Neste Dia da Mulher, entrevistamos Nádia Piazza, a presidente da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. O dia 17 de junho de 2017 mudou a sua vida. Morreu o seu único filho e a família que tinha em Portugal. Natural do Brasil, mas com ascendência também italiana, de advogada discreta passou a líder da região e conhecida em todo o país.
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A Nádia diz que sente que tudo na sua vida a preparou para o que aconteceu naquele dia do incêndio, 17 de junho de 2017. Sente de facto isso? Porquê?
Totalmente. Os lugares onde você viaja, os cursos que decide fazer, as pessoas com as quais aprende coisas, que conhece, tudo prepara. Foi um encaminhamento para me preparar para esse dia. Sempre fui uma pessoa muito discreta. Aqui em Figueiró dos Vinhos, só trabalho. Não tinha grandes vínculos cá. Não tenho família cá. Tinha a minha família e poucos amigos.
Nem queria fazer Direito, mas tudo me foi encaminhando para aí. Há também uma característica que é muito minha que é ser muito pragmática. Eu vejo um problema e procuro uma solução.
Fazia parte, por gosto, na Câmara Municipal de um projeto de gestão integrada de uma ribeira, com aldeias protegidas com zonas de tampão com árvores que dão lá, etc. Eu estava justamente a fazer esse trabalho na Irlanda no dia do incêndio. Sim, a minha vida estava toda sendo preparada para esse dia.
Mas esse dia também faz com que a Nádia discreta se torne numa líder não só na região mas no país.
Foi por necessidade. É um filho! O meu único filho! Estou em Portugal há 17 para 18 anos. Vim para Portugal estudar. Fiquei por amor, continuei em Portugal separada por amor. O meu filho tinha um pai, o pai merecia aquele filho. Abdiquei de estar com a minha família, toda ela no Brasil, há 17 anos, de ver os meus pais envelhecerem. Abdiquei disso por uma família que morre toda. E a gente para e diz assim: “Que é que eu vim cá fazer? O balanço que eu faço daqueles 18 anos queimou.” A gente perde o medo! Era omissão. Eu não podia estar calada. Mas não é natural, não é uma coisa que eu goste: expor-me.
No seu caso, o facto de ser uma mulher líder, à frente da associação, uma mãe que perde o seu filho, não há quem diga: “Mas como é que ela consegue e não fica fechada em casa?”
Eu fico fechada em casa. Eu fiquei muitos meses fechada em casa… A sede da associação era aquela mesa [aponta para a mesa da sala]. os meses mais produtivos da associação foram naquela mesa, grávida.
Descobriu que estava grávida no dia antes do incêndio, não é?
É. Aquela hormona da gravidez deu-me uma genica muito grande. E depois a revolta. Acho que é o facto de ser mulher, conseguir fazer muita coisa ao mesmo tempo. Mas há sacrifícios. Foi com muito sacrifício e há consequências. Não é fácil ser mulher, estrangeira, no interior… Apesar de já ter sido assimilada pela sociedade, não deixo de ser mulher. Ser mulher, querer ser uma líder e tudo mais, há sempre um homem melhor posicionado. Aqui não havia ninguém para vencer. Eu já tinha perdido. O sacrifício era fazer passar a mensagem e a mensagem sem ruído.
Como vê esse seu papel? Diz que era omissão não fazer nada, mas também sente que é a sua missão?
Completamente. É o que eu devo ao meu filho. É a homenagem que eu lhe devo. Ainda tenho as cinzas dele cá em casa, deles…
Foi uma missão, é uma missão. No final, as lições e a experiência vão ser minhas e das pessoas que efetivamente me tiveram amor e me acompanharam nessa dor. Um casal que tenha perdido um filho é preciso ser um casal com muitos anos juntos para se manter junto e manter firme. 79% dos casais que perdem um filho separam-se. É o meu caso… Não é fácil. As pessoas não sabem o que é o luto…
Já conseguiu fazer o seu luto?
Não sei. Talvez não tenha começado ainda… É uma ferida que não fecha, que não sara. Eu consigo rir-me, mas a ferida está lá. O Santiago dá uma razão para estar bem. Tenho de estar bem. Deus dá a força do tamanho que a gente precisa.
Tem aqui na sala fotografias com o Papa Francisco e o seu filho Santiago, de cuja gravidez soube na altura do incêndio. Foi importante para si estar com o Papa?
Foi uma coisa linda que aconteceu. O Luís [que faleceu no incêndio] não tinha sido batizado. O pai era ateu, era nove anos mais velho do que eu, e eu cedi. A gente só dá valor a isso quando morre alguém que amamos muito. Quando o Luís morre, a minha mãe veio ter comigo e fez uma oração especial. Velámos três corpos ao mesmo tempo e ele foi cremado com o pai e a avó.
Eu falei com uma pessoa amiga, que conhece D. Tolentino Mendonça. E foi preciso ele estar no Vaticano para conseguir uma audiência com o Papa. Porque era aquele Papa, argentino, franciscano. Fui lá pelo Luís perguntar: o Reino dos Céus é o reino das crianças? Qualquer dúvida que eu me punha se o meu filho estaria perdido mexia muito comigo. Fui ouvir o que o Papa dizia. Rezámos por ele. Estivemos na missa, muito bonita, às sete da manhã em Santa Marta e levei o Santiago. Conversámos. Ele abençoou o Santiago, que ainda não foi batizado, mas vai ser.
Ficou mais descansada?
Fiquei! O reino dos Céus é o reino das crianças. Deus é misericordioso; mais do que tudo, ele é misericordioso. Foi um momento muito, muito especial. É o que me tem mantido forte. Dizem que a espiritualidade é mais forte do que a medicação. E eu passei esse período todo sem medicação.
Em 2017, as primeiras reuniões da associação foram quase informais, de choque do que tinha acontecido, não é?
Ninguém tinha resposta para nada. Andávamos todos sozinhos para um lado e para o outro à procura das pessoas. Não havia comunicações. Não conseguíamos falar com elas, não sabíamos se estavam em hospitais, se estavam realojadas. Os primeiros dois dias foram para isso: 19 e 20 era tentar descobrir o paradeiro das pessoas ou dos corpos.
Quando a gente descobria que o carro tinha ardido e que tinha x pessoas dentro… Só sabiam dizer se era homem, mulher, grande ou pequeno. No nosso caso, eram quatro carros e três arderam. Pelo número de pessoas, a gente chegou à conclusão que tinham morrido nove pessoas.
Tinha sido mau demais para ser verdade. Era inédito. Marquei uma reunião. Fui um bocado este motor de marcar as reuniões. Não me assumi como líder de nada. Simplesmente convidei as pessoas. Convidei o Xavier Viegas [coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra] para estar presente na primeira reunião. Havia muita gente que usava óculos escuros. Muitos não falavam.
Sabe qual foi a nossa primeira meta? O nome de todas as pessoas que faleceram. Veja quão hermético é o nosso Estado! O Estado está sempre em negação.
Perceberam logo o que iam fazer enquanto associação?
Não, foi tudo orgânico. Primeiro: porque é que morreram aquelas pessoas, como é que elas morreram daquele jeito, o que tinha falhado? Isso é que era importante. Não era dinheiro, não era nada disso!
Eu conhecia a minha família. Conhecia o meu ex-marido. Foram 15 anos de casamento, uma pessoa fora de série, muito, muito responsável. Engenheiro civil, eu sabia muito bem que ele nunca se ia pôr em risco, ao filho, à avó, à mãe e tudo mais de ânimo leve. Como é que aquelas pessoas se colocaram naquela situação?! Não se colocaram. A situação é que veio ter com elas. E veio ter com elas porquê? Mal eu sabia que viria a descobrir que este país não tinha avisos, não tinha prevenção. Não tinha nada estruturado. A ANPC [Autoridade Nacional de Proteção Civil] falhou em toda a linha em termos de meios e desvalorização dos fogos. Depois: aquelas falhas que aconteceram no princípio, os meios não foram afetados e poderiam ter apagado o fogo logo, sobretudo numa região altamente crítica em termos de combustível.
Foi também para darem poder às pessoas para se protegerem e não ficarem dependentes do Estado que avançaram com as aldeias resilientes e os abrigos coletivos?
Sim. Quando tudo falha, falha mesmo. Fomos buscar exemplos ao Canadá aos Estados Unidos. Nós tivemos cá esses investigadores todos, partilharam connosco. Participámos nas investigações.
É uma situação apocalíptica. As pessoas têm de saber o que fazer. O projeto nasce assim, sempre com parcerias. Vinham ter connosco alguns parceiros bons de proteção e socorro. Era de baixo para cima, com as pessoas, 20 aldeias, 100 pessoas. No início, as pessoas estavam muito sensibilizadas. Mas depois vai passando o tempo e começam a esquecer, pensam que não vai voltar a acontecer e depois você vai vendo quem é que efetivamente aprendeu a lição.
A segunda luta foi que os relatórios não fossem dúbios e fossem independentes, porque eu sabia que em tribunal tudo o que fosse dúbio não assumia responsabilidade.
A versão oficial cai e fica a versão real. Todos os relatórios nos deram razão. Depois: as conclusões têm de ir para o terreno e nasce a AGIF [Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais], a estrutura de missão e fomos ouvidos como stakeholders. Nasce a Comissão para a Saúde Mental com o Dr. Leshner e agora reunimos com a ministra da Saúde para reativar isso. As conclusões desse relatório não estão no terreno, que era dar formação às equipas técnicas de ação social e de saúde para acompanhar na saúde mental em situação de catástrofe.
Não está a ser feito?
Não! Nós tínhamos sinalização de crianças que estavam há 15 meses à espera de consulta de psiquiatria no Hospital Pediátrico de Coimbra. Os filhos do Rui Rosinha [bombeiro ferido nos incêndios de junho de 2017 e que sobreviveu com 85% de incapacidade] estavam há 15 meses à espera de uma consulta de psiquiatria! E não era caso único! Como é que isso era possível?! Estamos a falar de crianças, pré-adolescentes!
Fomos reclamar que se mantivessem os cuidados de saúde mental, que os psiquiatras não mudassem como quem muda de roupa e que as conclusões nacional ao nível desse estudo fossem aplicadas.
Este é um excerto de uma entrevista que pode ler na íntegra na FAMÍLIA CRISTÃ de março de 2019.
Texto: Cláudia Sebastião
Fotos: Ricardo Perna
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