O Prof. João César das Neves é economista e professor da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa. Fala de uma «espiral depressiva« em que o país se encontra, e aponta soluções que, não sendo fáceis de implementar, são as que defende para evitar um período de crise ainda maior que o esperado. Explica o que são os eurobonds, e de que forma não são a resposta, ao contrário do que muita gente pensa e arugmenta, e explica que as medidas de apoio não se podem deixar atrasar por questões burocráticas, sob pena de ser muito tarde para salvar a economia do país.
Que mudanças é que a pandemia trouxe ao nosso país, em termos económicos?
Bom o que temos neste momento é uma crise brutal, como nunca vimos. É um encerramento da economia, ninguém sabe por quanto tempo, mas já lá vão umas semanas e mais semanas virão, que dará uma queda de 10 a 20%, e há quem fale mais ainda.
Esses 10 a 20% podem significar o quê, em termos práticos?
São coisas muito diversificadas, porque há setores que estão a melhorar com a crise. Outros estão completamente fechados, como é o caso do turismo, por exemplo, ou hotelaria. É uma coisa muito desigual, também desigual em termos de ricos e pobres, porque os pobres não têm a capacidade ou possibilidade de trabalhar na internet, e essas pessoas estão sem recursos. É uma coisa muito variada, mas algo que será talvez o dobro da crise que tivemos há dez anos, no tempo da troika. A OCDE já fala em 25%, uma queda de ¼ da economia... e não é só em Portugal, é uma crise internacional, que não é ao mesmo tempo em todo o lado, e portanto a coisa vai-se espalhar...
E isso também impacta Portugal, que depende muito do exterior...
Sim. Em certos aspetos, Portugal é dos mais afetados, mas por outro lado será dos mais poupados. Mas sim, Portugal tem estado no topo dos países afetados pela doença, e até foi dos primeiros a fechar o país, etc. Talvez por isso as coisas estejam a melhorar, mas não resolve, porque o vírus está aí, e quando se abrir a economia ele vai voltar. No geral, vamos ter uma crise muito forte, esperemos que seja curta, ninguém sabe muito bem. No melhor dos cenários, a economia mundial pode estar a recuperar na segunda metade do ano, seria o cenário ideal, mas pouco provável, devo dizer, e no pior dos cenários teríamos uma coisa a invadir o próximo ano.
Quais têm de ser as principais preocupações em termos económicos?
O que estamos a enfrentar é o que se chama uma espiral depressiva. E há muito que sabemos como se trata uma espiral depressiva. A cura é muito simples de dizer, não tão fácil de concretizar: é pôr dinheiro no bolso das pessoas. O governo, que é quem pode fazê-lo neste momento, tem de pôr dinheiro no bolso das pessoas. Não é preciso muito, mas o suficiente para aguentar as pessoas e aguentar as empresas. Evidentemente, adiar impostos, facilitar linhas de crédito, o governo já fez, mas o que temos até agora não são coisas brilhantes, em termos de economia. O governo fez uma quantidade de pequenas medidas, muitas delas com controlo burocrático, e isso é fatal. Se temos de atestar que a pessoa tem direito ou não, atira-se para o mês seguinte e a pessoa “morre” com dificuldades... tem de ser rápido nisto, e algumas medidas são quase insultuosas, como a promessa de pagar no futuro... não é no futuro que a empresa precisa desse dinheiro, é agora.
Há aqui uma preocupação do governo de curar a pandemia, mas não prejudicar demais a economia?
Eu acho que está a fazer precisamente o contrário. O grande sucesso do governo foi ter acabado com o défice, e o governo ainda está a tapar o sol com a peneira. É evidente que vamos ter este ano o maior défice da nossa história, vamos ultrapassar o pico anterior de 2011. Não há nada a fazer. Como é que se financia é um segundo ponto. Mas agora é preciso o Estado perceber que tem de deitar às urtigas o défice, é para isso que servem os défices, é para momentos destes. Se, neste momento, o Governo está a fazer cálculos deste estilo, é um disparate, não o pode fazer. E devia, sobretudo, ajudar os mais pobres. O que mais escandaliza nestas medidas que têm sido anunciadas é a quase ausência (parece que nestas últimas medidas apareceu uma coisinha pequenina) de apoios às instituições que ajudam os pobres ou diretamente aos mais pobres.
Estamos a tratar de funcionários, das classes que têm votos e que têm mais influência, mas estamos a esquecer-nos dos que estão a ser mais afetados. Estamos a falar dos vendedores ambulantes, dos mendigos, uma enorme quantidade de pessoas que ficaram sem nada. Vivem no dia a dia de certas atividades pequenas que os mantêm e aguentam, e estas pessoas têm de ser ajudadas diretamente.
E a burocratização prejudica essa ajuda imediata?
É fatal, porque tudo o que seja adiar, ou dizer amanhã... é agora! Em junho já é tarde, tem de ser agora, em março, abril ou maio que se têm de fazer os apoios. É verdade que, se isto demorar muito, temos um problema horrível, porque isto pode arrastar-se no tempo e não será sustentável em termos financeiros para o Estado. Ninguém sabe isso, mas a única medida séria é pôr dinheiro no bolso de toda a gente. Dirão que alguns não precisam, mas se formos a ver quem precisa e não precisa, já passou o tempo. Se formos ver quais empresas aguentamos e quais deixamos morrer, já acabou tudo. Tem de ser rápido, e é isso que me assusta um bocadinho, porque parece que as autoridades ainda não estão a perceber o problema, e um atraso de alguns dias nisto é fatal. Vamos ver...
O governo falou, desde o início, em manter o emprego...
Mas é isso mesmo! A ideia do layoff foi uma boa ideia. Em Inglaterra, por exemplo, disseram “nós pagamos 2/3 do salário mínimo a toda a gente”. São medidas destas que aguentam a economia, porque as empresas ficam livres de pagar os salários, as pessoas recebem algum dinheiro para se aguentarem nestes períodos, são coisas dessas. Vários outros países estão a fazer isso, e é simples. Claro que não chega, porque há quem não receba salário e são auto empregados, e a maior parte deles são pequenas empresas ou empresários em nome individual que vivem nem sei muito bem como. Portanto, temos de chegar a estes também. Mas qualquer medida destas tem de ser logo acionada para aguentar a economia. Porque, se fizermos isto, a economia retoma quando voltar ao alívio. Mas se matarmos as empresas, se as pessoas ficarem sem capacidade, o custo é muito maior. A questão é mesmo esta: do ponto de vista do orçamento, se o Estado fizer isto, consegue recuperar os impostos na segunda metade do ano ou no próximo ano. Mas se não fizer isto vai ter uma queda na economia brutal que depois também lhe vai cortar as receitas, porque vai aumentar as despesas.
Principalmente de despesas sociais...
Precisamente. Até em termos estritos do orçamento, é preciso mandar às urtigas as preocupações orçamentais que teríamos de outra forma.
E parece-lhe que continuam a existir essas preocupações orçamentais?
É compreensível. Eu não estou a criticar ninguém, porque o sistema está todo virado para esse lado, e não é fácil a ninguém arranjar alternativas. Mas assusta-me um bocadinho a multiplicação de medidas em cima de medidas, depois troca a medida por outra medida, e depois a alargar, quando isto só tem uma ideia simples de base... enfim, vamos ver.
Até porque, se se garantisse às pessoas o ordenado, o resto não seria preciso cortar ou diminuir...
Exatamente. Se garantirmos isso, o resto fica secundário. É preciso fazermos uma medida destas e isso alivia imensamente as outras medidas. É caríssimo, claro, não estamos a falar de trocos, mas se for bem calibrada, um pouco de dinheiro, nem que seja poucochinho, no bolso de toda a gente, resolve imensas coisas.
Falamos de dois níveis: uma preocupação com a atualidade, e a reflexão sobre como será após a pandemia. Que preocupações deve haver nessa altura?
Aí o que é preciso é deixar recuperar a economia. Claro que alguns setores vão demorar mais que outros. A maior parte das entidades do turismo já sacrificaram 2020, não têm nenhuma hipótese. Mesmo que a coisa acabasse amanhã, primeiro que arranque o movimento das pessoas não daria. Depois a seguir é preciso que o Estado não comece a exagerar na sua presença, porque uma das tentações de quem foi necessário neste momento é continuar a tomar a palavra para dizer o que é necessário. Isso já está a acontecer noutros países, como a China, e poderá acontecer em Portugal, porque somos muito estatistas. Uma data de entidades, até privadas, que irão pedir ao Estado para vir cá dar um apoio às empresas, e isso seria muito perigoso. É deixar recuperar. Aqui o difícil é perceber quando é que o tratamento para, quer o tratamento de saúde, quer o tratamento em termos de subsídios às empresas. Aguentar isto tudo é caríssimo. Um mês é difícil, dois meses é quase impossível, três meses a loucura... e tudo isto é muito difícil de calibrar.
Estamos a falar de um trabalho que cabe a Portugal ou que caberá depois às instituições europeias? É uma moeda única, até se poderia ponderar na emissão de moeda, mesmo desvalorizando...
O lado da moeda está a funcionar bem. O Banco Central Europeu já abriu as torneiras e está a meter dinheiro às toneladas outra vez, isso está a funcionar bem. A parte que está a funcionar mal, e que nunca vai funcionar facilmente, são as negociações a nível orçamental e as formas de ajudar da Europa. A Europa, o FMI e outras entidades, estão disponíveis para ajudar e dizem que querem ajudar, mas a seguir, e sobretudo na Europa, é muito difícil conseguir acordo, até porque estamos a começar a ter as zangas habituais para o orçamento futuro, que não foi aprovado. Somos 27, a coisa está complicada de negociação, sempre o foi, e uma vez chegados a acordo, é preciso implementar, e essa implementação é muito demorada.
Também aí deveria haver uma facilitação na injeção de capital?
A ideia já está aí há muito tempo, era fazer uma emissão de dívida europeia, o chamado coronabonds.
E o que é isso?
Em vez do Estado português ir ao mercado pedir dinheiro emprestado, o que tem uma credibilidade baixa, porque Portugal já teve dificuldades, se a União Europeia for, como um todo, pedir dinheiro, as taxas de juro serão muito inferiores. Depois, esse dinheiro é para distribuir pelos países. É uma ideia muito antiga que anda por aí e que os países do Norte estão muito renitentes em aceitar, porque isso quer dizer dar uma borla aos países do sul, que depois gastam à maluca, como já gastaram no passado, e portanto é muito pouco credível.
Dizer que isto é uma coisa nova, é só para este efeito, é só por causa do que está a acontecer, e por isso é que se chama coronabonds, seria um título emitido só para este ano, esta altura, este efeito.
Mas seria uma dívida a pagar por mais tempo?
É uma dívida paga como a outra. A diferença é que se Portugal for pedir emprestado paga 10% e se a Europa pedir emprestado paga 2 ou 3%.
Mas assim teremos um alívio para alguns países, mas outros países, que não precisariam de recorrer, fiquem a pagar também eles uma dívida...
Eles têm medo é que isto seja como no passado, onde todos os compromissos que nos comprometemos a pagar, não pagámos. Portanto, nem é que eles tenham de pagar, eles estão preocupados porque isto baixa a dívida pública do sul, mas o que o sul faz com isso é precisamente aumentar a dívida pública. Eu percebo a falta de credibilidade disto, porque vivemos isso.
E tem outro problema adicional: uma vez aprovado isto, que não deve ser aprovado, porque os países do Norte não estão para aí virados, é preciso implementar, ir ao mercado, e com isto andamos para aqui um ano, não vale a pena. Esta ideia do coronabonds que muita gente anda a falar é uma tolice, porque não vai dar. Nós precisamos do dinheiro agora, não é daqui a um ano.
Então e qual é a solução imediata?
O que alguns estão a dizer é que os mecanismos que temos montados e que já foram usados para dar subsídios aos países na crise anterior podem ser ativados outra vez. Esses processos já estão montados, é só ativarem outra vez. Esta é a proposta de um conjunto de grandes economistas europeus que apresentaram esta proposta há um mês, e é uma medida simples, que é complicada apenas porque são 27 países a decidir, e há direitos de veto, etc...
Portanto é um problema mais político?
Sim, sem dúvida. Claro que depois da decisão política será preciso implementar, mas aí já será muito mais fácil.
O que não deixa de ser estranho, porque falamos da vida das pessoas...
Claro. E vale a pena dizer outra coisa: a doença propriamente dita tem um impacto económico pequenino. Não é a doença que está a criar a crise, são as medidas que as pessoas tomam para se proteger da doença. Quando se diz que a cura pode ser pior que a doença, é verdade, porque, para não morrermos, estamos a fazer coisas que estão a dar cabo da economia.
Se quisermos defender a economia, é só deixar morrer as pessoas à vontade, que ainda por cima serão na sua maioria idosas e nem produzem. É claro que não é aceitável deixar morrer as pessoas, há uma interação que não é nada fácil.
Portanto, é fazer uma pausa...
Esta pausa é fazer um adiamento. Nós só conseguimos dizer que vencemos o vírus quando uma grande percentagem da população tiver sido afetada e tiver recuperado. Na falta de uma vacina ou de uma cura, a melhor maneira é deixar infetar as pessoas, porque quando uma grande percentagem da população estiver recuperada, o vírus morre. O que estamos a fazer é impedir as pessoas de ficarem afetadas, e assim estamos a manter os potenciais doentes à espera. Fazemos isto para evitar o engarrafamento nos serviços de saúde, e sobretudo ganhar tempo para conseguirmos melhores testes, mais testes, porque se soubermos quem são as pessoas recuperadas elas podem trabalhar sem problemas, e se soubermos quem são as infetadas elas podem ser fechadas e guardadas sem problema, e os outros podem ter mais facilidade em andar, porque os infetados estão fechados.
E isso será fácil de implementar? Quando estivermos a falar de serviços que abrem e outros não, a economia vai estabilizar?
Quando começarmos a abrir, vai voltar a aparecer a doença. Agora, podemos até lá conseguir melhores meios no sistema de saúde para ajudar os infetados. Segundo, melhores testes para saber separar as pessoas em perigo das pessoas que não estão. E terceiro, uma vacina que poderia resolver tudo. Agora, o que não podemos fazer é achar que conseguimos resolver o problema, porque baixámos os números por termos posto as pessoas em casa, porque assim que deixarmos de fechar as pessoas, o problema volta.
A sustentabilidade do SNS também tem sido colocada em causa, mas agora conhece grandes investimentos...
O segredo pelo qual o Governo conseguiu baixar o défice, o "milagre Centeno", chamemos-lhe assim, tem duas explicações: primeiro subiu imenso os impostos, nunca pagámos tantos impostos como agora, e segundo baixou todas as despesas de investimento e de operação, estrangulou os serviços. Conseguiu manter os salários, que é o que origina protestos, e as pessoas estão contentes porque estão a receber mais salário, mas subiu os impostos e estrangulou a economia pelo lado dos impostos e os serviços pelo lado da despesa. Claro que este segundo elemento fragilizou brutalmente os vários serviços, entre os quais o SNS, que terá sido o pior. As condições do SNS estão piores que há alguns anos, porque se tem desinvestido neste setor. Pronto, agora temos de investir de um dia para o outro.
Parece estranho que empresas e particulares tenham de estar a doar dinheiro e equipamento a um serviço público, que se paga com os nossos impostos...
É um pensamento prático, dentro da ideia das guerras. Nas guerras tudo é comum e as pessoas são expropriadas pelo bem nacional. Agora podemos mascarar esse desinvestimento que temos vindo a fazer durante este tempo debaixo de uma necessidade urgente, dizendo “não fomos nós que desinvestimos, foi esta coisa que aconteceu agora, por isso ajudem” e a malta ajuda e problema resolve-se. Tudo somado, até é uma maneira prática de resolver o problema.
Acaba por ajudar o “milagre Centeno"...
Sim, claro. Agora tudo o que correr mal a culpa é do vírus. Mas não há muito a fazer. Todas as instituições e economistas andam a explicar isto há uma data de anos, e ninguém percebeu, não é agora que irão perceber. Acho que o Centeno acabou por ter sorte, porque as coisas vão correr mal, como iriam correr de qualquer das maneiras, mas agora a culpa é do vírus. Por isso, fixe, o homem tem sorte (risos).
Entrevista: Ricardo Perna
Fotos de Arquivo: Ricardo Perna
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