Ivo Oliveira é o novo chefe nacional do Corpo Nacional de Escutas (CNE), a maior associação juvenil do país, com mais de 70 mil membros. À Família Cristã, fala da fórmula “secreta” que atraiu e continua hoje a atrair os jovens ao escutismo, da importância do voluntariado dos seus membros, da possibilidade dos agrupamentos auxiliarem na integração de crianças refugiadas na sociedade e lança pistas sobre o que os próximos tempos poderão trazer para a associação, até em vista do Acampamento Nacional, que este verão vai juntar mais de 20 mil escuteiros em Idanha-a-Nova.
Vivemos numa sociedade que abraça o escutismo, ou ainda o exclui por ser diferente?
Acho que vivemos numa sociedade que de uma forma geral nos acolhe e nos abraça, cria espaço e nos ajuda a podermos desenvolver as nossas atividades. É óbvio que gostávamos de ter mais, porque somos ambiciosos, e gostávamos que a sociedade estivesse cada vez mais disponível para acolher os projetos dos nossos miúdos, que são projetos arrojados e onde a resposta mais imediata e fácil é sempre “isso não é possível”.
Mas o escutismo pode ser a solução para uma sociedade melhor?
Tenho a certeza absoluta que o escutismo é uma das soluções para que a sociedade possa crescer com membros cada vez mais empenhados, com causas, com vontade de construir e unir, que conseguem transformar e fazer crescer a nossa sociedade.
Hoje os jovens veem-se a braços com muitas situações familiares duras, como lares desfeitos pelo divórcio, novas constituições familiares… como é que o escutismo pode ajudar?
Nestes novos desafios que a família e a sociedade atravessam, o escutismo pode desempenhar um papel tão mais importante quanto os nossos escuteiros, afetados por essas questões, encontrarem nos outros escuteiros rapazes e raparigas que os acolhem como irmãos e os ajudam a atravessar momentos que são difíceis de viver. Por outro lado, o escutismo tem o condão de ajudar os jovens a acreditar que é possível irmos transformando. Não vai ser muito fácil transformar o que está a acontecer com os meus tios ou pais, mas o que esperamos que os jovens construam em si é um trabalho de longo prazo, que colherá frutos quando eles já nem são escuteiros.
Muitos profissionais da psicologia recomendam o escutismo como terapia. Vocês são, de facto, a solução?
Devíamos ser, mas o sermos implica partir de um pressuposto que não temos e que temos de trabalhar, que é a capacidade dos adultos voluntários que trabalham no escutismo estarem preparados para lidar com estas situações que os jovens trazem. Uma das preocupações que temos à cabeça é ter formação disponível para os nossos dirigentes saberem lidar com estas situações no concreto, e conseguir sensibilizar os agentes de saúde para que quer eles quer os pais façam chegar aos agrupamentos a indicação de que este jovem tem este ou aquele contexto, para que o acolhimento desse jovem seja o melhor possível.
Há quem retrate os jovens como preguiçosos, não brincam na rua, não saem… e depois, há o escutismo, onde eles dormem no chão, em condições nada ideais, passando frio e chuva, mas querendo sempre voltar. É magia?
É uma magia com um segredo: eles fazem aquilo porque gostam e porque querem ser eles a fazer aquilo. Não há maior motivação para um jovem que sentir que está a ser dono e senhor do que está a fazer, e isso implica do jovem uma entrega diferente do que estar em casa com todas as comodidades. Ele escolhe deixar isso de lado e deixar-se levar por um caminho que me custa mais, mas que no final do dia o deixa mais feliz.
E é essa a fórmula “secreta” que vai continuar a cativar os jovens?
Ao longo destes mais de 100 anos de escutismo a nível mundial, está provado que duas coisas mágicas acontecem: conseguimos garantir que o jovem se desenvolve porque é ele o agente do seu próprio desenvolvimento, que interage com os outros jovens e vive ambições, desafios, escolhas e responsabilidades; e temos o apoio de adultos que não se colocam numa posição de serem eles que mandam os jovens fazer, antes estão ao dispor do jovem para o ajudar a concretizar os seus sonhos num ambiente seguro, onde podemos cometer erros, onde vamos fazer coisas que não correm todas bem, e onde chegamos ao final e conseguimos aprender com estes erros, que nos ajudam a melhorar e a fazer as coisas bem.
A base do CNE é profundamente voluntária, o que levanta problemas, mas traz vantagens únicas. O futuro passa por aí, ou pela profissionalização, como outras associações?
A marca do voluntariado no trabalho com os jovens será algo que continuaremos a ter. Nós temos cerca de 14 mil voluntários adultos nos escuteiros e não sei se chega a 100 o total de funcionários profissionais pagos, na maioria dos casos a desempenhar trabalho de suporte administrativo, financeiro e de organização para os voluntários. O escutismo que se vive em Portugal é muito orientado para a inclusão no sentido de termos todo o tipo de jovens, de todas as faixas sociais no escutismo. Os valores de quotizações que temos e que ajudam a financiar uma parte importante da nossa atividade, comparada com outras atividades lúdicas, como a dança e outros desportos, são muito baixos, na maioria generalizada dos casos o escuteiro despende menos por ano do que aquilo que gastaria por mês numa dessas atividades, pelo que seria muito difícil de implementar.
O CNE tem sofrido alguns golpes com casos de abusos, e está a reformular o sistema de formação de adultos. É um aspeto que a formação vai passar a considerar?
Esse é um aspeto fulcral. Queremos que o escutismo seja cada vez mais um ambiente seguro para que os nossos jovens se sintam plenamente confortáveis e possam realizar as suas atividades sem haver o perigo que afete a sua integridade física e moral. Há poucas semanas preparámos um documento sobre estes temas, e a formação que estamos a promover irá incluir esta temática. Mais do que isso, estamos neste momento a ponderar a melhor forma para pormos de pé uma linha ética que permita de forma muito mais eficaz ajudar a identificar eventuais situações de risco e atuar perante essas situações, com a ajuda de uma comissão externa de especialistas. O nosso movimento não é alheio a algumas situações que vão surgindo, pelo que temos de ter a certeza que os mecanismos que temos são o mais eficazes possíveis para serem detratores dessas situações, por um lado, e por outro o mais ágeis e colaborativos com as autoridades quando acontece.
O que felizmente não tem sido muitas vezes, para uma organização tão vasta e com tantos adultos…
O escutismo não é um ambiente de risco, é verdade, mas basta que tenhamos um caso e já é um caso a mais.
Estas situações diminuíram a confiança dos pais no CNE?
A confiança que temos dos pais, sociedade e famílias não saíram afetadas precisamente pela velocidade e agilidade com que fomos conseguindo atuar e agir.
O CNE sente a mesma dificuldade da Igreja em ligar os jovens à fé?
Sentimos, mas de uma forma diferente em relação ao que a hierarquia da Igreja vai sentindo. Por causa da forma e da essência com que trabalhamos – o contacto com a natureza, a vida em pequenos grupos, o aprender fazendo -, estamos numa posição de conseguirmos chegar aos jovens que às vezes se encontram mais afastados da Igreja, que não têm frequência regular da catequese ou celebrações ou um testemunho tão vivenciado da prática cristã. A forma mais simples como vivemos a nossa fé, que não está fundado em celebrações mais formais, é um instrumento importante e vital para tentarmos garantir que o jovem se vai interessando por esta aproximação, por este encontro com Cristo.
Encaram a possibilidade de permitir a entrada de escuteiros sem crença, ou de realizarem promessas para ateus, como já fizeram outras associações escutistas noutros países?
Acho que o CNE, enquanto movimento da Igreja e de pendor evangelizador como deveria ser, poderá ser um meio para atrairmos jovens e os ajudarmos a encontrar o seu caminho, que pode ser dentro da Igreja Católica ou não. Mas antes de começarmos a pensar em abrir o CNE, que é um movimento da Igreja, a jovens que não são manifestamente católicos e professam outras religiões, temos de ter a certeza de termos condições, a nível dos dirigentes e dos nossos assistentes, os párocos, que estejam preparados para lidar com estas realidades.
Podemos até imaginar jovens refugiados que venham parar ao nosso país. As famílias têm dificuldade em integrar-se na nossa comunidade e o escutismo pode desempenhar um papel importante em tentar acolher e trazer os jovens para as comunidades onde estão inseridos e mostrar-lhes que há um Cristo que os quer acolher também.
Mesmo que tenham outra religião?
Isso implica da nossa parte um respeito pelos rapazes e raparigas que professam outra religião. E aí temos dificuldade, porque quer em termos de preparação, quer em termos do carisma que temos, que é o que acho que devemos manter. A jovens que não tenham interesse pela religião, poderíamos ajudá-los a encontrar um caminho que os leve a Cristo, mas, se não for isto, vejo o resto com imensa dificuldade. É preciso reforçar a comunhão com os assistentes [padres que apoiam os agrupamentos, normalmente os párocos], porque de região para região vai-se sentindo a ausência do assistente.
Como resolver a questão da falta de assistentes?
De duas formas. Com a diminuição de efetivo em alguns agrupamentos, pode dar-se o caso de começarmos a pensar em congregar mais do que um agrupamento para que se possa pôr em funcionamento o sistema de patrulhas num novo agrupamento. Por outro lado, ter adultos leigos que possam ajudar o assistente no seu trabalho pastoral, como hoje já acontece na catequese. Creio que vamos ter condições, não para substituir, mas para auxiliar o trabalho dos párocos.
A exortação do Papa sobre a família aborda a questão dos divorciados recasados, situação que também afeta o CNE. Como é que viu esta exortação e que alterações poderão surgir no CNE?
Enquanto membros desta igreja que caminha e procura integrar, acolher e aceitar, o escutismo é feito com base em adultos que têm de ser testemunho. Na minha opinião, não vamos ter condições de ter uma regra que rígida. Cada caso de um lar que se desfaz tem uma história, e cada uma é diferente. Não há outra forma de conviver com esta situação do que fazê-lo em diálogo estreito com o assistente local, que é quem provavelmente conhece melhor o coração daquele dirigente, e o que está por trás daquela história. Não teremos uma regra global de aplicação automática, mas vamos olhar para os casos um a um, percebendo junto do assistente qual é o acolhimento que ele acha que aquela situação tem.
Mas há regiões que simplesmente proíbem o acesso à formação de adultos em situação irregular. Isso vai mudar no sentido de poder haver casos que sim e outros não, consoante o discernimento?
Eu diria que sim. Este é um tema que é muitas vezes refletido pelos assistentes e procuram-se encontrar pontes para uma aplicação mais ou menos consistente dos critérios de análise. Isto não significa que possam assegurar que todas as regiões, núcleos ou agrupamentos usem os mesmos critérios, porque cada caso é um caso, e a posição do assistente é importante.
O pior que poderia acontecer era começarmos a impor aos nossos assistentes adultos pessoas com as quais ele não se sente confortável em entregar-lhe jovens. É preciso entender que trabalhamos com jovens que nos são confiados em primeiro lugar pelos seus pais, mas em segundo lugar pelos nossos assistentes. Não é possível ignorar esta realidade, e embora às vezes gostássemos de ter uma solução diferente daquela que conhecemos, é importante perceber que, em última análise, nós trabalhamos com os jovens que nos são confiados. E temos de compreender que quem nos confia os jovens tem de confiar em nós.
O Acampamento Nacional é a festa maior do CNE e acontece este ano. Para quem nunca foi, escuteiro ou não, o que é o ACANAC?
O ACANAC é a atividade rainha do escutismo português do CNE por duas razões: porque é um acampamento, com uma duração maior que o típico acampamento de seção; depois, porque permite aos jovens o contacto com escuteiros de todo o país, incluindo ilhas e até Macau ou Suíça, locais onde temos agrupamentos do CNE. A probabilidade forte de ir acampar para um sítio onde vou fazer amigos que não conhecia e onde vou viver experiências que tipicamente não estão tão disponíveis no meu agrupamento é muito importante.
O que diferencia essa atividade de um qualquer festival de Verão?
Diferencia-se de um festival de verão porque é uma atividade escutista, e isso implica que haja um projeto, um trabalho, uma preparação, um conjunto de esforços que os miúdos tenham de fazer de crescimento, desenvolvimento e preparação muito para além de encontrarem os meios financeiros para se inscreverem e irem, o que só por si já é pedagógico. Vive-se uma magia que os miúdos não esquecem. Mesmo passados muitos anos, recordam refeições, atividades, e amigos que não se perdem.
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Gonçalo Vieira | Flor de Lis, João Matos | Flor de Lis
NOTA: a entrevista foi feita antes do assalto à sede nacional do CNE, razão pela qual esse assunto não é referido na entrevista.
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