O Cardeal Mauro Piacenza é o Penitenciário-Mor do Papa, o homem que transmite a Misericórdia do Papa aos fiéis, pelo perdão dos pecados reservados ao Santo Padre. Em entrevista exclusiva à Família Cristã, este colaborador próximo de Francisco e especialista em questões da Misericórdia, faz um balanço do Ano da Misericórdia que termina hoje, aponta caminhos de futuro e fala sobre até onde pode chegar a misericórdia.
Que balanço se pode fazer deste Ano da Misericórdia?
Podemos fazer um balanço encorajador e vivo. Foi um ano que fez ressonância entre os fiéis e no mundo inteiro. Tornou-se interessante a nível pastoral e apostólico. Foi um acontecimento bastante forte nas igrejas particulares, locais, e também com uma presença notável em Roma. Todos os números são demonstrativos de um movimento interior que se gerou.
Foram mais de 16 milhões de peregrinos em Roma, fora todos os que passaram por Portas Santas em todo o mundo. Foi um sucesso?
No contexto contemporâneo, pode chamar-se sucesso. Dizem-me que nas basílicas vaticanas notaram um incremento de peregrinos que se confessam. Eu costumo ir confessar às quartas-feiras de tarde, vejo muitos peregrinos que celebraram de manhã [com o Papa, na audiência geral] e que depois de almoço se juntam na fila para o confessionário.
As pessoas compreenderam o que é a Misericórdia?
Sim, aprenderam algumas coisas. O que pode ser uma missão do nosso Jubileu é a de esclarecer bem os termos, porque quem está preparado sabe bem o que é a Misericórdia, através da Bíblia, na vida dos santos, mas na opinião pública há um pouco de ignorância quando falam e misturam os termos Misericórdia, Justiça e Verdade, porque chegam a dizer que há uma reviravolta na Igreja, porque só se falava de pecado e Inferno, e agora só há evidência de carinho, graça, perdão, misericórdia, e é um contraste exagerado. A Igreja sempre teve uma pregação intensa sobre a Misericórdia. Pensemos na frequência que houve nos confessionários, que antigamente era muito mais notável que agora.
Mas isso por vezes provoca confusão nas pessoas. Um assassino em série e uma pessoa justa toda a vida têm o mesmo lugar junto de Deus, contando que se arrependam…
Pode provocar confusão, mas deve-se compreender o seguinte: a infinita misericórdia de Deus não significa ausência de justiça.
Devemos também pensar sobre o episódio da adúltera. Creio que não existe nenhum pecado que não seja perdoável. O único pecado que não se perdoa é não confiar em Deus, limitar a sua Misericórdia. Por cada pecado que seja perdoado, exige-se a humildade de dizer «aqui errei» e a força de dizer «não quero mais repetir». Sabemos que a fragilidade humana nos pode levar a cair noutras circunstâncias, mas quando Jesus diz à adúltera «vai e não peques mais», não podemos ficar parados na palavra «Vai», porque o resto é a verdadeira Misericórdia.
Uma pequena provocação: se eu sou um pecador inveterado e me arrependo no último momento, ou se sou uma pessoa virtuosa toda a vida, tenho lugar no Céu. Porque deverei levar uma vida segundo o que a Igreja me diz?
Esta é uma pergunta que me fazem algumas vezes. Se eu ando fora da observância, porque estou fora da Fé, é uma coisa, e tenho de me empenhar como homem em procurar a Verdade. Mas se o que faço é excluir a existência de Deus, estou a excluir a Misericórdia divina. Tenho de saber que pequei porque quis pecar, fechei as portas à graça de Deus, e depois considerei a vida cristã como um peso, e isso é muito errado. A vida cristã é sempre um Sim e não um Não, é uma consequência do grande sim ao Amor de Deus, que me dá de tudo. É verdade que há muitos Nãos na vida, mas eu agarro-me a um grande Sim que é muito mais feliz e alegre que todos os outros Nãos.
Um dos objetivos do Ano era colocar a confissão no centro de tudo. Pensa que as pessoas compreenderam melhor a importância da confissão?
Até certo ponto, sim. Os padres compreenderam bastante bem a prioridade a dar ao sacramento da penitência, porque o Santo Padre acentuou muito esta prioridade. Não é que já não acreditassem nisso, só que muitos já tinham feitos planos pastorais muito rígidos, como por exemplo ter horários fixos de atendimento nas igrejas. Agora sente-se mais a necessidade de ser menos rígido, sem deixar de ter um horário indicativo, para que os fiéis saibam.
Recebi um bispo de uma diocese da América Latina que, referindo-se a um santuário mariano que têm – é sempre Nossa Senhora que atrai – disse que tinha mandado pôr alguns confessionários no exterior do santuário, que ficavam abertos até à meia-noite para confissões. Estavam fora, na praça, e tinham sempre gente para confessar até essa hora. É um exemplo da arte inventiva que certos bispos encontraram.
Teve eco do trabalho dos Missionários da Misericórdia, que foram enviados pelo Papa para absolver os pecados reservados ao Papa?
São menos de quantos poderiam ser, se não tivesse sido limitado o número a indicar por cada diocese. Mas pedimos que fossem os bispos diocesanos a indicar estas pessoas, atendendo à disponibilidade de cada um no seu trabalho pastoral. Do que sei, porque não tive ecos de todo o mundo, isto funcionou, porque nos fez ter as portas escancaradas, para irmos ao encontro de todas as situações. Espero que tenham despertado naqueles a quem foram enviados a vontade de regressarem para junto de Deus.
Há muita gente que não percebe porque é que há pecados cuja absolvição está reservada ao Papa…
É uma questão de fazer compreender a gravidade. Não é a questão do aborto, que neste ano todos os sacerdotes podem absolver, ou noutros anos todos os que tenham essa autorização do bispo.
Porque é que não é possível a um pároco absolver o aborto?
Pode ser, depende do bispo. Quando fui ordenado sacerdote, em 1969, tive logo da parte do bispo a faculdade de perdoar os pecados do aborto. Mas convém dar o sentido da gravidade. Dou-lhe um exemplo: a profanação das sagradas espécies. Se eu compreendo que, se chego ao ponto de profanar as sagradas espécies e o confessor tem de vir relatar este caso à Santa Sé, acabo por interiorizar a gravidade da situação. Um sacerdote que viola o sigilo sacramental, a absolvição de um cúmplice em matéria sexual ou durante a confissão, remetendo estas questões, dá-se conta da gravidade das coisas que anda a fazer e ajudamos as pessoas a ficarem afastadas destes atos.
Na confissão muita gente não entende porque é que se tem de confessar a um homem e não diretamente a Deus. Qual é o papel do confessor?
O confessor é um canal. Todos podemos falar diretamente com Deus, e espero que todos o façamos, mas em relação a questões graves, nunca se tem a certeza de sermos absolvidos. Ficamos sempre com remorsos, nunca se ouviu “eu te absolvo”. Já no Antigo Testamento, Deus escolhia intermediários, a nível humano, para transmitir a Sua vontade. Isso não retira que Deus não possa agir diretamente, há sempre exceções. Mas Deus insiste em falar através de intermediários para comprovar a nossa fé. Se Deus falasse de modo sempre direto, não haveria nenhum mérito na nossa fé.
Por isso Jesus disse aos apóstolos «recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoaram os pecados serão perdoados, e a quem o retiverdes, serão retidos». Não há como agir fora desta lógica, desta mediação que, repito, é ordinária, não é absoluta. Se a pessoa não tem possibilidade de se ir confessar, Deus é sempre bom e misericordioso.
Nesta mediação também são importantes os conselhos que se dão?
O sacerdote compreende a pessoa, e, se for um bom sacerdote, deve sentir a alegria e saber entregar essa alegria às almas. O padre sente a condição da pessoa e, na base disto, pode encorajar, dar uma mão e ajudar a superar situações difíceis.
Receber, acolher, integrar, são palavras fortes neste Ano. A Igreja saber acolher todas as pessoas, sem discriminar os pecados?
Como tábua de salvação, sem dúvida.
Mas como prática quotidiana?
Bom, pelos defeitos dos homens, isso pode ser um aspeto negativo, mas é próprio da vida pastoral o facto de acompanhar, de discernir, de pegar na mão, faz parte da missão educativa da Igreja. Toda a homilética da Igreja, e toda a ação pastoral de qualquer sacerdote, conduz a um toque de família. Pode acontecer que lhe fechem a porta na cara, mas deve fazer todo o possível para que aquela porta se abra. E aqui está a arte do pastor de se dar bem com todos, e de estar bem com todos, como representante da Igreja.
Educando os sacerdotes e os próprios leigos, todos devem mostrar este rosto da Igreja.
O que é que as pessoas devem levar deste Ano da Misericórdia?
A melhor coisa que as pessoas podem levar consigo deste Ano da Misericórdia é a intimidade com Deus, saberem que o Senhor está connosco e que disse “Eu estou convosco”, e que nunca, nunca, estarão sozinhos, seja em que situação for.
Entrevista e Fotos: Ricardo Perna
Excerto de uma reportagem publicada na edição da FAMÍLIA CRISTÃ de novembro 2016.
Continuar a ler