Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada são as autoras portuguesas mais conhecidas de livros juvenis. Este ano, a coleção «Uma Aventura» faz 40 anos e tem 64 histórias. Juntas já escreveram 123 livros. Numa conversa cheia de gargalhadas, as duas escritoras contaram algumas histórias e aventuras destas quatro décadas.
A coleção «Uma Aventura…» começou há 40 anos. Como é que olham para este percurso?
Ana Maria Magalhães (ANM) – Foi fantástico.
Isabel Alçada (IA) – No início, nós não nunca imaginámos que teríamos um efeito tão positivo nas crianças e jovens. O nosso objetivo era criar leitores, escrever para que eles gostassem de ler.
ANM – Nunca imaginámos que duraria 40 anos, com os leitores a pedirem mais livros e a editora a pedir este ano, porque fazemos 40 anos, que, em vez de um livro, escrevêssemos dois. Isto é fantástico, não é?
Quando começaram a escrever, inspiraram-se em alunos vossos para as personagens?
IA – Sim. As personagens eram alunos da nossa escola. A Teresa e a Luísa eram gémeas e eram muito engraçadas, muito vivas, com muita atividade e iniciativa. O Pedro era muito bom aluno. O Chico era muito bom desportista e era bom colega, ajudava os mais fracos e assim no recreio. Era daqueles que protegiam os mais pequeninos, que é uma coisa que os professores sempre adoram e que notam. E o João não era de nenhuma das nossas turmas, mas tinha um pastor-alemão que um dia aproveitou que o portão estava aberto e entrou lá para dentro e ficou toda a gente em pânico com medo do cão, e nós inspiramo-nos nessa cena e incluímo-la no Uma aventura na cidade. E ficaram essas duas meninas e dois rapazes.
E tinham esses nomes?
IA – Só mudámos um.
ANM – A Luísa chama-se, na vida real, Bárbara.
E como é que eles reagiram ao verem-se retratados nestas histórias?
IA – Eles gostaram imenso. Na altura, as gémeas souberam e ainda aparecem às vezes na Feira do Livro de Lisboa, agora com os filhos e com os maridos. Os rapazes também gostaram na altura, mas depois perdemos o rasto.
Como vão tendo inspiração para tantos livros?
ANM – Nós temos, ambas, imensa imaginação. Foi um dom que Deus nos deu. Além disso, inspiramo-nos nos lugares onde se passam as histórias. Nós vamos sempre juntas aos sítios onde se passam as histórias. Agora, nas Arábias, em Omã, um país da Arábia, com a pandemia não conseguimos ir. Mas a Isabel já lá tinha ido e trazia toda a recordação e todas as fotografias. A todos os outros sítios fomos juntas. Os lugares são uma fantástica fonte de inspiração. Por exemplo, a Amazónia daria até para três ou quatro livros.
IA – E foi inesquecível. Nós vamos aos sítios, inspiramo-nos nos locais. Tentamos observar com olhos da idade dos leitores e descobrimos sempre coisas muito engraçadas e também nos deixamos interessar por pessoas que conhecemos e que nos ajudam a descobrir coisas engraçadas, que nos acompanham, às vezes só reações de um ou outro no local e que registamos e usamos nas histórias.
As nossas histórias são de ação e mistério e tentamos estar abertas ao exterior. Não estamos ali nunca para falar de nós mesmas, nem de estados de alma. São coisas que existem, que acontecem e que podem ser inspiradoras, porque são inspiradoras para nós, sobretudo quando nós nos pomos na pele de pessoas da idade dos nossos leitores e achamos que podem ser inspiradoras para eles. Mas se não forem para nós, não incluímos, claro.
Que aventuras viveram para escrever os livros?
ANM – Eu e a Isabel já tínhamos ido com as respetivas famílias à Madeira em turismo: praia, piscina, restaurantes. Quando fomos fazer a pesquisa para fazer Uma aventura fomos para o interior.
IA – Toda a nossa vida foi uma vida deambulante em que escrevíamos, visitávamos escolas e dávamos aulas. Uma vida muito cheia. Quando fomos à Madeira para visitar escolas, pediam-nos: «Escreva uma aventura na Madeira.» Depois fomos de propósito para escrever Uma aventura na Madeira.
ANM – Na floresta do interior descobrimos esta casa-abrigo [abre o livro e mostra a ilustração]…
IA – Na floresta laurissilva.
ANM – Esta casa está aberta, tem uma lareira, tem lenha e tem uma mesa e umas cadeiras. Às vezes, cai ali um nevoeiro súbito, as pessoas perdem-se e têm uma casa para esperar. Achamos que isto para os miúdos era delirante. Outra coisa que nunca tínhamos feito era descer nos cestos. Achámos que se era uma aventura, tínhamos de experimentar. Eu confesso que ia com medo.
IA – Ela ia aos gritos. [Gargalhadas.]
ANM – Eles pegam aquilo com cordas e se lhes falha a mão não há maneira de ter mão…
IA – Depois às vezes vai de encontro a um muro e eles empurram com o pé. [Risos.]
ANM – Aquilo é perigosíssimo. Mas toda a gente faz.
E que outras aventuras viveram para conhecer sítios para os livros?
IA – Fomos a sítios realmente incríveis, não é? Por exemplo, o deserto do Sara, Uma aventura no deserto. Quando chegámos, queríamos ir mesmo para o interior para ter a experiência do deserto. Alugámos um carro, mas ir num sem ar condicionado… As janelas abriam de lado. Quase morríamos sufocadas [risos]. Depois chegámos a um sítio e havia uma feira. E o que vendiam na feira? Camelos. Encontrámos tuaregues, com aquelas vestes. Houve uma aldeia onde estivemos e ficámos muito impressionadas com a forma como as pessoas viviam. Fomos visitar uma olaria. E como é que eles faziam a cerâmica? Numa cova enterrada no chão para ser mais fresco. Eles estavam ali e nós só víamos a cabeça do oleiro de fora. Foi uma viagem incrível.
Não tivemos acidentes nem nada. Mas a nossa sensação é que se ficássemos ali paradas no meio daquelas pequenas estradas que atravessavam o deserto, se calhar tínhamos lá ficado muito tempo sem que ninguém nos encontrasse. Foi uma aventura engraçada.
ANM – Fomos a Cabo Verde e não chovia há sete anos. Na primeira noite que passamos em São Nicolau desabou um tufão. Julguei que era o último dia da minha vida.
IA – Foi uma coisa cómica, até. Dizia que havia lá um padre que dizia uns responsos para chover.
ANM – Ah, é verdade, é verdade.
IA – Gostamos muito de falar com pessoas que conhecem histórias locais e tradições, etc. Ele falou-nos daqueles responsos e leu-nos o responso.
Foi antes da chuva? Foi ele que provocou? [Risos.]
IA – [Risos.] Ele ainda por cima começou a ler e nunca mais acabava. Estávamos a ouvir e olhávamos uma para a outra: “O que é que fazemos?”.
ANM – Ainda por cima fomos nós que pedimos para ele ler…
IA – Fomos para uma pensão e a cobertura era de zinco. Começo a ouvir um batuque. Vou à janela. Estava a chover torrencialmente. As pessoas primeiro vieram para a rua com rádios dançar, uns de fato de banho, outros de gabardine. Depois começaram a encher as zonas de leito. Houve inundações. O aeroporto fechou, o porto fechou e ficámos ali retidas. [Risos.]
ANM – Rebentou a eletricidade. Como a água era tirada com bombas elétricas, ficámos também sem água. Eu vi-me negra…
IA – [Risos.] A Ana tem uma imaginação que dá para coisas ótimas e para coisas péssimas. Eu não. Quando é para coisas péssimas faço logo
tchuc [faz o gesto de afastar].
Começaram com estas aventuras. Já escreveram várias coleções juntas. Como é que trabalham e escrevem: ao mesmo tempo ou uma escreve uma parte e outra depois?
ANM – Nós vamos aos mesmos sítios para as duas vermos as mesmas coisas e termos a mesma experiência. Depois fazemos um plano. Quando estamos ambas livres, geralmente a Isabel vem a minha casa, onde estão os nossos materiais. Sentamo-nos à mesa e escrevemos. O melhor exemplo que posso dar é como dois professores que assistiram à mesma reunião fazem uma ata. Um diz uma coisa, outro diz outra. Escrevemos em grupo. Normalmente escrevo eu.
No meio disso, nunca se chateiam ou uma quer ir por um lado e outra por outro?
IA – Debatemos muito a estrutura da história. É claro que, quando temos opiniões diferentes, conversamos. Fomos irmãs mais velhas. Depois tornámo-nos mães, avós, professoras. Portanto, a nossa atitude perante os outros é sempre de moderação e harmonização. Nunca é de rutura, nem conflito. Tentamos sempre encontrar o que pode unir e não aquilo que pode ser de rutura. Se uma tem uma ideia e gostamos as duas, está a andar. Se uma não gosta, se diz “não, não me apetece, não me parece bem”, vem outra ideia. Temos também esta sorte e esta bênção de ser muito fácil para nós, graças a Deus, as ideias surgirem.
ANM – Somos muito parecidas. Tivemos infâncias muito parecidas, embora não nos conhecêssemos: famílias grandes, muito carinhosas com as crianças.
IA – Outra coisa que as duas também temos muito convictamente é que não se devem expor os mais novos a problemas que eles não conseguem resolver. Se eles não conseguem resolver, só para sofrerem, não! Têm muito tempo para encontrar aquilo que é problemático na vida. Nós achamos que não é assim que se educa. É ao contrário. Dá-se força com uma infância harmoniosa e protegida.
ANM – Para o resto da vida.
IA – A proteção da infância é essencial e toda a gente tem o direito de ter proteção na infância.
O que foi mudando em vós com estes 40 anos? No vosso processo criativo mudou alguma coisa?
IA – No primeiro e segundos livros ainda estávamos à procura para conseguir encaixar tudo bem. A certa altura descobrimos como era. É mais as coisas que vêm de fora: os telemóveis entraram, os computadores, os riscos de hoje não são os mesmos riscos que se viviam antigamente, as vivências dos mais novos hoje não são exatamente as mesmas. No íntimo das pessoas não mudou assim tanto…
ANM – O ritmo das histórias acelerou porque o ritmo da vida acelerou. Hoje em dia vivemos todos a 100 à hora.
IA – Quando começámos a escrever, o ritmo em que se vivia era um bocadinho lento para nós. [Gargalhadas.] Porque nós temos esta idade vetusta e adoramos rapidez. [Gargalhadas.]
Escreveram várias coleções juntas: «Viagens no Tempo», «Ler dá prazer», «História de Portugal», «Histórias e lendas», «Livros do dia e da noite», «Asa Delta», «Floresta mágica», etc… Porque é que fizeram tantos livros juntas?
IA – Já escrevemos 123 livros juntas. Quando éramos professoras, escrevemos uma história para os alunos que tinha só 12 páginas e que foi o embrião de Viagem ao tempo dos castelos. Os miúdos gostaram bastante, os nossos colegas também quiseram a nossa história nas aulas deles. Quando pensámos em escrever para publicar, foi Uma Aventura na Cidade. Fizemos um inquérito na escola e diziam todos que gostavam de histórias de mistério e ação. Depois pensámos que podíamos fazer uma espécie de romance histórico para mais novos e o primeiro foi Uma viagem ao tempo dos castelos. Depois foi Uma visita à corte de D. Dinis, e por aí fora.
ANM – Fomos contactadas por grandes historiadores. Depois, quando tivemos netos, começamos a escrever para mais pequeninos, histórias com animais. Tem sido uma vida muito intensa. Até porque nunca abandonámos. Eu só me reformei ao fim de 40 anos de serviço.
IA – Houve uma altura em que o jornal Público nos desafiou para escrever histórias.
Em fascículos, não era?
IA – Sim. A certa altura resolvemos escrever sobre histórias e lendas da Europa. Depois publicámos em livro com mais algumas histórias além das que tinham sido publicadas no Público. Depois fizemos Histórias e lendas da América. Fizemos de África.
Começando nunca mais se para, não é? Há sempre mais por onde escrever?
IA – O que se pode fazer não é infinito, eu sei, porque depende do tempo de vida que nós temos. Mas nós não temos a sensação de limite. O que é ótimo.
ANM – Nós somos muito trabalhadoras. Mas isso não significa, e isso é importante que se diga, que deixamos de prestar a maior atenção à família. A família está sempre em primeiro lugar. Não temos de estar pasmadas a olhar para eles e eles pasmados a olhar para nós. São famílias com maridos que também trabalham muito, os filhos tinham muitas atividades. Mas se precisassem de nós, parava tudo. Eles estão em primeiro. Nunca trabalhávamos à noite. A partir das sete horas cada uma na sua casa com a sua família. Isso foi muito importante, porque há pessoas que embarcam no entusiasmo da profissão e…
IA – E descuram…
ANM – E descuram. Há tempo para tudo, se a pessoa quiser.
Com tanto contacto com jovens e escolas, qual é o papel da família neste gosto por ler?
IA – A família tem um papel fantástico, se for ativa nesse sentido. As famílias que leem com as crianças quando elas ainda são pequeninas, que mostram livros, que valorizam leitura.
Sabemos que o nosso país é desigual. Há pessoas que não têm consciência da importância do seu papel como pais, mães, avós, padrinhos até, junto dos mais novos. Não oferecem livros. Uma das coisas que está demonstrada cientificamente é que oferecer livros é muito positivo e cria leitores.
Quando a família não atua, nós as duas temos essa atitude, não temos de as culpar. Muitas vezes, não têm culpa porque não têm consciência. Então o que é que nós temos de fazer como sociedade? A escola atuar. A escola nunca substitui a família, mas a escola pode contribuir e muito para a leitura dos mais novos. O nosso país tem feito alguma coisa. Pode evidentemente fazer mais.
Se for a família e a escola, tanto melhor.
Gostava de dizer: se as crianças não gostam de ler, deve ser uma forma subtil de as interessar. Não deve ser à força. A leitura não condiz com obrigação. Se for uma história que eles não gostam, o melhor é passar para outra. Obrigá-los a ler o que não gostam é um erro crasso.
Texto: Cláudia Sebastião
Fotos: Ricardo Perna
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