento, e a ação pastoral e formativa da Igreja.
Em vários pontos, os jovens, que escreveram o documento na primeira pessoa, mostrando que tinha sido, de facto, um processo feito por eles em todas as fases, foram fazendo o retrato da Igreja que conhecem.
Jovens pedem mais protagonismo e acompanhamento
Um dos aspetos mais falados durante toda a semana tem sido a necessidade de dar aos jovens maior protagonismo nas suas ações, e o relatório dedica um ponto a esta questão. «A Igreja deve envolver os jovens nos seus processos de tomada de decisão e oferecer-lhes mais papéis de liderança. Essas posições precisam de ser ao nível paroquial, diocesano, nacional e internacional, inclusive em comissões no Vaticano», refere o documento. Segundo os jovens escreveram, eles estão «prontos». «Sentimos fortemente que estamos prontos para ser líderes, que podemos crescer e ser ensinados pelos membros mais velhos da Igreja, por mulheres e homens religiosos e leigos», referem, num dos que poderá ser dos desafios mais difíceis para a Igreja.
Os jovens pedem «formações de liderança para jovens líderes», e algumas das jovens presentes, na assembleia e nas redes sociais, reclamam mais lugares de liderança para mulheres. «Algumas das jovens sentem que há falta de modelos femininos de liderança na Igreja e também desejam colocar os seus dons intelectuais e profissionais ao serviço da Igreja», diz o relatório, que acrescenta que «também os seminaristas e religiosos devem ter uma capacidade ainda maior de acompanhar os jovens líderes».
Outro dos aspetos mais significativos que tem sido falado neste pré-sinodo é o acompanhamento. É um dos maiores pontos de convergência, o que surpreendeu Briana Santiago, uma noviça americana que estuda em Roma, e que esteve a apresentar o documento final. «Sempre tive a imagem da maioria dos jovens como muito seguros de si próprios, a saberem o seu caminho, e fiquei surpreendida com a quantidade de gente, mesmo online, que disse que precisava de um acompanhamento da Igreja, de pastores e outras pessoas que os orientem e guiem», disse à FAMÍLIA CRISTÃ no final da apresentação.

Os jovens pedem, quase exigem, «companheiros na jornada», «homens e mulheres fiéis que expressam a verdade e permitem que os jovens expressem a sua compreensão da fé e da sua vocação».
Pessoas que «evangelizem com a sua vida», e não “santos”. «Essas pessoas não precisam de ser modelos de fé para imitar, mas sim testemunhos vivos. Essas pessoas devem evangelizar com a sua vida. Sejam eles rostos familiares no conforto de casa, colegas da comunidade local ou mártires que atestam a sua fé com as suas próprias vidas», pedem.
Os jovens sabem de quem precisam, e listam as características que esses «mentores» devem ter: ser «um cristão fiel que se envolve com a Igreja e o mundo; alguém que constantemente busca a santidade; um confidente que não julga; que escuta ativamente as necessidades dos jovens e responde na mesma linguagem; que ama profundamente e com consciência própria; que reconhece seus limites e conhece as alegrias e tristezas da jornada espiritual». Alguém cuja «humanidade» permite «reconhecer os seus erros». «Às vezes, os mentores são colocados num pedestal e, quando caem, a devastação pode afetar a capacidade dos jovens de continuarem a envolver-se com a Igreja», alertam no relatório.
Aborto, contraceção, coabitação, homossexualidade e casamento são pontos de discórdia
Uma das tónicas que todos os jovens e responsáveis aqui em Roma têm colocado quando questionados sobre o andamento dos trabalhos é a capacidade de acolher as diferenças de pensamento de cada um. Isto é notório também no relatório final, onde, em assuntos mais polémicos, é possível perceber que as diferenças de opinião eram grandes. No que toca a temas como contraceção, aborto, homossexualidade ou coabitação, o relatório refere que «há grande desentendimento entre os jovens, dentro da Igreja e no resto do mundo», sobre estes temas, mesmo entre aqueles que têm «mais conhecimento dos ensinamentos da Igreja». «Como resultado disto, alguns podem querer que a Igreja mude os seus ensinamentos ou pelo menos permita acesso a uma maior compreensão e formação sobre esses ensinamentos. Outros aceitam estes ensinamentos e veem neles uma fonte de alegria», reconhecem os jovens no documento, que não adianta como os jovens gostariam que a Igreja abordasse estas questões, ou que tipo de alterações poderia a disciplina ter.
Noutros pontos em que a discórdia parece estar na ordem do dia, como a oposição entre tradicionalistas e progressistas, o relatório pede uma convivência mais salutar que o que é observado muitas vezes nos confrontos virtuais que se vão observando. «Alguns de nós têm uma paixão pelo “fogo” dos movimentos contemporâneos e carismáticos que se concentram no Espírito Santo; outros são atraídos para o silêncio, a meditação e as liturgias tradicionais reverenciais. Todas essas coisas são boas, porque ajudam-nos a rezar de maneiras diferentes», reflete o documento.
O relatório reconhece ainda que a relação dos jovens com o divino é «complicada». «O Cristianismo é frequentemente visto como algo que pertenceu ao passado e o seu valor ou relevância para as nossas vidas não é percetível. Enquanto isso, em certas comunidades, a prioridade é dada ao sagrado, já que a vida quotidiana é estruturada em torno da religião».
Críticas à falta de testemunho dos pastores e das comunidades
O Papa pediu que falassem sem vergonha, e os jovens falaram. Acusam a Igreja de, por causa dos escândalos do passado e do presente, ter feito com que a religião não seja «o principal referencial quando os jovens procuram um sentido [para a sua vida, para a sua existência]», e apontam o dedo a muitas paróquias em todo o mundo, «que já não são lugares de encontro», e onde a Igreja surge como «muito severa», associada a um «excessivo moralismo». «Precisamos de uma Igreja que seja acolhedora e misericordiosa, que valorize as suas raízes, o seu património e que ame a todos, mesmo aqueles que não seguem os padrões estabelecidos. Muitos daqueles que procuram uma vida de paz acabam por se dedicar a filosofias ou experiências alternativas», lamentam os jovens.
E é por isso que pedem uma Igreja que seja «comunidade transparente, acolhedora, honesta, convidativa, comunicativa, acessível, alegre e interativa». «Hoje os jovens procuram uma Igreja verdadeira», continuam os jovens no seu relatório, uma «Igreja credível», sem «medo de se permitir ser vista como vulnerável». «A Igreja deve ser sincera em admitir os seus erros passados e presentes, em dizer que é uma Igreja composta por pessoas que são capazes de erros e incompreensões. (...) Se a Igreja agir assim, então diferenciar-se-á de outras instituições e autoridades das quais os jovens, na maior parte, já desconfiam», pode ler-se no ponto 11.
No ponto 7, os jovens afirmam que o afastamento de muitos da Igreja tem que ver com a fé se ter tornado algo «particular» em vez de «comunitário», e acusam as «experiências negativas» que os jovens vão tendo um pouco por todo o mundo «dentro da Igreja». «Há muitos jovens que se relacionam com Deus apenas num nível pessoal, que são "espirituais, mas não religiosos", ou focados apenas num relacionamento com Jesus Cristo. Para alguns jovens, a Igreja desenvolveu uma cultura que se concentra fortemente no relacionamento dos seus membros com a instituição, não com a pessoa de Cristo. Outros jovens veem os líderes religiosos como desligados e mais focados na gestão do que na construção da comunidade, e outros ainda veem a Igreja como irrelevante», refere o relatório.
Uma crítica direcionada aos países desenvolvidos da Europa e América do Norte, como se vê pelo parágrafo seguinte, onde há um elogio das igrejas sul-americana, africana e asiática. «Para outros jovens, eles experimentam a Igreja como muito próxima deles, em lugares como a África, a Ásia e a América Latina, bem como em diferentes movimentos globais; até mesmo alguns jovens que não vivem o Evangelho sentem-se ligados à Igreja. Esse sentimento de pertença e de familiaridade sustenta esses jovens na sua jornada. Sem essa âncora de apoio e pertença da comunidade, os jovens podem-se sentir isolados diante dos desafios», avisam. Um aspeto que já Tomás Virtuoso, um dos portugueses que está na assembleia, tinha referido à FAMÍLIA CRISTÃ, a meio dos trabalhos. «Faz muita impressão a força que a América Latina tem como uma Igreja que caminha em conjunto e coopera umas com as outras. Posso estar enganado, mas não sinto isso na Europa, essa dimensão da Igreja europeia a caminhar junta. A certa altura, os tipos todos tiraram um livro a apontar o que estava lá escrito, e tinham todos o mesmo livro, mesmo sendo de países diferentes. É uma Igreja que caminha em conjunto, não fica na sua capelinha», notava na altura.
Presença essencial nos meios digitais
Falando da «dualidade» Bem/Mal que as novas tecnologias e o ambiente digital representam, o Documento Final da Assembleia pré-sinodal pede «prudência» na sua utilização, por causa dos riscos de «isolamento», mas acrescenta que o impacto das redes sociais não pode ser desvalorizado. «Os ambientes digitais têm um grande potencial para unir, como nunca, pessoas em diferentes partes do mundo. A troca de informações, ideais, valores e interesses comuns é agora mais possível. O acesso a ferramentas de aprendizagem online abriu oportunidades educacionais para jovens em áreas remotas e trouxe o conhecimento do mundo para as pontas dos dedos», refere o relatório.
Neste sentido, os jovens sugerem aos padres sinodais e a toda a Igreja «duas propostas concretas». «Ao envolver-se num diálogo com os jovens, a Igreja deve aprofundar a sua compreensão da tecnologia para nos ajudar a discernir sobre o seu uso. Além disso, a Igreja deveria ver a tecnologia - particularmente a internet - como um lugar fértil para a Nova Evangelização», dizem. E propõem que «os resultados dessas reflexões» sejam «formalizados num documento oficial da Igreja». Depois, propõem que a Igreja aborde «a crise generalizada da pornografia, incluindo os abusos infantis online, o cyberbullying e o impacto que isto causa à nossa Humanidade».
A terminar, os jovens pedem que a Igreja esteja nas «ruas, que é onde a maior parte das pessoas estão». «A Igreja deve tentar encontrar novas maneiras criativas de encontrar pessoas onde elas estão confortáveis e onde socializem: bares, cafés, parques, ginásios, estádios e quaisquer outros centros de cultura populares», pedem os jovens. Além disso, pedem que esta iniciativa sinodal não termine aqui. «Ficamos emocionados por sermos levados a sério pela hierarquia da Igreja e sentimos que este diálogo entre a Igreja jovem e a Igreja velha é um processo de escuta vital e frutífero. Seria uma pena se este diálogo não tivesse a oportunidade de continuar a crescer! Esta cultura de abertura é extremamente saudável para nós», frisaram os jovens.
Não há, no documento, nenhuma referência a um dos assuntos que foi muito falado nos grupos linguísticos, que é a catequese, muito criticada pelo seu formato desatualizado. Nem em relação a temáticas como a mutilação genital ou a gravidez na adolescência, entre questões muito afloradas pela rama, como o tráfico humano ou a pastoral juvenil nos países em guerra.
Este documento será entregue, Domingo de Ramos, ao Papa, durante a missa de Ramos, por um jovem do Panamá, país que irá acolher a próxima Jornada Mundial de Juventude, e vai ser uma das bases de trabalho para a elaboração da Instrumentum Laboris que irá orientar os trabalhos do Sínodo dos Bispos em outubro.
Texto e fotos: Ricardo Perna
A FAMÍLIA CRISTÃ está em Roma a acompanhar todos os momentos desta reunião pré-sinodal do Papa com jovens de todo o mundo. Acompanhe tudo na secção especial do nosso site em http://familiacrista.paulus.pt/sinodo-dos-jovens.
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