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Pe. João Felgueiras:«Deus fez-me para amar Timor»
09.06.2021
O Padre João Felgueiras é missionário jesuíta, em Timor, há mais de quarenta anos. Viveu a invasão indonésia e teve um papel importante durante os anos de ocupação. Diz-se português mas amante da terra e das gentes de Timor. Durante a conversa que mantivemos, em 2005, usa, algumas vezes, o «nós» para falar dos timorenses. A amizade e a simpatia que o ligam ao povo notam-se na simplicidade dos pequenos gestos. No final da missa na igreja de Balide, os fiéis correm a pedir-lhe a bênção. O Pe. João fala com cada um com uma voz terna e um olhar meigo. Em 2011, quando tinha 90 anos, o presidente da República de Timor-Leste proclamou-o, e a outros dois sacerdotes, "herói nacional" por se ter mantido ao lado do povo durante a ocupação indonésia.


Como veio para Timor?
O padre provincial propôs-me vir para Timor. Eu não imaginava tal missão. Pedi um tempo para refletir. E aceitei. Fui amadurecendo a ideia.
Vim com grande entusiasmo e alegria. Ao ver as terras de Timor vi uma terra para evangelizar. Cheguei em 1974 e estive até 1976 no Seminário como diretor. Em 7 de dezembro de 1975, foi a invasão. Vimos as tropas, os aviões, os tanques anfíbios e vimos um grande dilema cair sobre Timor.
Houve um acontecimento que foi um gesto da providência. Em agosto de 1975, como era habitual, fomos fazer uma peregrinação a Nossa Senhora. Quando saímos de Díli, no dia 9 de agosto, já havia perturbações e conflitos entre timorenses. Partimos numa camioneta de carga até Manatuto. A partir daí fomos a pé. Entretanto a movimentação política e o conflito bélico entre UDT e Fretilin ia-se dando. Em Suibada, deram-nos a entender que tínhamos de sair dali. Eram trinta e tal seminaristas, três padres e as irmãs canossianas. Naquela tarde de agosto, aquela peregrinação levou-nos mais de uma semana pelo mato. Fomos sempre bem recebidos pelo povo, mas com muitas dificuldades.
Em Baucau, eu soube que havia uma ordem da Santa Sé para todos os missionários abandonarem Timor. Fui saber e disseram-me que havia ordem para levar as irmãs mas não os padres. Voltei para o Colégio. Ficámos lá um mês inteiro. Os seminaristas tinham um programa muito apertado. Foi uma espécie de exercícios espirituais para os preparar para a invasão. Alguns morreram durante a guerra quando o exército indonésio invadiu Díli. Mas foi um gesto divino mantermo-nos lá. O seminário foi saqueado.
Durante aquele tempo estivemos a preparar os seminaristas para o futuro. Em 1977, dez seminaristas foram estudar para a ilha das Flores, na Indonésia. Aqui não era possível.
 
Como foi a invasão?
Com os indonésios havia um elemento positivo que nos protegia. Eles vinham com o objetivo de nos livrar dos comunistas e por isso protegiam-nos. Mesmo assim, alguns padres tiveram problemas.
Mas nós éramos extremamente cautelosos. Podíamos ser mortos e acontecer também algo de mau aos seminaristas. O seminário foi bombardeado e destruído. Fechou em 1975. Reabrimos em 1978 com 12 seminaristas. Recebíamos centenas de jovens que vinham ali aprender português. Eram muitos e então reabriu o Externato S. José. Até 1991, o externato ensinou o currículo português. Lá, nós promovíamos os direitos humanos. O facto de hoje termos um núcleo de políticos timorenses que defende a língua portuguesa deve-se a um grupo que esteve lá a estudar naquela altura. Foi importante termos ficado em Timor durante a ocupação. A pressão era grande para sairmos. Os colegas que estavam em Díli combinaram ficar e eu, quando regressei de Suibada, recomecei as minhas atividades. Durante esse tempo a nossa presença era simbólica: um sinal de esperança. Os timorenses viram em nós a esperança de que haveria um futuro melhor para Timor porque éramos missionários e porque éramos portugueses. Passado um tempo, os indonésios quiseram mandar-nos embora porque perceberam que os timorenses viam em nós a esperança de mudar as coisas. Eles sentiam que nós influíamos na educação e no espírito dos jovens. Em 1986, houve uma pressão muito grande para sairmos. Chegou mesmo a vir um padre de Roma para tratar disso. Os timorenses foram ter com ele e pediram para ficarmos. Eles diziam que eram muito nossos amigos porque nós tínhamos ficado. Hoje já não temos grande simbolismo. Mas foi uma época muito importante.
 
Durante a ocupação era possível sair de Timor?
Quando saíamos os timorenses pediam-nos para falar com o governo português e para pedir para Portugal, pelo menos, não reconhecer Timor como parte da Indonésia. Em 1986, fui a Portugal. Fui ao Palácio de Belém. Sempre com medo de espiões. Se os indonésios soubessem não me deixariam voltar. Saí de Timor com autorização para ir a Roma e não a Portugal. Para regressar dificultaram-me muito as coisas. Estive oito meses em Jacarta à espera para poder entrar em Timor.
 
Sair de Timor era difícil e arriscado. E comunicar?
A comunicação com o exterior era impossível. Tudo era revistado. Tanto eu como o Padre Martins ajudávamos na comunicação entre a resistência nas montanhas e o exterior. Quando tínhamos algum portador de confiança entregávamos as coisas.
Ele levava e punha no correio em Singapura. A cooperação foi decisiva. Era a forma de comunicar com Portugal e com membros da resistência no exterior. Lembro-me de cartas do Xanana que passaram por nós.
 
Como era Timor quando chegou?
Quando cá cheguei havia muita alegria. Quase não se via pobreza. Mas impressionou-me a falta de estruturas modernas: estradas, edifícios. A obra melhor que os portugueses cá deixaram foi a obra humana do convívio e da amizade. Sempre que havia uma saída de elementos portugueses de avião ou de barco era um pranto de saudades. Havia uma amizade muito grande. Mesmo os militares que iam embora mantinham isso em Portugal. Uma vez, em Portugal, fui a uma reunião com militares e funcionários que tinham estado cá. Emocionei-me até às lágrimas. Estavam lá milhares de homens. «Aqui é Timor» estava escrito numa faixa à entrada. Houve sempre um elo pessoal entre portugueses e timorenses. Isso ajuda a explicar a explosão de solidariedade em Portugal, em 1999. Os portugueses não devem pensar que o colonialismo acabou.
Somos independente s mas somos nações amigas e irmãs. E Timor precisa disto. É necessário que os portugueses tenham consciência disto. Há uma ligação que não pode ser quebrada. Timor precisa disto. É uma região muito pequena e muito apetecível para os vizinhos. Noto que em Timor o espírito português é o que pode melhor amparar a independência e a identidade de Timor. Nós somos a amizade, a cooperação. Não somos tão metódicos como os australianos mas talvez tenhamos mais coração.

Sei que tem um projeto para ajudar os estudos dos jovens. Como funciona?
De 1988 a 1990 estive em Suibada, no interior, a ajudar o pároco. Contactei diretamente com a grande carência em que as pessoas estavam. Não havia dinheiro para qua se nada muito menos para cadernos. As meninas ficavam sem instrução. Fiquei a imaginar o que seria o futuro. Seria uma situação degradada. Na altura, propus ao meu Superior ajudar na formação e na educação destes jovens. E comecei com algum dinheiro. De 1992 até agora foi uma ajuda fabulosa. O dinheiro que me foi dado inicialmente foi multiplicado com muita ajuda. Ofereci muitos milhares de dólares, ajudei tal vez uns oitocentos jovens. Aquele projeto teve um resultado fabuloso. Foram salvos rapazes e raparigas da uma pobreza extrema, de um fracasso na vida. Foi possível ajudar jovens a estudar no pré-secundário e na universidade. Ainda continuam a vir cá jovens pedir ajuda. Hoje vieram vinte. O filho da cozinheira do seminário, por exemplo, formou-se em Direito. Os jovens estudam na universidade, na Indonésia. Havia uma correspondência enorme. Escrevia-lhes cartas e eles a mim. E ia visitá-los à Indonésia. Foi quase um milagre, um prodígio termos sempre pessoas que nos ajudavam. E ainda nos ajudam de Portugal. Agora vou ter de sacudir os sinos porque vamos ter uma escola nova. A Escola Amigos de Jesus, que já é velhinha, tem 270 aluno s e 25 professores.
 
Vive há mais de trinta anos em Timor. Sente-se timorense?
Sou português mas amo Timor como se fosse a minha terra. Parece-me que Deus me fez para amar Timor.
 
 
 
Texto: Cláudia Sebastião
Fotos: António Miguel Fonseca

 
Entrevista publicada originalmente na FAMÍLIA CRISTÃ de julho de 2005.
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