A Ir. Agnés Mariam de La Croix é superiora da comunidade de S. Tiago Mutilado da congregação das Monjas da Unidade de Antioquia, uma comunidade de 15 monjas que vivem em Damasco, na Síria, no centro de uma guerra civil que dura há anos e já levou a vida de centenas de milhares de pessoas. Fala na primeira pessoa sobre as dificuldades que passam, e que ela sentiu na pele, tendo sido obrigada a abandonar o mosteiro para segurança do resto da comunidade. Uma religiosa que fala do que vê, num retrato nem sempre igual ao que nos chega por outros meios, numa longa entrevista exclusiva à Família Cristã feita por correio eletrónico a partir de Damasco, que vale a pena ler.
Como está a situação atual em Damasco?
Damasco atualmente está mais estabilizada do que no passado. Já não há muitos bombardeamentos indiscriminados sobre a população civil, devido a negociações entre o Ministério da Reconciliação e as fações da oposição moderada. Isto dá bons frutos e ainda para mais as zonas conflituosas a que se chama a Ghuta (a Ghuta este e a Ghuta oeste) estão totalmente cercadas.
Consegue confirmar que o Daesh está a ser travado e a ficar mais fraco, conforme os relatos que nos vão chegando?
Não temos os dados militares e diplomáticos nem somos peritas. Vivemos com as pessoas e estamos também no terreno, às vezes em lugares de muito dificil acesso, como na semana passada em que visitei Aleppo e depois toda a região de Homs, Hama, logo ao lado de Idleb, em zonas limítrofes à presença do Daesh ou da Jabhat al Nousra.
Sabemos que o Daesh perdeu terreno, mas o que nós constatamos é que ele obtém ainda muito apoio em armas, em meios de financiamento e em ajuda de inteligência para poder manobrar no interior da Síria e continuar a fazer muito mal, a estender o reino da morte e da destruição.
A ajuda internacional não está a funcionar?
Nós esperamos que os dirigentes do mundo tenham sabedoria e convertam o seu coração, para não mais utilizarem meios tão bárbaros para desestabilizar a região e conseguir redesenhar as fronteiras, com grande prejuízo das populações inocentes que vão perder tudo. E o que se está a perder na Síria é este pluralismo que era uma verdadeira mensagem para o mundo, quer seja religioso, ético ou mesmo político, que é de vivermos juntos em paz, em harmonia, sem discriminação e sem ódio de espécie nenhuma. Isto estamos a perdê-lo, pois o que faz o Daesh é proclamar guerras religiosas e discriminações que fazem com que muitas pessoas se refugiem na sua identidade religiosa para fazer frente a tais agressões. E sobretudo os que estão verdadeiramente a perder nas zonas do ISIS são as minorias cristãs, que infelizmente estão a abandonar as suas terras ancestrais, onde desde há séculos eles tinham elaborado uma das mais brilhantes culturas, a cultura cristã mesopotâmica, que remonta ao 1º século do cristianismo.
Quais são as necessidades da população que estão a apoiar?
Toda a ajuda é necessária e bem-vinda. Nós podemos receber e pedimos leite para as crianças porque as ONGs não trazem leite para bébés porque querem que a as mães lhes dêem do seu leite, mas infelizmente as mães sírias perderam o seu leite. Temos necessidade de fraldas para adultos, porque como eu disse há um grande número de pessoas deficientes e sobretudo tetraplégicos que disso têm necessidade. Precisamos de ajuda alimentar porque é o que há de mais básico, pois há sempre novos refugiados que chegam, novos deslocados que precisam de uma ajuda urgente. E concerteza medicamentos crónicos. Mas isto é a ajuda a que se chama a ajuda de urgência, mas agora, se realmente se quiser ajudar é em projetos de desenvolvimento, suscitar trabalho, empregos.
Estamos a trabalhar com organizações internacionais e agências das Nações Unidas para criar quintas modelo, ateliês de costura, de velas, para criar artesanato. Uma campanha seria bem-vinda, sobretudo em cada país ao nível do governo, do ministério dos negócios estrangeiros, há sempre algum dinheiro para ajudar no exterior do país. Nós somos já ajudados pelo ministério dos negocios estrangeiros holandês que é realmente generoso e que nos permitiu ter 2 hospitais móveis completamente equipados assim como mais de 20 000 porções alimentares para as cidades de Alepo, Idlib e Hassake. Então todo o ministério dos negócios estrangeiros que quiser juntar-se a este esforço seria bem recebido.
Estão a «demonizar» Bashar Al-Assad
Apesar da ameaça do ISIS, muitos relatos mostram que Bashar Al-Assad também está a matar muitos sírios e tentar permanecer no poder por tanto tempo quanto possível com violência desnecessária para com os cidadãos. Qual é a sua opinião sobre as ações do presidente Assad?
Acho que é uma descrição esteriotipada de uma operação de demonização. Não há um responsável político que pode infligir ao seu povo um tal tratamento e permanecer no lugar... A realidade é que hoje, e nós devemos dizê-lo, toda a população procura que o exército a proteja. Ora o exército... é o exército sírio...! E o presidente, é o presidente sírio. É ele que é legítimo, é ele que é reconhecido pelas Nações Unidas, o seu embaixador tem assento nas Nações Unidas e fala em nome do povo sírio. A verdadeira realidade é que há responsáveis neste mundo que querem destabilizar a Síria e para destabilizar a Síria é preciso destabilizar o governo da Síria. Querer destronar um presidente é equivalente a decapitar um país e decapitar um país é infligir à população sofrimentos muito maiores que a violência que pode ser feita por um partido ou por dirigentes, porque esta violência é limitada: são alguns milhares de pessoas que são (e supondo que é verdade...) objeto de violência, de sequestros e de condutas agressivas. Mas quando se decapita um Estado, são milhões de pessoas, e como o vemos na Síria.
Aliás, antes dos acontecimentos, ditador ou não ditador, a Síria era o país árabe mais próspero. Nós vivemos aqui 20 anos, havia então uma estabilidade, uma segurança enorme no bom sentido, quer dizer que se podia viajar às 3 da manhã e nunca tivemos nenhum incidente, não havia o banditismo, não havia criminalidade... agora que uma minoria se aproveite... pergunto-me... aquele que não tem nada “em sua casa”, que lance a primeira pedra. Nós não entramos em detalhes políticos, senão não faríamos mais nada: se começamos a olhar à lupa o que faz cada um dos dirigentes pelo mundo fora...
As forças Internacionais devem remover Bashar Al-Assad do poder, como fizeram no Líbano ou Iraque?
Quer dizer... eu acho que esta questão não se devia colocar, porque se se continua a considerar que o que se passou no Iraque era uma coisa boa, eu não posso dizer nada!... É como se não se quer ver... Apesar de tudo o que Saddam Hussein era, para nós o que aconteceu no Iraque foi um crime odioso que destabilizou um dos maiores países do mundo árabe e até agora fizeram dele um estado desacreditado, falido, que dividiu o país e que criou desgraças sem nome. Não é certamente uma referência... E o Líbano também não... agora compreendemos melhor... eu sou libanesa. Vivendo na Síria compreende-se melhor o que se passou no Líbano, nós não sabíamos... era este intervencionismo nefasto: é surdo, um intervencionismo em surdina e um crime contra a humanidade e a História não perdoará... Nós pedimos com firmeza, porque somos testemunhas do que sofre a população.
Qual deve ser o papel da ONU ou da comunidade internacional?
Infelizmente, e segundo a nossa experiência, estas Nações Unidas são muito fracas, são dirigidas por algumas nações superpoderosas que ditam a sua vontade e manipulam a aplicação dessas leis internacionais a seu belo prazer e as infracções a essas leis internacionais levam às tragédias sem nome das quais nós somos testemunhas. É por isso que nós verdadeiramente reclamamos, esperamos, um reforço da autoridade das Nações Unidas de maneira que haja esta liberdade de fazer frente aos interesses das superpotências que orientam a cena internacional para os seus próprios interesses, sem olharem aos interesses das populações em causa.
Os sírios «guardaram a sua fé, essa fé cresceu e eles tornaram-se exemplos»
Ainda há muitas pessoas que fogem da Síria para tentarem chegar à Europa?
Sim, sim, mas não nos deixemos iludir, para nós é um cenário muito bem orquestrado e vemos que não é uma situação que vá ajudar nem os sírios nem os europeus.
Como é que pode acabar?
Ele pode não terminar se do lado da Europa continuam a intrometer-se nos assuntos da Síria, a fechar os olhos sobre o fluxo de armas e de terroristas que vêm de todo o lado para destabilizar a região, que se continue a considerar as familias dos terroristas como sendo refugiados e gente que precisa de ser ajudada, então o que nós vemos é a transmigração do terrorismo a pretexto de fluxo de refugiados e a prova podemos vê-la em Paris, na Alemanha, na Europa um pouco em todo o lado. É verdadeiramente o transbordo do terrorismo.
Teme que seja o fim dos cristãos no Oriente Médio, onde o cristianismo tem estado durante tantos séculos?
Claro! Não é que eu o tema, está a acontecer! Nós temiamo-lo antes, dizia-se que era a conspiração, a teoria da conspiração, mas o que é pior é que o que acontece é muito maior que a teoria da conspiração, é ainda mais grave, mais trágico e mais terrivel que todas as teorias às quais se possa ter pensado durante anos. Que o Senhor perdoe aos que desenvolvem tais planos!
Você falou com algumas das pessoas que fugiram para a Europa? Eles vêm aqui à procura de um novo começo na vida, para ficar, ou apenas esperar tempos mais pacíficos na Síria, no Iraque ou Líbano, para regressarem ao seu país?
A situação no Oriente tornou-se tão insustentável e tão caótica que poucos pensam voltar. É um bilhete de ida simples, sem volta, e isso é contrário à realidade porque nós estamos convencidos que há suficiente lugar na Síria, e de lugar seguro, para abrigar toda essa gente. Não faz sentido os refugiados irem para a Europa, muitas vezes é um suicídio. É por isso que nós somos contra a emigração para a Europa. Nós tentamos trabalhar para que os sírios não deixem o seu país e para que os sírios que deixaram o seu país voltem ao seu país. Os que ficaram podem pensar em melhorar a sua situação enquanto os que saíram encontram-se diante de uma série de dificuldades que serão cada vez mais duras porque é um problema de integração e os exemplos em França, na Bélgica ou na Alemanha não são verdadeiramente tranquilizadores: fazem-se guetos... na Autrália por exemplo, há sítios onde a polícia não pode entrar, é um verdadeiro... um mundo à parte, construído depressa demais. É por isso que nós preferimos evitar um outro confronto de civilizações na Europa e em todo o mundo ocidental, e por isso pedimos que esses deslocados sejam orientados para os países árabes ou então voltem ao seu próprio país.
A fé dos cristãos, yazidis ou muçulmanos que viram os seus familiares e amigos serem mortos alegadamente em nome de Deus foi enfraquecida pela guerra?
Não vimos pessoas que escaparam de dramas e tragédias perder a fé, completamente ao contrário. Eu acho que o sofrimento, a dor, dessas pessoas abre o seu coração para uma relação mais directa ao Espirito Santo. Há realmente exemplos de heroísmo, por exemplo no perdão. Vi um pai, cujo filho único foi raptado e depois trouxeram-no de volta cortado em bocados num saco de plástico, o seu filho único!!
Eu conheço este homem e tenho a fotografia do seu filho cortado em bocados, guardo-a comigo, e ele diz-me: “Perdoemo-nos uns aos outros para que a Síria viva, como eu perdoei. Eu perdoo àqueles que me infligiram esta dor incomparável e sem razão nenhuma porque o meu filho não fazia política, ele era um estudante, ia à universidade, porque é que o raptaram, porque é que o cortaram em bocados? O que é que eu fiz, que é que nós fizemos? “ Portanto, não há nenhuma razão válida e no entanto essas pessoas estão na paz e elas perdoaram. Então não posso dizer que eles perderam a fé, pelo contrário, eles guardaram a sua fé, essa fé cresceu e eles tornaram-se exemplos: eu chamo-os justos, verdadeiros exemplos.
A costa litoral síria, que é de maioria alauíta, grupo religioso que foi massacrado pelos sunitas desde o início da guerra, de quem as mulheres foram violadas, arrastadas nuas nas ruas... foram atos que poderiam sublevar estas populações e levar a uma guerra civil. Mas quando vemos essas populações do litoral receberem centenas, milhares de refugiados sunitas e de todas as regiões da Síria sem um único incidente, uma só bofetada de um alauíta a um sunita, nós vemos que este povo tem qualquer coisa de completamente exemplar e era bom que muitos outros povos o tomem como exemplo.
A fé é a verdadeira motivação desta guerra?
Nem pensar, a fé não pode ser nunca uma motivação de guerra. É uma maneira de esconder o verdadeiro motivo da guerra, que é politico e estratégico: é uma guerra de mentira, uma guerra criminosa. Ela maquilha-se um dia com slogans de democracia, um outro dia com slogans de religião mas na realidade é uma guerra de pilhagem e criminalidade e a História, cedo ou tarde, fará justiça aos que inventaram este género.
Esta é uma guerra acontecendo muito longe de nós. Como podem os cristãos de Portugal ajudar-vos?
Portugal é para nós uma grande referência espiritual, em primeiro lugar pela sua História - e a sua História santa: a História dos seus Reis, a História das promessas que foram feitas, das consagrações que foram feitas. Enquanto país, é um país de forte compromisso cristão histórico e é por isso que Portugal foi coroado de ser o lugar das revelações de Nossa Senhora de Fátima, que disse palavras profundas que nos preparam para estes momentos de crime generalizado.
Portanto, para nós, os cristãos de Portugal podem: em primeiro lugar, guardar a sua fé, e a Virgem disse que Portugal nunca perderia a fé, por isso para nós guardar a sua fé é já um grande apoio; 2º rezar por nós, permanecer em contacto connosco; e finalmente fazer uma cadeia de solidariedade connosco e depois uma cadeia de boa informação sobre nós, porque mesmo se se anda a dizer que os cristãos vão partir do Oriente, mesmo se não restam senão alguns cristãos, o cristianismo ainda está no Oriente. E como no ínicio havia 12 apóstolos, que verdadeiramente conquistaram o mundo, estes poucos, mesmo se nós não fôssemos senão 12 (somos muito mais, graças a Deus), mas se fossemos reduzidos somente a 12 cristãos, eh bem, não é por isso que devemos baixar os braços: nós devemos conquistar esta região com as armas de Cristo, conquistá-la com o Amor e para o Amor.
Entrevista: Ricardo Perna
Fotos: Congregação das Monjas da Unidade de Antioquia
Continuar a ler