O primeiro dia da visita do Papa Francisco ao Iraque foi marcado pelo apelo à paz e à não difusão de armas, assim como pedidos à igualdade de direitos de todos os cidadãos, união entre todas as religiões e à necessidade dos bispos e sacerdotes se colocarem «sempre no povo de Deus, nunca separados como se fôsseis uma classe privilegiada».

Foram vários os compromissos, sendo que a principal diferença para outras visitas esteve no pouco “afeto” dado ao Papa ao longo das estradas, ou nas cerimónias. A pandemia de COVID-19 não permitiu grandes contactos, desde logo no aeroporto, onde foi recebido pelo primeiro-ministro iraquiano e por grupos de dança e música, que animaram a passagem do Papa do avião, até ao carro blindado que o transportou ao palácio presidencial.
Mas isso não retirou um sorriso da face do Papa, nem convicção na forma como se apresentou. «Venho como peregrino para os [aos católicos] animar no testemunho de fé, esperança e caridade que dão no meio da sociedade iraquiana», disse o Papa no
discurso perante o presidente iraquiano Barham Salih.
Esse foi, aliás, o seu primeiro discurso público, depois de um pequeno encontro com o primeiro-ministro iraquiano no aeroporto e de um encontro privado com o presidente do Iraque. Perante o presidente, as autoridades da sociedade civil e o corpo diplomático, o Papa pediu que se «calem as armas» e se procure a paz. «Calem-se as armas! Limite-se a sua difusão, aqui e em toda a parte! Cessem os interesses de parte, os interesses externos que se desinteressam da população local. Dê-se voz aos construtores, aos artífices da paz; aos humildes, aos pobres, ao povo simples que quer viver, trabalhar, rezar em paz! Chega de violências, extremismos, fações, intolerâncias! Dê-se espaço a todos os cidadãos que querem construir juntos este país, no diálogo, no confronto franco e sincero, construtivo. Quem se empenha pela reconciliação e o bem comum esteja disposto a deixar os seus interesses de lado», pediu o Papa aos presentes.
Num discurso não muito longo, mas cheio de “recados”, lembrou os yazidis, «vítimas inocentes duma barbárie insensata e desumana, perseguidos e mortos por causa da sua filiação religiosa, estando em risco a sua própria identidade e sobrevivência». O Papa afirmou que «a diversidade religiosa, cultural e étnica, que há milénios carateriza a sociedade iraquiana, é um recurso precioso de que lançar mão, e não um obstáculo a ser eliminado». «Hoje o Iraque é chamado a mostrar a todos, especialmente no Médio Oriente, que as diferenças, em vez de gerar conflitos, devem cooperar harmoniosamente na vida civil», referiu o Santo Padre.
O Papa não esqueceu a pandemia que se vive, «que não só atingiu a saúde de muitas pessoas, mas provocou também o deterioramento das condições sociais e económicas já contusas por fragilidade e instabilidade», e pediu uma «justa distribuição da vacina por todos».
Sobre a reconstrução, o Papa não esqueceu o papel «decisivo» da comunidade internacional. Francisco começou por agradecer «aos Estados e às Organizações Internacionais que estão a trabalhar em prol da reconstrução do Iraque e a dar assistência aos refugiados, aos deslocados internos e àqueles que têm dificuldade em retornar à própria casa, disponibilizando alimentos, água, abrigo, serviços de saúde e saneamento no país, bem como programas visando a reconciliação e a construção da paz», mas não deixou de referir que espera que «as nações não retirem a mão amiga e construtora estendida ao povo iraquiano, mas continuem a operar em espírito de responsabilidade comum com as Autoridades locais, sem impor interesses políticos ou ideológicos».
O Papa sustentou, a concluir, que a Igreja Católica deseja ser «amiga de todos e, através do diálogo, colaborar de forma construtiva com as outras religiões, para a causa da paz». «A presença muito antiga dos cristãos nesta terra e o seu contributo para a vida do país constituem um rico legado que pretende continuar a servir a todos. A sua participação na vida pública, como cidadãos que gozam plenamente de direitos, liberdades e responsabilidades, testemunhará que um são pluralismo religioso, étnico e cultural pode contribuir para a prosperidade e a harmonia do país», concluiu o Santo Padre, em mais uma referência à necessidade de igualdade de direitos para os cristãos e outras minorias étnicas, ponto ao qual se referiu 4 vezes neste seu primeiro discurso em terras iraquianas.
O presidente iraquiano falou, à semelhança do Papa, na necessidade de «diálogo» entre todos, assim como de respeito pelo «pluralismo» do país, que desejou possa ser «independente com plena soberania».
Barham Salih afirmou que o país viveu, nas últiams duas décadas, «a maior guerra contra o terrorismo», e que «curar a ferida profunda que feriu o Iraque exige cuidado e compromisso, para garantir que Iraque se torna lugar de harmonia, ponte colaboração entre os países da região». O presidente disse ainda que «o mundo vive época de contraste e polarizações, onde grande parte está a perder a atitude de pluralismo e de aceitação do outro, e este caminho alimenta o terrorismo e o ódio». «Isso ameaça o nosso futuro. É essencial continuar a combater as ideologias extremistas», considerou.
Religiosos que não se isolem do seu rebanho
Depois de almoço, hora iraquiana, o Papa deslocou-se à catedral siro-católica de Nossa Senhora da Salvação para um encontro com os religiosos do país. À entrada, e depois de um pequeno passeio para ver a igreja por fora que saiu do protocolo e atrapalhou seguranças e fotógrafos, Francisco foi acolhido por um pequeno grupo de doentes em cadeiras de rodas, que saudou o Papa e lhe colocou uma coroa de flores ao pescoço. Francisco abençoou-os e esteve à conversa com o grupo por breves instantes.
A acolher o Papa estavam a assembleia dos bispos católicos do Iraque, que reúne responsáveis da Igreja de rito caldeu, siro-católico, arménio-católico, melquita e latino, sendo presidida pelo cardeal Louis Sako, patriarca de Babilónia dos Caldeus. Este responsável recordou o ataque «criminoso» de 2010 e sublinhou que, quatro anos depois, o Estado Islâmico obrigou à fuga de todos os 120 mil cristãos da planície de Nínive e Mossul. «Agradecemos a Deus, porque essas áreas foram libertadas em 2017 e quase 50% dos seus habitantes regressaram», realçou o cardeal Sako.
Já o patriarca Inácio III apelou ao Papa para «acelerar» o processo de beatificação dos «48 mártires massacrados durante a celebração da Divina Liturgia dominical», nesta catedral em que se encontravam para este encontro.
Numa igreja cheia, com os distanciamentos impostos pela pandemia de covid-19, o Papa
avisou os religiosos de que é fácil «ser contagiado pelo vírus do desânimo que às vezes parece difundir-se ao nosso redor». «Mas o Senhor deu-nos uma vacina eficaz contra este vírus mau: é a esperança, que nasce da oração perseverante e da fidelidade diária ao nosso apostolado», afirmou. Nesse sentido, pediu que os religiosos utilizem esta «vacina» para «prosseguir com energia sempre nova, para partilhar a alegria do Evangelho como discípulos missionários e sinais vivos da presença do Reino de Deus, Reino de santidade, justiça e paz».
Continuando na analogia do vírus, o Papa Francisco afirmou que a «antiga história da Igreja nestas terras, uma fé viva em Jesus é “contagiosa”, pode mudar o mundo». Neste sentido, refere o Santo Padre, agradeceu aos religiosos o trabalho feito até aqui e pediu que perseverem no «compromisso», «a fim de garantir que a Comunidade Católica no Iraque, apesar de pequena como um grão de mostarda, continue a enriquecer o caminho do país no seu conjunto».
O Papa pediu que as diferentes Igrejas presentes no Iraque atuem em conjunto, ao jeito de um «tapete». «As diversas Igrejas presentes no Iraque, cada qual com o seu secular património histórico, litúrgico e espiritual, são como tantos fios de variadas cores que, entrelaçados conjuntamente, compõem um único belíssimo tapete, que não só atesta a nossa fraternidade, mas remete também para a sua fonte, pois o próprio Deus é o artista que idealizou este tapete, que o tece com paciência e prende cuidadosamente, querendo-nos sempre bem entrelaçados entre nós, como seus filhos e filhas», referiu o Papa.
Aos bispos, o Papa pede que sejam pais preocupados por que os filhos [sacerdotes, religiosos, seminaristas e catequistas] estejam bem, prontos a dar-lhes apoio e ânimo de coração aberto», e aos sacerdotes, religiosos e seminaristas pede que não neguem a sua origem, a «estirpe» que é o «povo santo de Deus». «Não vos afasteis do santo povo de Deus, onde nascestes. Não vos esqueçais das vossas mães e das vossas avós, que vos “amamentaram” na fé, como diria São Paulo. Sede pastores servidores do povo, e não funcionários de Estado: sempre no povo de Deus, nunca separados como se fôsseis uma classe privilegiada», pediu.
No final, e depois da troca de presentes, o Papa assinou o Livro de Honra e deslocou-se para a Nunciatura, onde irá descansar. Amanhã é dia de uma visita de cortesia ao Ayatollah Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, em Najaf, um encontro inter-religioso em Ur, terra de Abraão, e de uma missa celebrada em rito caldeu na catedral de S. José.
Já na nunciatura, o Papa Francisco recebeu responsáveis pela ‘Escola de Desportos pela Paz’ na nunciatura apostólica (embaixada da Santa Sé) em Bagdade, englobado no projeto do Papa para uma rede mundial de escolas, ‘Scholas Ocurrentes’, para falarem do lançamento de uma iniciativa que visa a educação para a paz através do desporto. Em comunicado enviado hoje à Agência ECCLESIA, a fundação pontifícia ‘Scholas’ sublinha que o projeto visa a realização de “diversos programas com os jovens iraquianos para vivenciar a cultura do encontro, por meio do desporto e da arte”.
A delegação que se encontrou com o Papa estava acompanhada pelo bispo D. Robert Jarjis, de Bagdade; pelo ministro iraquiano da Juventude e do Desporto, Adnan Dirjal; por Juan José Escobar Stemmann, embaixador da Espanha no Iraque; Riyadh Kadhum Alazzawi, atleta iraquiano e campeão mundial de kickboxing; Mario del Verme, coordenador de desporto da ‘Scholas Itália’; e Manuel Deza, treinador internacional das ‘Scholas’.
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Vatican Media
Notícia atualizada às 18:56:00 com o relato do encontro do Papa com a delegação da "Escola de Desportos pela Paz".
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