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Profissionais “invisíveis” são essenciais à sociedade
19.05.2017
Entramos na zona dos serviços da Servilusa – Agências Funerárias e damos logo conta do trabalho que se faz por aqui. Num armazém enorme, muitas urnas estão dispostas sobre grandes prateleiras. Dois ou três homens trabalham numa, colocada à altura deles. O espaço é amplo e arejado. Não há cheiros nauseabundos, nem cheira sequer a medicamentos ou a hospital.

Catarina Vardasta trata da conservação temporária dos corpos.Catarina Vardasta chega sorridente. É a única tanatopractora da empresa. Mas o que é a tanatopraxia? Ela explica que «é a conservação temporária dos corpos», ou seja, «retiramos os líquidos que os corpos têm e injetamos um líquido que contém formol e que vai fazer a conservação temporária do corpo». O tema parece mórbido, mas esta mulher mantém sempre o ar jovial e alegre. Para ela, este trabalho é tão natural que fala dele à mesa com a família ou com os amigos.

Catarina lutou e esperou quatro anos até poder tornar-se tanatopractora. Trabalhava no call center e uma colega tinha mudado de função para a cave do edifício. «Fiquei curiosa com o que ela vinha fazer. Vinha cá espreitar sem ninguém saber, escondidita.» A colega regressou ao call center e surgiu a oportunidade por que esperava. «Sempre que havia alguma oportunidade, eu pedia. Eu acho que era também pela minha maquilhagem. Gosto de saltos altos e deviam achar que este trabalho não era para mim. Eu dizia sempre: “Deixem-me mostrar do que sou capaz.”» Tanto teimou e insistiu que um dia conseguiu.

Tanatopraxia: conservar e cuidar dos mortos
Há dois anos que Catarina faz este trabalho. A conversa continua na sala de tanatopraxia. A sala é ampla, luminosa e limpa. Tem três “macas” metálicas, água e máquinas para introduzir líquidos nos corpos. Ao lado está um carrinho metálico com pinças, tesouras e bisturis. Catarina explica que a conservação é apenas temporária. «O corpo não vai durar para sempre conservado. Mas no funeral não vai libertar cheiros, não vai ter mau aspeto, não vai libertar odores. E isso é o mais importante para as pessoas. Aquando da última despedida, é aquela imagem que fica. Se ficar uma imagem de uma pessoa que parece que está quase a dormir, isso é muito importante.» Mas como é feito o trabalho no concreto? «A primeira coisa que eu faço é a higienização do corpo: lavo o corpo e a cabeça, os orifícios. Depois, faço a tanatopraxia e no final lavo a cabeça com champô, seco-o e penteio-o. Às vezes, pedem penteados com rolos, até já pediram para pintar o cabelo, fazer as sobrancelhas, o buço, pintar as unhas, cortar.»

Sala de tanatopraxia onde Catarina trabalha
Do “uniforme” de trabalho fazem parte a máscara, as luvas, uma bata com proteção para líquidos e a touca. Usa também galochas. Nada que elimine o seu ar feminino e cuidado, presente nos pequenos toques cor-de-rosa nas galochas e nas leggings. É profissional e garante que faz o seu trabalho com gosto. «O prazer que eu tenho é de pensar que o familiar vai ver uma coisa completamente diferente daquilo que viu quando foi ao hospital reconhecer o corpo. Quando vai reconhecer o corpo, este está muitas vezes de boca aberta, olhos abertos, a verter líquidos, com maus cheiros. Com aquela imagem de terror, não é? E depois do tratamento está um corpo sereno, como se estivesse a dormir. O que me faz gostar disto é que o trabalho que eu faço aqui reflete-se na família.»

Limpar escritórios e ser bem tratada
Virgínia é de origem cabo-verdiana. Trabalha fazendo limpezas em escritórios em dois turnos. Das 6h00 às 9h00 e das 19h00 às 21h30. Pelo meio ainda tem outro trabalho. Aceita falar, mas tem medo de tirar fotografias. Diz que «a empresa está sempre em cima de nós e nunca se sabe o que pode acontecer». No caso desta mulher, o seu trabalho é feito com os funcionários nas empresas. «Tem sempre lá alguém. Há sempre gente a entrar e à noite ficam sempre lá pessoas», conta.
Virgínia diz ser bem tratada e valorizada por quem está no espaço que ela limpa e cuida. «Não tenho razão de queixa. As pessoas dizem “bom dia” e cumprimentam-nos», explica.

Maria Elisa faz de tudo na Junta de Freguesia.

Faz-tudo ou assistente operacional
Chegamos ao Mercado de São João da Talha pelas 14h30, debaixo de um sol tórrido. Um funcionário da junta de freguesia abre-nos o portão. «É para a D. Maria, não é?» Maria Elisa Conduto é assistente operacional, um nome pomposo para dizer que é “faz-tudo”.

Encontramo-la agarrada a um “assoprador”, uma máquina que sopra os detritos deixados no chão do mercado para serem depois apanhados. «Faço várias coisas ao longo do dia. Tanto posso cantinar, como regar, como juntar mato, como juntar relva, como limpar sarjetas ou lavar ruas», explica. Antes desta nova categoria era cantoneira, varria as ruas e limpava sarjetas. Foi assim durante cerca de dez anos. Em tudo o que faz, põe o seu empenho. «Penso em fazer o melhor que posso», afirma.

Maria Elisa é uma mulher de voz grossa, sem medo de arregaçar as mangas e também não tem “papas na língua”. Diz o que tem a dizer e ouve o que, às vezes, não gostaria de ouvir. Uma das suas lutas tem a ver com os excrementos deixados pelos donos dos cães. «Se forem ver, aquilo mete-se por todo o lado quando andamos a apanhar o lixo e a varrer. Quando se corta a relva, sai disparado e entra mesmo para dentro das viseiras», conta. Por isso, quando vê à sua frente alguém a não apanhar, informa que há sacos disponibilizados pela junta de freguesia. «Eu aviso as pessoas e ainda me dizem: “A senhora que apanhe. É o seu trabalho.”» As respostas tortas que ouve e os cumprimentos que não lhe devolvem magoam-na. «As pessoas não dizem “bom dia”. Acham que nós somos umas pessoas diferentes, que não somos civilizados como as outras pessoas», conta, revoltada.

Como Catarina, Maria Elisa e Virgínia, há milhares de trabalhadores que não vemos, até mesmo quando nos cruzamos com eles. Muitas vezes só damos conta de que existem quando algo falha. Mas talvez fosse bom, no mínimo, dizer “bom dia” ou “obrigado”.
Reportagem: Cláudia Sebastião
Fotografias: Ricardo Perna
Esta reportagem pode ser lida na íntegra na FAMÍLIA CRISTÃ de maio de 2017.
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