«Na China muitas famílias têm a imagem de N. Sr.ª de Fátima em casa»
04.04.2017
Santiago não é o seu nome verdadeiro. Ele é um diácono da Igreja clandestina da China, e por isso nem o seu nome verdadeiro, nem a sua cara podem ser mostrados, sob pena de que, ao regressar ao seu país, seja preso, torturado, ou desapareça num qualquer calabouço de uma prisão chinesa. Há 3 anos, esteve connosco, ainda seminarista, mas agora, já ordenado diácono, volta para contar a difícil situação dos católicos chineses que, apesar das dificuldades, continuam com uma fé tremenda e uma devoção forte a Nossa Senhora de Fátima.
Terminou a sua formação em Espanha e regressou à China. Foi tranquilo o regresso?
Sim, não tive nenhum problema. Ao longo dos anos sempre tive muito cuidado em não falar muito publicamente. Tive de ir vestido à civil mas, assim que cheguei, comecei a ajudar em algumas paróquias.
E foi logo ordenado diácono?
Quando cheguei fui para uma paróquia ajudar nas atividades de verão, e pouco tempo depois fui ordenado diácono em segredo, em agosto de 2014. Como o meu bispo está em prisão domiciliária, não pode ordenar com liberdade e em público, e a ordenação foi em segredo. A minha família não pôde participar, porque ninguém podia saber que naqueles dias iriam ocorrer ordenações. Estiveram alguns seminaristas presentes, uns sacerdotes, o meu bispo e eu. Foi uma ordenação muito simples.
E isso deixou-o triste?
Nada disso. Só senti alegria por estar a ser ordenado diácono. Foi um passo muito importante, porque já esperava há muito tempo que surgisse esta possibilidade de me entregar. É algo importante para o serviço à Igreja e pela salvação das almas.
Deu-lhe novas forças?
Sim. No mesmo dia em que fui ordenado diácono, senti-me uma pessoa nova, com uma força nova, quase total, porque já sou de Cristo, pertenço a Cristo. Pela ordenação diaconal, pertencemos a Cristo para servirmos aos outros.
Notou muitas diferenças nos cristãos?
Eles estavam na mesma. A situação não mudou, e isso dava-me mais força para os servir. Vejo que na Europa os leigos têm todo o acesso aos sacramentos, à Missa de domingo, e na China não. Via a necessidade e a sede dos fiéis, e isso dava-me muita força. Continuava a ver muita fé em todos os cristãos. Os problemas eram os mesmos, porque o regime quer controlar todas as religiões, sobretudo a Igreja Católica, e quer obrigar a que os sacerdotes e bispos sejam da igreja oficial. Não há acesso às missas, não há muitos sacerdotes que os possam acolher e acompanhar, e por isso há grande necessidade dos fiéis terem sacerdotes que cuidem deles e os acompanhem.
O número de cristãos da Igreja clandestina está a crescer?
Creio que sim. À medida que as comunidades e os sacerdotes compreendem a importância da evangelização, falam de Deus aos outros e eles aderem. Por isso, os sacerdotes pedem aos fiéis que anunciem o nome de Cristo aos outros. A percentagem é difícil de calcular, porque não há números oficiais, mas sinto que está a crescer.
O filme Silêncio, de Scorsese, fala da perseguição aos cristãos japoneses no século XVI, mas poderia ser acerca dos cristãos chineses do século XXI?
Nunca vi o filme, mas sei que fala da perseguição aos cristãos. A cultura japonesa não é igual à chinesa, mas no fundo, pelo que ouvi, o filme quer transmitir a energia e a força da fé como ajuda aos fiéis. Este espírito de viverem firmes na fé é o mesmo que animava os cristãos do Japão e que anima os cristãos chineses hoje.
Sente essa força nos cristãos da China?
Sim, porque a fé é a mesma. A situação é difícil, mas é a fé que nos sustém. Quando falo com os meus pais, eles contam-me que, nos meus tempos de infância, a situação era muito mais complicada. A minha mãe dizia-me sempre que era a fé que lhe dava mais forças, porque a fé dava-nos a energia para vivermos o dia a dia.
A China está quase fechada ao exterior. Como é que os cristãos se mantêm em contacto com Roma, ou com as notícias de Roma e as palavras do Papa?
Não recebemos quase notícias nenhumas. Quase todas as páginas de outros países estão bloqueadas, mas na do Vaticano podemos entrar. O problema é que as partes que estão traduzidas em chinês são muito poucas, e sabemos muito pouco sobre o que vem de lá. Para muitos chineses, o mundo é muito desconhecido. Se nunca saíram do país, não conhecem o mundo, porque não há internet e as notícias que se difundem no país são manipuladas para servir alguns interesses. Tal como a China é uma realidade muito desconhecida para as pessoas de fora, o resto do mundo é desconhecido para os chineses.
Isto é uma ação do governo, para fazer com que as pessoas não conheçam outro mundo, para que pensem que o mundo chinês é o único que existe e nada mais se faz diferente.
Como é então feito o trabalho de evangelização?
O mais fácil e eficaz é evangelizar as pessoas mais próximas, família e amigos. A eles, falamos de Cristo e da fé, que é a base da nossa vida. Muitas vezes também se evangeliza com o testemunho de vida, porque os que não conhecem a Igreja, podem ver este testemunho e esta figura de Cristo nos cristãos, e quando falam com eles percebem que eles também têm esta sede de conhecer um Deus que lhes pode mudar a vida.
Uma evangelização muito baseada na Bíblia e nas origens de tudo?
Sim, porque a Bíblia é a base da nossa fé, e muitas vezes, falando dela, permite-nos perceber o sentido que tem na nossa vida. Na China, muitos não creem em nada. Não é culpa deles, porque nunca tiveram ocisão de conhecer a religião. A base que nos pode ajudar muito para evangelizar na China é a Bíblia. O facto de não haver liberdade também pode ser um obstáculo para fazer com que as pessoas não queiram aderir.
Mas referiu já que, apesar disso, o número de católicos continua a aumentar… A fé é mais forte que os obstáculos?
Sim, claro. No fundo, é o Senhor que está atuar, é o Espírito Santo que nos ilumina, e a força divina é tão potente que pode entrar na vida e no coração das pessoas que ainda não conhecem a Deus.
«Na China muitas famílias têm a imagem de Nossa Senhora de Fátima em suas casas»
Há umas semanas circulou um vídeo com peregrinos chineses que se aproximavam do Papa, numa audiência geral de quarta-feira, cheios de fé, com uma imagem de Nossa Senhora de Fátima nas mãos. Há uma relação dos fiéis chineses com Nossa Senhora de Fátima?
Sim. Desde pequeno, os meus pais ensinaram-me a rezar o Rosário e, no final, uma oração especialmente dirigida à Virgem de Fátima. Temos canções dirigidas a ela, porque a figura da Mãe é muito importante. Na Igreja perseguida há muitas dificuldades humanas, mas sabendo que temos uma mãe tão boa, tão potente, que pede e intercede por nós e nos pode apoiar. Na China temos muito presente a Virgem de Fátima nas nossas orações.
Este é também um ano especial para vós, por causa do centenário?
Sim, sim, a data será celebrada também na China. Este é um acontecimento para a Igreja universal, porque a mensagem que nos transmitiram é muito importante e atual para o mundo de hoje. Não vamos poder vir peregrinar nem estar com o Papa, mas a oração que fazemos recorda este acontecimento muito importante.
Gostaria que os peregrinos de Fátima rezassem pelos cristãos da China?
Como a Igreja é universal, somos todos irmãos e as pessoas daqui [de Portugal] compartem da nossa dor. Podemos sentir a unidade na fé de outros católicos e outros irmãos que sabem que não podemos viver como eles a festa do centenário de Fátima.
E também os pastorinhos são figuras conhecidas na igreja perseguida na China?
Sim, são figuras muito queridas, porque sabemos que as três crianças são os videntes da Virgem. Não conhecemos muito da sua vida, mas as imagens deles são muito importantes para nós, porque foram eles que viram a Virgem, e isso é uma figura que nos ajuda a aprofundar a nossa fé.
E há figuras de Nossa Senhora de Fátima nas casas dos cristãos chineses?
Sim, na China muitas famílias têm a imagem de Nossa Senhora em suas casas. Não é uma imagem que precise de estar escondida. Nos tempos dos meus pais isso não seria possível, mas hoje é possível.
Como se vive com duas igrejas católicas no mesmo país?
Desde que o Governo criou a Igreja oficial, começou a obrigar os sacerdotes e bispos a serem da Igreja oficial, e criou uma distinção. Uns quiseram ser da Igreja oficial, e seguir ao Governo e não ao Papa, e os outros, por causa da perseguição, foram-se escondendo e têm de viver de uma forma muito distinta. E a diferença começa a notar-se. Quando um bispo é nomeado pelo Governo, a sua diocese torna-se uma diocese oficial, e o bispo pode exercer o seu ministério. Se o bispo não quer seguir a igreja oficial, o governo nomeia outro bispo para a igreja oficial.
E o que acontece com esse bispo?
Durante algum tempo, nestas dioceses havia dois bispos, um da igreja oficial, outro da clandestina. Mesmo a diocese fica com outro nome, para se dividir as duas correntes. Os bispos que não se submetem ao regime vivem a sua fé escondida, mas muitas vezes são presos, torturados, e desaparecem depois de serem levados pela polícia. O mesmo acontece com sacerdotes. Com os leigos, o que sucede é uma estratégia de medo, pois são presos alguns dias e depois voltam a casa, principalmente fiéis que prestem serviços mais visíveis nas dioceses.
Há sacerdotes que são torturados para que adiram à igreja oficial, e há menos de dois anos um sacerdote foi tão torturado que ficou com doença mental, e deixou de ser ele próprio, por causa da tortura.
E as pessoas que são torturadas resistem?
Nunca conheci nenhum que tivesse recusado a sua fé e mudado de Igreja depois de tortura. Mas sei de bispos e sacerdotes que aderiram à Igreja do Estado por causa da tortura. Há um bispo que foi padre da Igreja clandestina e esteve mais de dez anos preso, até que decidiu mudar para a igreja oficial. Hoje, é bispo de uma diocese oficial e o bispo dessa diocese, que faz parte da igreja clandestina, está desaparecido.
E o que implica aderir à Igreja do Estado?
A principal mensagem é estar em comunhão com o Papa ou não. Desde que o governo criou a Igreja, sempre a chamou “a Igreja da China”, autónoma e independente de Roma. Mas nós queremos fazer parte da Igreja que está no Vaticano, e é por isso que não podemos fazer parte da outra Igreja. É o governo que nomeia os bispos, porque o Papa não tem direito, e é assim que funcionam.
Nos últimos anos, o Papa tem tentado negociar com o regime chinês a resolução deste problema, mas para mim isso não será fácil. Negociar com um regime totalitário que se comporta desta maneira, tão radical, vai ser difícil. Não podes falar de direitos humanos, liberdade religiosa, e um país com um regime tão fechado em si mesmo, que decide tudo, o diálogo é muito difícil. No fim do Ano da Misericórdia, houve muitas entrevistas que diziam que o Papa iria fazer algo com a Igreja na China, mas não se decidiu nada, porque há coisas tão difíceis com as quais não se pode negociar.
Não será nunca possível essa comunhão?
Se a Igreja está debaixo do controle do comunismo, não se pode. Os princípios do Estado são contrários aos direitos humanos, portanto pouco se pode fazer enquanto a realidade for essa. Mas confiamos em Deus, e Ele está a atuar, segundo a sua vontade, e por isso sabemos que o mais importante é viver a fé em Verdade, e ajudar os fiéis a viver a fé e, logo, a ajudar os outros que não conheceram a Cristo. Não podemos falar de uma maneira pública ou livre, mas no fundo Deus está a atuar por nós e connosco.
Texto e fotos: Ricardo Perna
Recorde aqui a primeira entrevista de Santiago à Família Cristã, quando era apenas um seminarista: