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Quem são os guardiões dos menores na Igreja?
10.04.2019
Chegamos à Piazza della Pilotta depois de uma caminhada desde o Vaticano. À nossa espera, a nossa anfitriã conduz-nos a um dos edifícios da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Roma. No primeiro andar, entramos numa das salas de aula. Lá dentro, dois alunos aguardam pela reportagem da Família Cristã. Arrumam uns papéis e sorriem quando nos veem entrar.


A Ir. Jane e o Pe. Sione estão a aprender a ser Guardiões das crianças, e terminaram o primeiro semestre de um mestrado de dois anos sobre o assunto. «Temos dois cursos presenciais aqui na Gregoriana. Um é o Diploma em Safeguarding de menores, intensivo, com a duração de um semestre, de outubro a fevereiro, para dar aos estudantes bases a partir de várias perspetivas e ângulos que já existe desde 2016. Depois temos o Licenciate, um curso de mestrado de dois anos que está agora na sua primeira edição», explica-nos a nossa anfitriã, Katharina Fuchs, uma das responsáveis do Centro, cujo diretor é o Pe. Hans Zoller, um sacerdote jesuíta que esteve muito envolvido na organização da cimeira no Vaticano sobre a Proteção de Menores na Igreja.

No curso intensivo, de um semestre, «falamos de infância, vítimas, abusadores, instituições, prevenção, sempre a partir de várias disciplinas, como a psicologia, teologia, espiritualidade, sociologia, direito canónico, direito civil, entre outras. Estas pessoas são capazes de, em várias áreas, ajudar como guardiões», explica Katharina, que acrescenta que este semestre serve também para os alunos do mestrado. «O primeiro semestre é idêntico ao Diploma, para dar as mesmas bases, e daí continuam a aprofundar os seus conhecimentos na sua área de especialização. Por exemplo, os que vêm do campo da educação aprofundam a educação, não faria sentido estarem a aprofundar o Direito Canónico, por exemplo, e vice-versa. Esse é o segundo semestre, em que têm aulas presenciais, bibliografia para consultarem e onde são encorajados a refletirem e debater uns com os outros sobre os temas. No terceiro semestre terão um estágio que poderão fazer aqui em Roma, em Itália ou em qualquer outro país, para terem uma experiência prática no campo. No quarto semestre farão a tese de mestrado e terão outras aulas».

A Ir. Jane Nway Nway Ei veio da Birmânia e pertence às irmãs de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. Trabalha com jovens que são colocados nas suas casas de abrigo, parte deles devido a abusos sexuais de toda a forma e parte devido a serem vítimas de tráfico humano. Vê chegar às suas mãos todos os dias jovens que foram abusados e maltratados, mas não esconde a «raiva» que sente quando percebe que os abusadores são membros da Igreja Católica. «Sinto raiva! Precisamos de fazer algo, porque a lei deveria proteger as pessoas, mas neste campo não funciona. Eles negam que isto aconteceu e as vítimas são remetidas ao silêncio. Quando há alguns casos que não são reconhecidos pela Igreja ou pela sociedade, é muito mau. Com o novo governo, pouco a pouco, estamos a descobrir mais casos, de monges, de padres, e é uma ótima oportunidade para as vítimas serem ouvidas e ajudadas, porque as pessoas começam a falar e o sistema judicial está a tomar atenção a estes casos», reconhece.

Vindo do Tonga, o Pe. Sione Hamala, da Sociedade de Maria, é o primeiro sacerdote das ilhas Fiji a frequentar o curso e trouxe preocupações diferentes da Ir. Jane na sua bagagem. «Eu trabalho em formação de sacerdotes há oito anos. Um dos aspetos fundamentais para nós é a formação dos nossos sacerdotes. Precisamos de os formar bem e de os avaliar de forma correta. A intenção já estava lá, mas penso que nunca foi levada a sério. Os abusos acontecem lá, e eles precisam de alguém que olhe para esta questão de forma séria», reconhece, adiantando que a principal preocupação tem de ser a «avaliação prévia dos seminaristas». «Ir atrás, ver de onde vêm, a cultura que têm, a história da pessoa, para não aceitarmos qualquer pessoa só com base em recomendações de bispos ou padres. Por exemplo, quando temos um seminarista que anda a saltar de seminário em seminário, temos de levar isto a sério e investigá-lo. O Direito Canónico já o diz, mas não levamos isto a sério. Temos de perceber porque é que ele anda a ser transferido, e ir conhecer a sua realidade antes de o aceitarmos», afirma. Mesmo que, reconhece, possa diminuir o número de sacerdotes. «Não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade. A qualidade está lá, mas não olhamos necessariamente para ela. Não precisamos de quantidade, precisamos de poucas pessoas, mas que tenham qualidade. Nós somos os defensores das crianças, e estes são tempos muito tristes para a Igreja. Isso para mim é muito claro», afirma.

Katharina Fuchs é uma das formadoras do curso de Safeguarding
Grande parte dos alunos destes dois cursos vêm por indicação de instituições – dioceses, colégios, seminários, entre outros – e são religiosos. Os leigos são uma pequena fatia, dois ou três em cada curso com uma turma de 24 pessoas, mas é difícil ter mais. «Seria bom, porque há muitos leigos a trabalhar para a Igreja e iria enriquecer muto o diálogo na formação, porque todos nós temos as nossas fraquezas e as nossas virtudes, e podemos aprender uns dos outros. Mas percebemos que vir fazer os cursos presenciais é difícil para leigos porque têm o seu trabalho, uma família, e ficar em Roma um semestre ou dois anos não é fácil...», diz Katharina Fuchs.

A alternativa pode ser o e-learning, cursos online que o centro disponibiliza e que já formaram «mais de dois mil alunos», explica a responsável. «No curso temos conteúdos semelhantes aos cursos presenciais. Trabalhamos com universidades que implementam alguns dos conteúdos nos seus cursos, com dioceses, congregações, paróquias, formações que estão disponíveis em 5 línguas e meia [risos]: inglês, italiano, francês, alemão e espanhol, e a metade é o português, pois temos as primeiras unidades de formação em português», anuncia, embora lamente que não tenham tido ainda alunos de Portugal. Apesar de já ter formado mais de dois mil alunos em todo o mundo, e de já ter 4 edições presenciais do Diploma com 77 alunos formados, a verdade é que em nenhuma destas formações esteve um único português. «Não, mas se alguém se quiser candidatar, seria muito bem-vindo, acredite», diz Katharina Fuchs, que adianta que «já fomos ao Brasil, mas Portugal não, nem sequer na formação online, e teríamos muto gosto em contar com eles», refere esta responsável.

O curso em Safeguarding – o termo é usado em inglês em todas as formações – é muito mais que “apenas” prevenir os abusos sexuais de menores por parte de membros do clero. «Na fundação do centro falávamos mais de abusos sexuais, mas com o tempo percebemos que é muito mais que isso. A formação não está limitada aos abusos sexuais, mas lida com todos os abusos e todo o tipo de violência, seja sexual, psicológica, física, emocional, ou sequer a negligência contra as crianças», explica Katharina Fuchs.

A Ir. Jane Nway Nway Ei vem de Myanmar e está a fazer o mestrado em Safeguarding
O Pe. Joaquim Kapango de Almeida é espiritano e foi um dos participantes no último Diploma. Angolano, a trabalhar na missão católica de Chinguar, na diocese de Kuito Bié, participou para ajudar a congregação espiritana a «criar políticas para minimizar ao máximo esta questão dos abusos». A avaliação da formação é positiva, no sentido em que permitiu «olhar para o problema em diferentes países, em diferentes culturas, e ver de facto os elementos que funcionam como causa de risco ou de proteção».
Este sacerdote reforça a ideia que «o abuso sexual é apenas um dos aspetos em causa nesta questão da proteção de menores». «O problema dos abusos de menores não é só o abuso sexual. O abuso sexual está incluído, mas o que está em causa é muito mais, são situações de abandono, de negligência e todo o tipo de maltratos, o tráfico de menores», considera.
 
Estes guardiões, quando regressarem aos seus países, lutarão contra um inimigo poderoso: o silêncio. «Muitas destas culturas estão orientadas para se protegerem pelo silêncio», conta o Pe. Sione. A Ir. Jane fala de um problema semelhante. «Myanmar é um país que vive a cultura do silêncio, e vamos enfrentar muitos desafios da parte das pessoas, porque não é bom falar destas coisas, e as pessoas têm medo de o fazer. As pessoas têm de perceber que têm de falar, que não é bom que isto aconteça», considera esta religiosa.

É por perceberem que esta questão do silêncio impossibilita a denúncia que Katharina Fuchs afirma que é preciso compreender para além do episódio de abuso. «Quando falamos de abusos sexuais, começamos sempre por falar da cultura. Muitos perguntam-nos o que é que isso tem a ver, mas primeiro precisamos de conhecer a cultura, as tradições, crenças e os valores, como é que a criança é vista, se é tratada com dignidade, quais são os seus direitos, se podem falar abertamente, se são escutados. Só aí é que conseguimos identificar alguns fatores de risco que podem conduzir a abusos sexuais, e depois pensarmos em medidas de proteção e prevenção. Aprendemos que sem tomar em conta a cultura de cada um é impossível chegar a uma solução. Se percebemos que a nossa cultura permite os abusos sexuais, sabemos que é por aí que temos de começar. É um caminho duro, pode durar anos a mudar essa cultura, mas temos de começar por aí», defende.
Depois de terminarem a formação, os alunos regressam à sua realidade. O primeiro passo para aplicarem o que aprenderam é a criação de «redes», o que nem sempre é fácil. «Há países onde há muita consciência do problema e se houver várias pessoas formadas de lá, como no Quénia, Gana, Índia ou México, fica mais fácil. Ou se já tiver havido alguns casos, também é mais fácil. Mas por exemplo em casos como o do Pe. Sione, em que é o primeiro a vir à formação do seu país, vai ser mais difícil, tem de ver connosco ou encontrar parceiros em países vizinhos», diz.

O Pe. Sione Hamala é o primeiro sacerdote das ilhas Fiji a frequentar a formação.
Certo é que regressam «transformados». «O ensino aqui não é o tradicional. Temos partilhas, reflexões, momentos de oração, missas semanais, a parte espiritual está incluída. Com este curso, não queremos apenas sensibilizar para o problema ou ter a consciência de que este é um problema, mas queremos que toque os corações dos estudantes, e queremos que as pessoas se comprometam com o Safeguarding, verdadeiramente», defende.
Alguns dos alunos foram eles próprios vítimas de abusos que agora trabalham para evitar que isso volte a acontecer a outras pessoas. Quando isso acontece, e os alunos optam por partilhar essa experiência, a formação torna-se ainda mais «real», «reforça a convicção de que algo precisa de ser feito», conclui Katharina Fuchs.
 
Apesar de já ter formado mais de dois mil alunos em todo o mundo, e de já ter 4 edições presenciais do Diploma com 77 alunos formados, a verdade é que em nenhuma destas formações esteve um único português. «Não, mas se alguém se quiser candidatar, seria muito bem-vindo, acredite», diz Katharina Fuchs, que adianta que «já fomos ao Brasil, mas Portugal não, nem sequer na formação online, e teríamos muto gosto em contar com eles», refere esta responsável.

A reportagem em Roma no Encontro sobre Proteção de Menores na Igreja é realizada em parceria para a Agência Ecclesia, Família Cristã, Flor de Lis, SIC e Voz da Verdade.

Reportagem e fotos: Ricardo Perna
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