Num dia dedicado à construção da paz entre as diferentes religiões, o Papa Francisco viajou mais de 700 kms pelo território iraquiano para ir ao encontro dos representantes de diferentes religiões, na procura de um caminho para a paz entre as diferentes religiões.
No sul do país, o Papa começou o dia com uma visita privada ao Aiatola Al-Sistani, de 90 anos, o líder supremo do ramo xiita do Islão no Iraque, que tem sido voz de oposição ao autodenominado Estado Islâmico e promotor de uma ação religiosa cuja interpretação da relação islâmica prega a abstenção das autoridades religiosas da atividade política direta, e faz dele um interlocutor para várias correntes, sendo um defensor de eleições livres.
No último mês de janeiro, Moqtada al-Sadr, chefe do grupo político sadrista, com representação no parlamento iraquiano, criou um comité com o objetivo de «restabelecer a justiça» e restituir bens expropriados aos cristãos.
Francisco, refere uma nota da Santa Sé enviada à Agência ECCLESIA, realçou a «importância da colaboração e amizade entre as comunidades religiosas para que, cultivando o respeito mútuo e diálogo, se possa contribuir para o bem do Iraque, da região e de toda a humanidade».
O Vaticano destaca que, durante o encontro de cerca de 45 minutos, Francisco quis agradecer ao grande aiatola Al-Sistani e à comunidade xiita por se terem manifestado, «diante da violência e das grandes dificuldades dos últimos anos», em defesa «dos mais fracos e perseguidos, afirmando a sacralidade da vida humana e a importância da unidade do povo iraquiano».
O gabinete de Al-Sistani emitiu um comunicado, após o encontro, referindo que o grande aiatola defende “paz e segurança” para os cristãos no Iraque, “em pleno cumprimento dos seus direitos constitucionais”.
Al-Sistani evoca os nos incidentes dos últimos anos, “especialmente durante o período durante o qual terroristas tomaram vastas áreas em várias províncias iraquianas e ali praticaram atos criminosos”.
O comunicado realça que os dois responsáveis debateram sobre as situações de “injustiça, opressão, pobreza, perseguição religiosa e ideológica”.
O grande aiatola destacou “o papel que os grandes líderes religiosos e espirituais devem desempenhar na contenção dessas tragédias” e agradeceu ao Papa pelo seu “esforço” de viajar até Najaf.
O encontro histórico na planície de Ur
De volta ao avião, Francisco voou até à Planície de Ur, terra de onde é originário Abraão, figura central no Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, onde participou num encontro inter-religioso e lançou duras críticas a quem, com o extremismo e a violência, trai as religiões. «Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião. E nós, crentes, não podemos ficar calados, quando o terrorismo abusa da religião», pediu o Papa.
Num discurso em que se referiu sempre a Deus e nunca a Jesus, num registo que permite ir ao encontro do que une as diferentes religiões, o Papa Francisco exortou as religiões a trabalharem em conjunto. «Cabe a nós, a humanidade de hoje e principalmente os crentes das diferentes religiões, transformar os instrumentos do ódio em instrumentos de paz», referiu o Papa, que acrescentou que «nós, irmãos e irmãs de diversas religiões, encontramo-nos aqui, em casa, e a partir daqui, juntos, queremos empenhar-nos para que se realize o sonho de Deus: que a família humana se torne hospitaleira e acolhedora para com todos os seus filhos; que, olhando o mesmo céu, caminhe em paz sobre a mesma terra», pediu o Papa.
Este caminho passa pela prática do dia a dia, e o Papa referiu todos os testemunhos que antecederam a sua intervenção, que exemplificavam como pessoas de diferentes religiões conseguiam trabalhar em conjunto, ou mesmo como deram a vida para salvar pessoas de outras religiões, durante a guerra que atingiu o país durante vários anos.
Francisco mostrou-se impressionado com o «exemplo heróico» de Najy, da comunidade sabeia mandeia, que perdeu a vida na tentativa de salvar a família do seu vizinho muçulmano.
Iraquianos são «testemunhas que, vivendo as Bem-aventuranças, ajudam Deus a realizar as suas promessas de paz»
De regresso a Bagdade, a tarde deste dia ficou marcada pela celebração na Catedral de S. José, pois foi a primeira vez que um Papa presidiu a uma eucaristia em rito caldeu. A igreja estava cheia, dentro dos limites que a pandemia permite, e o Papa aproveitou para falar aos cristãos presentes, sem tantas referências ecuménicas ou inter-religiosas. Na homilia, o Papa falou sobre «o amor, que é o coração das Bem-aventuranças», afirmando que, «embora pareça frágil aos olhos do mundo, na realidade vence». «O amor é a nossa força, a força de tantos irmãos e irmãs que também aqui foram vítimas de preconceitos e ofensas, sofreram maus tratos e perseguições pelo nome de Jesus», disse o Papa.
A vivência das Bem-aventuranças pede «testemunho» constante, não ações esporádicas. «Para se tornar bem-aventurado, não é preciso ser herói de vez em quando, mas testemunha todos os dias. O testemunho é o caminho para encarnar a sabedoria de Jesus. É assim que se muda o mundo: não com o poder nem com a força, mas com as Bem-aventuranças. Pois foi assim que fez Jesus, vivendo até ao fim aquilo que dissera ao início», afirmou o Papa.
O amor e a vivência das promessas de Deus, que se concretizam «nas nossas fraquezas», foram o mote para o Papa pedir aos cristãos que não desanimem no caminho, por mais difícil que ele possa parecer, e não percam a fé, até porque «as promessas de Deus asseguram uma alegria incomparável e não dececionam», desde que caminhemos na estrada que Ele nos propõe, e dá o exemplo de Abraão, a quem Deus dá uum filho em idade avançada, ou Moisés, que tinha dificuldades na fala, ou Pedor, que falhou para com Jesus e foi nele que Deus confiou para «confirmar os irmãos». «Às vezes, queridos irmãos e irmãs, podemos sentir-nos incapazes, inúteis. Não lhe demos crédito, pois Deus quer fazer maravilhas precisamente através das nossas fraquezas», concluiu.
No final da missa, o cardeal Louis Sako tomou a palavra para agradecer a presença do Papa. «A sua presença entre nós, como peregrino que reza por um mundo mais humano, mais fraterno, mais solidário, mais pacífico, enche-nos de esperança», referiu o cardeal.
O prelado falou da necessidade de unidade, que não apaga a identidade de cada um. «Esta identidade comum de todos os seres humanos não ameaça as diferentes identidades religiosas e nacionais, e não apaga as particularidades, mas enriquece-nos e liberta-nos do extremismo e do terrorismo, formando crianças e jovens capazes de relações concretas no quotidiano de acolhimento, diálogo, compreensão mútua, tolerância, amor, bondade, paz e respeito à vida e ao meio ambiente. Graças a essa educação, eles tornar-se-ão pessoas criativas e influentes no seu ambiente», referiu o cardeal Sako, que concluiu afirmando que «a sua visita encorajará os iraquianos a superar o passado doloroso, em vista da reconciliação nacional, da cura das feridas, da coesão e da cooperação para o crescimento».
Com a conclusão da eucaristia, o Papa regressa à nunciatura para o descanso. Amanhã serão mais umas centenas de quilómetros, desta vez até ao norte do país, com destino a Erbil e Mossul, no Curdistão Iraquiano, num dia que será mais dedicado às vítimas do terrorismo e do extremismo.
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Vatican Media
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