O Vaticano publicou hoje a terceira exortação apostólica do Papa Francisco. De nome
Gaudete et Exsultate, Alegrai-vos e Exultai, pretende ser um manual para a santidade dirigido a todos os cristãos. Neste documento, o Papa faz uma enumeração das várias características dos santos, aponta os principais obstáculos que impedem a vida de santidade e ainda deixa indicações sobre como proceder nesse caminho.
Ao contrário das encíclicas, que são dirigidas a todo o mundo, crentes e não-crentes, quando escrevem uma exortação apostólica, os Papas falam diretamente aos crentes, aos membros da Igreja Católica. Neste caso, esta é uma exortação que fala diretamente a cada um. A santidade é um caminho individual que se faz em comunidade, e o Papa Francisco estabelece isso ao colocar uma linguagem muito direta a cada pessoa individual. Ao contrário dos seus textos anteriores, muitas vezes escritos na primeira pessoa do plural, aqui aparece muitas vezes o discurso direto, o “Tu”. «Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais», escreve o Papa no ponto 14 do documento que hoje foi apresentado.
Depois da
Evangelii gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, e a
Amoris laetitia, sobre o amor na família, chega-nos esta terceira exortação, agora sobre a santidade.
Santidade «ao pé da porta»
Como tem sido seu apanágio desde o início do pontificado, este é mais um documento que desmonta conceitos que, na cabeça de muitos fiéis, são de difícil compreensão, ou muitas vezes se pensa serem de difícil alcance. No que diz respeito aos santos, mais que aqueles que os são por grandes atos isolados de heroísmo, como os mártires, o Papa prefere começar por descrever a possibilidade de santidade que está ao alcance de todos. «Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da "classe média da santidade"», escreve o Papa.
Há uma preocupação em “reduzir” a santidade a algo acessível a todas as pessoas, no seu dia-a-dia, e não a algo inatingível. Exemplos de como a santidade se pode revelar no dia-a-dia, não como um gesto heroico, mas como a soma de pequenos gestos, para que possa «fazer ressoar mais uma vez a chamada à santidade, (...) porque o Senhor escolheu cada um de nós», diz.
De tal forma esta santidade é um chamamento a todos, que Francisco afirma, citando São João Paulo II, que o «testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se património comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes», não apenas de católicos. E, mais que isso, até «fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes», o Espírito Santo atua, mais uma vez na linha do que defendia São João Paulo II.
Aliás, como em todos os documentos papais, há uma grande preocupação com as referências a textos bíblicos, de outros Papas e de outros bispos ou conferências episcopais, garantindo assim que o documento parte do pressuposto de universalidade da Igreja, e não apenas da visão de um homem.
Referindo que há por vezes um sentimento de que a santidade não está ao alcance de todos, o Papa afirma que «uma pessoa não deve desanimar, quando contempla modelos de santidade que lhe parecem inatingíveis». «Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal, e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele», defende.
O gnosticismo e o pelagianismo, inimigos da santidade dentro da própria Igreja
No segundo capítulo, Francisco elabora sobre os dois obstáculos maiores à santidade nos dias de hoje: o gnosticismo e o pelagianismo, duas correntes de pensamento que são contrárias ao pensamento católico, mas que, escreve o Papa, muitas vezes se manifestam dentro do próprio pensamento cristão. Francisco escreve palavras duras direcionadas para dentro da própria Igreja.
Os gnósticos são aqueles que consideram que a salvação vem aos que forem capazes de aprofundar a doutrina, sem dar importância às ações individuais de cada um. «Os “gnósticos”, baralhados neste ponto, julgam os outros segundo conseguem, ou não, compreender a profundidade de certas doutrinas. Concebem uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de abstrações». O Papa diz que «isto pode acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das paróquias como naqueles que ensinam filosofia ou teologia em centros de formação». «Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra que não está no bom caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a religião para seu benefício, ao serviço das próprias lucubrações psicológicas e mentais. Deus supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa e não somos nós que determinamos a circunstância histórica em que O encontramos», escreve o Papa no ponto 41.
Já São João Paulo II advertia, escreve o Papa, «a quantos na Igreja têm a possibilidade de uma formação mais elevada, contra a tentação de cultivarem “um certo sentimento de superioridade relativamente aos outros fiéis”».
Por outro lado, os pelagianistas colocam toda a sua confiança na capacidade humana de superação, deixando de lado a graça de Deus. «Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo», lamenta Francisco, no ponto 57 da exortação.
Quando muitos «grupos cristãos» dão «excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos», transformam a «vida da Igreja» numa «peça de museu ou propriedade de poucos». «Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos», critica o Papa.
Bem-aventuranças são o «bilhete de identidade do cristão»
O Papa pega na leitura das Bem-aventuranças e indica o caminho para a santidade, desconstruindo, à semelhança do que fez na Amoris Laetitia com a leitura de Paulo aos Coríntios sobre o Amor, todas as interpelações que Jesus faz quando está no monte a pregar este Sermão da Montanha. «Saber chorar com os outros isso é santidade», escreve o Papa ao explicar porque é são felizes os que choram.
Sobre os que são pobres de espírito, Francisco elogia-os porque, «quando o coração se sente rico, fica tão satisfeito de si mesmo que não tem espaço para a Palavra de Deus, para amar os irmãos, nem para gozar das coisas mais importantes da vida», diz.
Sobre a mansidão, Francisco pede que seja posta em prática mesmo que outros considerem que isso é sinal de fragilidade. «Se vivemos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos. Mas, quando olhamos os seus limites e defeitos com ternura e mansidão, sem nos sentirmos superiores, podemos dar-lhes uma mão e evitamos de gastar energias em lamentações inúteis», diz.
A justiça que Deus nos pede que procuremos não é a que leva à «corrupção». «Quantas pessoas sofrem por causa das injustiças, quantos ficam a assistir, impotentes, como outros se revezam para repartir o bolo da vida. Alguns desistem de lutar pela verdadeira justiça, e optam por subir para o carro do vencedor. Isto não tem nada a ver com a fome e sede de justiça que Jesus louva», avisa.
Para cada uma das Bem-aventuranças, o Papa explica como proceder, e não prescinde de nenhuma, nem devem prescindir os cristãos, pede o Papa. «Perante a força destas solicitações de Jesus, é meu dever pedir aos cristãos que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências», pode ler-se no ponto 97.
«A força do testemunho dos santos consiste em viver as bem-aventuranças e a regra de comportamento do juízo final. São poucas palavras, simples, mas práticas e válidas para todos, porque o cristianismo está feito principalmente para ser praticado e, se é também objeto de reflexão, isso só tem valor quando nos ajuda a viver o Evangelho na vida diária», resume o Papa.
Suportação, paciência e mansidão, alegria e sentido de humor
No capítulo IV, Francisco enumera as características que, nos dias de hoje, levam à santidade de todo e qualquer cristão que se disponha a possuí-las.
Desde logo, a capacidade de suportação, paciência e mansidão que os cristãos devem adotar nas redes sociais, um campo tão banal e vulgar nos dias de hoje, mas que se apresenta como uma área essencial onde essa busca pela santidade se pode fazer presente. «Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança», avisa o Papa.
Isto requer muita capacidade de humilhação, não no sentido negativo da palavra. «Se não fores capaz de suportar e oferecer a Deus algumas humilhações, não és humilde nem estás no caminho da santidade. A santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da humilhação do seu Filho: este é o caminho. A humilhação faz-te semelhante a Jesus», escreve o Papa, que acrescenta que humildade não é «caminhar com a cabeça inclinada». «Às vezes uma pessoa, precisamente porque está liberta do egocentrismo, pode ter a coragem de discutir amavelmente, reclamar justiça ou defender os fracos diante dos poderosos, mesmo que isso traga consequências negativas para a sua imagem».
Francisco também escreve que a santidade é «
parresia». «É ousadia, é impulso evangelizador que deixa uma marca neste mundo», e por isso não deve ser entendido sem algum sentido de humor e alegria. Francisco cita o humor de São Thomas Moore, São Vicente de Paulo ou São Filipe de Nery, e adianta que «o mau humor não é um sinal de santidade».
Esta alegria é visível nos missionários, que Francisco elogia, enquanto escreve que a Igreja «não precisa de muitos burocratas e funcionários», mas sim de «missionários apaixonados, devorados pelo entusiasmo de comunicar a verdadeira vida». «Os santos surpreendem, desinstalam, porque a sua vida nos chama a sair da mediocridade tranquila e anestesiadora».
O caminho do discernimento
Finalmente, Francisco retoma nesta exortação um termo que tem sido aldo de muito polémica desde a publicação da
Amoris laetitia. A santidade é um caminho que precisa de «discernimento». «Sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes à mercê das tendências da ocasião», diz o Papa. Por isso, explica que cada um deve fazer discernimento «não para descobrir que mais proveito podemos tirar desta vida, mas para reconhecer como podemos cumprir melhor a missão que nos foi confiada no Batismo».
Escreve o Papa que «o discernimento não é uma autoanálise presuntuosa, uma introspeção egoísta, mas uma verdadeira saída de nós mesmos para o mistério de Deus, que nos ajuda a viver a missão para a qual nos chamou a bem dos irmãos».
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna, l'Osservatore Romano e D.R.
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