Católicos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, evangélicos e outros: oito confissões religiosas subscreveram uma declaração onde se opõem à legalização da eutanásia. «Nós, comunidades religiosas presentes em Portugal, acreditamos que a vida humana é inviolável até à morte natural e perfilhamos um modelo compassivo de sociedade e, por estas razões, em nome da Humanidade e do futuro da comunidade humana, causa da religião, nos sentimos chamados a intervir no presente debate sobre a morte assistida, manifestando a nossa oposição à sua legalização em qualquer das suas formas, seja o suicídio assistido, seja a eutanásia», pode ler-se na declaração.
Subscrevem este texto a Aliança Evangélica Portuguesa, a Comunidade Hindu Portuguesa, a Comunidade Islâmica de Lisboa, a Comunidade Israelita de Lisboa, a Igreja Católica, o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, a União Budista Portuguesa e a União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia.
«Cuidar até ao fim com compaixão» é o título da declaração do Grupo de Trabalho Inter-religioso Religiões-Saúde (GYIT). No documento que vai ser enviado ao Presidente da República e ao Presidente da Assembleia da República, acentuam-se três pontos: a dignidade daquele que sofre, por uma sociedade misericordiosa e compassiva e os Cuidados Paliativos, uma exigência inadiável.
Dignidade da vida comum a todos
Estas oito confissões religiosas defendem que «a vida não só não perde dignidade quando se aproxima do seu termo, como a particular vulnerabilidade de que se reveste nesta etapa é, antes, um título de especial dignidade que pede proximidade e cuidado». Agradecendo o apoio dos médicos pelo acompanhamento aos doentes em sofrimento, entendem que «a religião oferece uma possibilidade de sentido a quem acredita, mas sabemos também, pela experiência do acompanhamento de tantos que não são religiosos, que não depende de o ser a possibilidade de encontrar sentido para o próprio sofrimento».
Estas religiões defendem também que «o que nos é pedido não é que desistamos daqueles que vivem o período terminal da vida, oferecendo-lhes a possibilidade legal da opção pela morte, à qual pode conduzir a experiência do sofrimento sem cuidados adequados». «Uma sociedade que abandona, que se desumaniza, que se torna indiferente» faz que se deseje a morte. O desafio nestes casos é «que nos comprometamos mais profundamente com os que vivem esta etapa, assumindo a exigência de lhes oferecer a possibilidade de uma morte humanamente acompanhada».
No terceiro ponto, estas oito confissões religiosas, salientam o papel essencial dos cuidados paliativos. «A verdadeira compaixão não é insistir em tratamentos fúteis, na tentativa de prolongar a vida, mas ajudar a pessoa a viver o mais humanamente possível a própria morte, respeitando a naturalidade desta. Os cuidados paliativos fazem-no, valorizando a pessoa até ao seu fim natural, aliviando o seu sofrimento e combatendo a solidão pela presença da família e de outros que lhe sejam significativos.» Por isso, exigem que estes cuidados se estendam «a todos o acesso aos cuidados paliativos» e assumem o compromisso de participar nisso.
Visão religiosa é «precisa»
O texto termina concluindo que «as Tradições religiosas professam que a vida é um dom precioso e, para as religiões abraâmicas, um dom de Deus e, como tal, se reveste de carácter sagrado; mas este apenas confirma a sua dignidade natural, da qual derivam a sua inviolabilidade e indisponibilidade intrínsecas, que, portanto, não dependem da fundamentação religiosa».
As confissões religiosas defendem que «as sociedades precisam desta visão do humano ao lado de todas as outras» e com isso justificam a declaração que foi hoje assinada e vai ver enviada a Marcelo Rebelo de Sousa e Jaime Gama.
«Encontrámo-nos no essencial»
D. Manuel Clemente assinou a declaração em representação da Igreja Católica. O cardeal-patriarca de Lisboa congratulou-se porque «nos encontrámos no essencial. A religião é uma ligação ao absoluto e temáticas como a da vida unem-nos». D. Manuel Clemente defendeu que este debate do fim da vida continua depois de dia 29 de maio, em que ocorre o debate na Assembleia da República. «É um debate que continua e que passa pelas leis. As leis têm um sentido pedagógico e quando se trata da vida há muito a fazer para que seja devidamente contemplada e acompanhada. Nós dizemos da conceção à morte natural e dói quando é particularmente sofrida. Aí tem de ser acompanhada tecnicamente com cuidados paliativos, acompanhada pela família. Se fizermos tudo isto e se nos tornarmos uma sociedade globalmente paliativa, que acompanha, que cuida, a vida quer viver.» O cardeal-patriarca de Lisboa defendeu que «os cuidados paliativos não chegam nem em quantidade nem em qualidade a todos os que deles precisam» e que o seu desenvolvimento é essencial.
Apartheid religioso?
Antes da assinatura da declaração conjunta, houve vários painéis com a participação de representantes das várias religiões sobre a participação política e ética dos crentes. Fernando Loja, jurista e presidente da Convenção Baptista Portuguesa, organismo integrante da Aliança Evangélica lembra que a lei de liberdade religiosa e de culto «prevê a possibilidade de exprimir livremente pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio a matéria religiosa. E o que é matéria religiosa? Os críticos entendem que é muito restrito. Será que a defesa da vida é matéria religiosa? Pessoalmente, penso que sim. Os 10 mandamentos são dez princípios constitucionais e o princípio de “não matarás” tem prevalecido. Fará algum sentido pedir-se a alguém com convicções religiosas que se abstenha de defender os valores éticos que fazem parte da sua religião?» Para Fernando Loja, «a religião é algo que sai dos templos, é algo que sai das casas e premeia toda a vida das pessoas que são crentes».
Este jurista defendeu o direito aos crentes de participarem ativamente na política e na vida social e critica os que defendem que as igrejas nada têm que ver com a política. «Defendem um novo tipo de apartheid. Na África do Sul, a participação política dependia da cor da pele. Alguns em Portugal parece que defendem que a liberdade de participação política dependa de ter ou não ter religião.»
«Religiões não tê monopólio da verdade»
O padre José Nuno Ferreira da Silva foi coordenador nacional da Capelanias Hospitalares e membro fundador deste Grupo de Trabalho Religiões Saúde. O sacerdote lamentou que a lei de 2009 que permite o acompanhamento de doentes terminais pela família não tenha sido ainda regulamentada. «A parte dos deficientes e das crianças foi alvo de regulamentação. Os doentes terminais não. Se alguém tiver um familiar a morrer num hospital não pode acompanhá-lo sem pôr uma baixa fraudulenta», conta. Falando sobre a participação das religiões na bioética, amite que «as religiões não têm o monopólio da verdade. O seu discurso é um serviço não uma afirmação categórica que se fecha ao diálogo». Por isso, «o nosso tom tem de ser empático e temos de ter esta dimensão: revindiquemos a liberdade de religião para entrar no debate bioético, mas tenhamos humildade». Mesmo assim, O Pe. José Nuno Ferreira da Silva, durante 18 anos capelão do Hospital de São João, defende que as religiões devem participar, trazendo para a discussão a visão do homem como «mistério» e não apenas como «fenómeno». «O contributo das religiões é necessário. Em que é que somos precisos? Alguns acham que não devemos sair das sacristias da Igreja, da sinagoga, da mesquita ou do templo budista, seja o que for. Nós somos necessários e se nós não intervirmos, há coisas que ficam comprometidas. Nós podemos falar a partir da liberdade em relação ao espírito do tempo», afirmou. A experiência dos membros deste Grupo de Trabalho Inter-religioso tem particular relevância neste caso, defende e explica porquê: «O GTIR fala a partir a experiência dos hospitais e 60% dos portugueses morrem nos hospitais. Nós sabemos que muitas pessoas de idade, no dia em que fosse permitida a eutanásia, seriam levados a isso, sentir-se-iam obrigados a isso mesmo sem ser obrigados. O espírito do tempo tem vistas curtas, imediatas, particularistas. Nós estamos nos hospitais. Nós sabemos como as coisas se fazem.»
Os dados estatísticos mais recentes sobre o número de crentes de cada religião são do censos de 2011. Aí declararam-se católicos quase 73 milhões de portugueses. Apenas 615 mil disseram não ter religião. Mais de 163 mil dizem-se de outra igreja cristã, 75 571 protestantes, 56 550 ortodoxos, 20 640 muçulmanos e 3 000 judeus. Por estes dados se percebe que esta declaração junta confissões religiosas que representam uma esmagadora maioria da população portuguesa.
O Grupo de Trabalho Religiões Saúde junta representantes de mais de uma dezena de comunidades religiosas e foi criado em 2009 para acompanhar a regulamentação da assistência religiosa nos estabelecimentos de saúde.