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«Qualquer pessoa pode ser vítima de tráfico»
01.06.2017
Cláudia Pedra trabalhou na Organização Internacional para as Migrações e tem desenvolvido investigação científica sobre tráfico humano na Associação de Estudos Estratégicos e Internacionais (NSIS –Network of Strategic and International Studies). Nesta entrevista, traça um cenário preocupante da situação das crianças traficadas em todo o mundo, com números que fazem pensar.


A questão das crianças é um dos aspetos mais dramáticos da questão dos refugiados?
Sim, sem dúvida. Acho que um dos maiores problemas tem que ver com o facto de muitas destas crianças virem desacompanhadas. As famílias não têm dinheiro para conseguir custear a viagem de toda a família, por isso muitas preferem tentar salvar as crianças e elas vêm sozinhas. Chegam numa situação de grande vulnerabilidade, e uma criança que não venha acompanhada de um adulto é facilmente apanhada numa rede de tráfico humano.
 
Como é que as crianças chegam aos campos e depois se “perdem”?
Infelizmente, acontece em todos os países do mundo crianças que desaparecem depois de entrarem no sistema e serem registadas, o que nunca deveria acontecer. Muitos campos de refugiados, em especial com este avultado fluxo migratório no Mediterrâneo, foram criados de improviso, e não tiveram tempo de ser criados com as devidas condições, e as redes criminosas infiltraram-se nos campos.
 
Para onde é que estas crianças são desviadas?
Para todo o lado. As crianças são usadas para vários fins, dependendo da idade e robustez física. As crianças mais pequenas são maioritariamente utilizadas para adoção ilegal. É importante mencionar que nem sempre os pais adotivos sabem que esta criança é vítima de tráfico, porque recebem tudo a partir de uma empresa aparentemente legal, com todos os documentos da criança. Crianças um pouco mais velhas são colocadas em exploração sexual, pornografia ou prostituição, e em trabalho escravo. Em servidão doméstica, por exemplo, as pessoas estão presas numa casa e estão ao serviço do dono da casa todo o dia sem poderem sair.

Foto: UNICEF/Komenzi
De quem é a culpa de tudo isto?

Eu acho que há vários problemas. Um deles é a falta de prevenção, e isto é um fator que não é menor. Todas as pessoas que trabalham sobre migrações poderiam ter previsto isto. Não era novidade que este fluxo migratório iria acontecer. Por outro lado, precisávamos de trabalhar muito mais a parte de conseguir capturar as redes de crime organizado. Se eu já sei que há redes de tráfico e contrabando, eu sei que elas vão atuar nestes locais, aproveitando o caos e a falta de organização e de segurança. Faltam as Parcerias, a Proteção, a Prevenção e a Punição, os quatro P’s do tráfico.
 
É uma guerra é impossível de vencer?
Não é impossível, mas precisa de um trabalho muito mais consolidado. Para já, porque é um fenómeno mundial, transnacional, precisava de um apoio concertado entre Estados e, dentro dos Estados, de todos os setores.
E há bons exemplos disso. Em Portugal e em mais de 50 países já aplicámos de forma piloto um projeto chamado “Comunidades ativas contra o tráfico”, que parte de uma premissa muito simples, mas eficaz: Se houver uma comunidade local onde todas as pessoas estão informadas sobre o tráfico, e todas as entidades locais relevantes estão formadas, esta comunidade torna-se hostil em relação aos traficantes.
 
Em Portugal, esta realidade existe?
Fizemos um projeto-piloto em duas comunidades, Pontinha – Famões e São Teotónio, e o que vimos é que houve diminuição. As escolas são um meio agregador importantíssimo, porque ao formarmos os professores e os alunos há um efeito de contágio através dos pais e amigos. Mas foi apenas um piloto, precisava de ser mais sistematizado, e era algo que poderíamos replicar.
 
E vamos replicar?
Estamos à procura de financiamento, mas o Estado português não considera o tráfico como uma questão prioritária, a verdade é essa. Tem um plano nacional, com certeza, há muitas melhorias em relação a 2007, mas ainda há muito a fazer, porque não há recursos suficientes.

Há crianças a serem vendidas e crianças a serem importadas para cá nessas redes?
Sim, temos as duas situações no nosso país. Nas entrevistas que fizemos, cada pessoa identificou pelo menos mais três pessoas em situação semelhante. Nas estatísticas internacionais é a mesma coisa. São milhões de crianças que estão a ser traficadas, é uma realidade assustadora.
 
Como podemos detetar estas situações?
São muitas vezes subtilezas que nos podem fazer suspeitar. Um dos casos mais famosos do SEF foi detetado porque os inspetores iam almoçar e ouviram uma prostituta perguntar ao proxeneta se podia ir à casa de banho, o que é invulgar até nesta área de trabalho. Eu posso estar no meu trabalho e notar que o meu colega vive por cima do trabalho, que entregou os documentos ao patrão e ele não os devolveu… Eu posso ver os indícios no meu dia a dia, se souber o que procurar.
 
E o que podemos e devemos fazer, sem colocar em causa a nossa segurança e a dessas crianças?
Nunca se fala com o traficante. O que devemos fazer é contactar a Polícia Judiciária, nomeadamente a Unidade de Combate ao Terrorismo. Se não houver acesso a ela, podem tentar a GNR ou a PSP.
 
E como podemos evitar sermos nós vítimas?
Qualquer pessoa pode ser vítima de tráfico. Se eu receber uma proposta de emprego para ir para a Holanda, devo ir à embaixada da Holanda, fazer uma investigação sobre a empresa e ver se aparece referenciada com casos de ilegalidade, falar para os recursos humanos da empresa no país a ver se estão mesmo a fazer recrutamento.
 
E muitas vezes o risco vem de pessoas conhecidas…
Existe uma estratégia, que são os loverboys, em que as pessoas se aproximam, iniciam uma relação durante seis meses, um ano, e só depois a pessoa vai para exploração. É preciso estar atento aos indícios, como o facto de a outra pessoa não ter familiares ou amigos, ou uma história com falhas.
Nas redes sociais, os traficantes chegam a usar crianças para aliciar outras crianças ao computador. Estes traficantes chegam a forçar rapazes e raparigas a telefonar para os seus países de origem, mandando dinheiro e tudo, dizendo que tudo está bem e que eles podem enviar as suas irmãs para irem ter com eles. É assustador, e as pessoas têm de saber que isto existe. Um português pode ser vítima de tráfico.
 
Entrevista conduzida por Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna e UNICEF
 
 
Leia a entrevista na íntegra na FAMÍLIA CRISTÃ de junho de 2017.
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