A Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) congrega quase 100 organizações, juntas com o objetivo de receber refugiados e de lhes proprocionar uma nova vida longe dos horrores da guerra. Mas são poucos os que a Europa está a mandar para os seus países, o que levanta questões sobre as verdadeiras intenções dos estados europeus sobre estas vítimas de guerra.
Já recebemos alguns refugiados. Como está a correr o processo de integração?
De uma forma muito positiva, no sentido em que começo por sublinhar a forma como a sociedade portuguesa se organizou para criar uma solução, nomeadamente através da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) para acolher famílias de refugiados. Quis-se dar uma prioridade muito grande às crianças acompanhadas pelos seus familiares, e foi possível, rapidamente e por todo o país, mais de 100 organizações estarem preparadas para acolher. Existem 600 lugares já disponíveis, que infelizmente não estão a ser ajudados. Nesse sentido, creio que em termos da burocracia europeia, em termos do que é a vontade política dos Estados membros da UE se tem registado um atraso e uma lentidão enorme que faz com que Portugal, 4 meses depois, só tenha recebido 24 refugiados.
É um problema burocrático?
Burocracia associada a falta de vontade política. A notícia que temos, da parte das autoridades públicas, é que na Grécia e em Itália, tudo o que deveria estar a ser feito para organizar a distribuição dos refugiados pelos diferentes países europeus não está a acontecer ou está a acontecer de uma forma muito lenta. O que evidencia que mesmo as decisões que a UE tem tomado, como foi o caso desta decisão de recolocar 160 mil refugiados em diferentes países, não as consegue concretizar.
Mas não seria de esperar que países como a Grécia e a Itália quisessem ter essas situações resolvidas?
É totalmente incompreensível o que está a acontecer, não faz nenhum sentido, quer no caso grego, que tem uma enorme pressão, mas tem tido muitas dificuldades de colaboração e entendimento com as instâncias europeias, seja a Frontex ou outras que têm intervenção neste domínio. Mas também por parte dos diversos estados-membros, que deveriam mobilizar recursos para apoiar a Grécia e a Itália neste processo. Apesar de terem decidido agir em conformidade, as notícias que temos é que, em termos de recursos humanos ou financeiros, os países não estão a dar esse apoio essencial para que o programa de recolocação dos refugiados funcione.
Apresentaram uma altura de maior mediatismo para prometer, e depois nada fizeram...
Não quero fazer julgamentos de valor, mas há um facto inquestionável, e contra factos não há argumentos: a decisão de acolher foi em setembro de 2015. Estamos a meio de janeiro de 2016 [data original da entrevista], e no total em toda a Europa foram recolocados pouco mais de 200 refugiados. Isto significa que não há vontade política em que que este programa funcione. O que é que isto significa? Significa que a solidariedade europeia não está a funcionar. Alguns países, como a Grécia e a Itália, mas também a Alemanha e a Suécia, estão com uma sobrecarga enorme que, se fosse repartido por todos os países europeus, era muito mais fácil de gerir. Assim, só para esses países, é um enorme desafio.
Os mitos que se foram criando, e a desinformação à volta desta situação, podem ter contribuído para essa falta de solidariedade?
Podem, com certeza. Desde o primeiro momento que existiam preconceitos e resistências que são conhecidas, muito estruturadas a partir da ideia da diferença, da não integração, da incapacidade de diálogo. Todas essas ideias são não fundamentadas, porque está mais que provado que é possível construir pontes entre diferentes culturas e religiões, e sobretudo que a dimensão humanitária de acolher quem precisa de uma oportunidade para recomeçar a sua vida é uma exigência moral, ética. Aliás, o Papa Francisco tem sido a principal voz no cenário internacional a lembrar isso. Mas creio que com os atentados de Paris e outros eventos e a sua repercussão mediática e o aproveitamento que a extrema direita xenófoba e racista tem feito para promover o medo na opinião pública, tem perturbado este processo e constitui um fator de bloqueio e uma atitude que poderia ser relativamente fácil de gerir. Repare: nós temos 550 milhões de habitantes na Europa, e estamos a falar do acolhimento de 1 milhão de pessoas. Distribuídos por este universo, não teriam nenhum impacto, seria perfeitamente possível acolher bem estes refugiados sem qualquer perturbação. Mas na verdade os egoísmos nacionais têm bloqueado esse princípio fundador da União Europeia que é a solidariedade entre os seus membros, e isso cria um problema muito sério.
Egoísmos e esquecimentos? Há umas décadas atrás as migrações foram de povos europeus...
Há uma falta de memória, como muito bem sublinha. Na Europa, todo o século XX foi marcado por grande movimentos de refugiados, principalmente na consequências das duas grandes guerras. Mesmo alguns daqueles que hoje fecham portas a estes refugiados, como é o caso da Hungria, que teve 300 mil refugiados a seguir à II Grande Guerra que tiveram de procurar refúgio noutros países. Creio que é pena, para não dizer mais, que o governo húngaro, não tanto o povo, evidencie uma falta de memória histórica e não corresponder ao princípio ético universal de fazer aos outros o que, no caso deles, já lhes foi mesmo feito.
Como vai ser a integração dos refugiados que vierem para Portugal, e que já cá estão?
É um processo integral e transitório. Não lhes é dada habitação para a eternidade, mas apenas durante os primeiros anos é que lhes é proporcionada habitação, alimentação, apoio no acesso à saúde e educação, principalmente no aspeto fundamental do acesso ao português e do trabalho para os adultos. O que se deseja é que estas pessoas, que têm permissão para trabalhar, possam rapidamente ser autónomos, prover o seu sustento e viver na sociedade portuguesa como qualquer outra família, e não dependentes de subsídios e de ajudas externas. Os que chegaram estão no processo inicial de integração, onde a questão da língua é fundamental. Há um esforço de todas as instituições para além da PAR, como a Cruz Vermelha, Misericórdias, Conselho Português para os Refugiados de criar condições de segurança e estabilidade para que estas pessoas, depois do que viveram, se possam sentir seguras e protegidas. Progressivamente, iremos começar a preparar a sua integração no mercado de trabalho e na sociedade, de modo a que se possam sentir em casa o tempo que precisarem até poderem regressar ao seu país, quando este reencontrar a paz.
Há oferta de emprego está garantida para a quantidade máxima que Portugal se predispõe a receber?
Não há, nem poderia haver. A questão da oferta de emprego é circunstancial e adequada ao perfil da pessoa que vem, conforme a sua formação e experiência profissional, e também o local do país onde estiver. O modelo de acolhimento desenvolvido pela PAR é um modelo comunitário, disperso por todo o país, com o envolvimento das comunidades locais. Mas há com certeza a disponibilidade de todas as instituições de começar o processo de integração laboral dos refugiados adultos que chegarem até nós, porque o trabalho é essencial, não só como fonte de sustento, mas também de plena integração social, porque a integração no mercado de trabalho é um bom sinal de integração social.
Estão garantidas também todos os procedimentos de segurança para prevenir situações mais complicadas?
Todos estes procedimentos estão a ser garantidos, e é bom percebermos que a UE e os seus estados-membros têm as suas forças de segurança e sistemas de segurança e modelos de controle da entrada de cidadãos no espaço europeu, e tudo está a ser garantido, desde logo iniciando o registo e identificação através da Frontex à chegada à Grécia ou Itália, seja depois articulando com as diferentes forças de segurança dos países para onde se deslocam, no nosso caso o SEF. À chegada a Portugal são de novo revisitados no tema da identificação e história de vida destas pessoas e, como é evidente, não se situa só nesse momento. Mas gostava de sublinhar que não há nenhuma correlação entre o estatuto de refugiado e o terrorismo, como tem vindo a ser trabalhado. Bem pelo contrário. Estes refugiados, que estão agora a chegar à Europa, são pessoas cujas vidas foram completamente destruídas pelos terroristas, seja pelo ISIS ou por outros grupos terroristas, ou pelo comportamento por vezes terrorista do próprio estado sírio. Estes são os que perderam tudo por causa do terrorismo. Confundir vítimas como se fossem os agressores é de uma enorme injustiça que devemos combater.
Os refugiados têm mesmo esse desejo de regressar ao seu país?
Esse é o comportamento tradicional dos refugiados. É preciso distinguir refugiado de migrante. O refugiado é uma pessoa que se vê obrigado a fugir da sua terra por questões de segurança, devido a guerras ou catástrofes naturais. São pessoas que não queriam sair das suas terras, enquanto que um migrante é alguém que deseja, voluntariamente, ir à procura de melhores condições de vida. O que acontece com os refugiados é que, normalmente, têm sempre a ambição de regressarem ao seu país, e por isso ficam sempre muito próximos do seu país de origem, para poderem regressar assim que possível. E foi isso que aconteceu com esta vaga de refugiados da Síria, que se começaram por localizar na Jordânia, Líbano e outros países a volta. O que fez estas pessoas passarem para a europa foi a total falta de condições nestes campos de refugiados. O apoio internacional falhou redondamente. As condições nos campos deterioraram-se muito e não restou outra solução às pessoas que fosse a de tentar vir para a Europa na procura de melhores condições de vida. Mas tenho a convicção de que a expetativa dos refugiados é regressar a casa tão cedo quanto possível.
Em 1992 tive uma experiência semelhante com refugiados da guerra dos Balcãs e assim que houve condições mínimas de vida na Bósnia, a esmagadora maioria dos refugiados regressou ao seu país. Não são obrigados, como é evidente, se desejarem permanecer entre nós são muito bem-vindos pois, bem integrados, são uma mais valia para a sociedade portuguesa. Mas provavelmente o que acontecerá é que quando existir paz, muitos queiram regressar.
Enquanto não existir paz, não vai parar este êxodo?
Não vai parar, isso é óbvio. Enquanto existir guerra, o fluxo de refugiados para a Europa não vai parar. E mesmo com estas iniciativas de bombardeamentos das forças internacionais em novas zonas da Síria, que têm o efeito colateral de gerar mais refugiados, porque as condições de vida deterioram-se mais e eles têm de partir. Nós temos 4 milhões de refugiados sírios fora do seu país, mas existem 7 milhões de sírios deslocados dentro do seu país, que a qualquer momento se podem dirigir para a Europa também. Temos sete milhões de pessoas fora das suas cidades que, a qualquer momento, podem procurar refúgio fora do seu país. A única forma de parar isto é construir a paz, e seria bom que a UE desse um contributo empenhado para a construção da paz na Síria.
Que contributo poderia ser esse?
Mais do que tem feito, seguramente. É bom regressar à memória de que somos corresponsáveis pelas crises no Iraque e na Síria. Basta perceber que os ataques no Iraque e a destruição do régie de Saddam Hussein está na raiz da criação do ISIS, que nasce nos escombros das tropas de Saddam Hussein. E todo o impulso que foi dado às primaveras árabes provocou vários conflitos, entre os quais a guerra civil na Síria. Agora é tempo da UE irem para além da intervenção militar, e tem sido dado um grande foco à intervenção militar, e tem de se empenhar na construção da condições de paz, e isso pelo diálogo, pela negociação entre os vários atores presentes, e as forças regionais, os países vizinhos, têm de ser envolvidos na construção de uma solução pacífica onde também a Turquia tem um papel muito importante.
É possível impor com sucesso uma solução pacífica democrática em países que não estão habituados a viver em democracia?
Essa é uma das perplexidades do nosso tempo, para a qual não tenho a resposta. A ideia sem democracia, sem estar acompanhada de aspetos como o respeito pelos direitos humanos, da garantia pelas liberdades individuais e das minorias, não é uma verdadeira democracia, porque se entendemos como democracia apenas o direito de voto ou a possibilidade de eleger um partido, facilmente temos processos democráticos que geram situações ditatoriais. E foi isso que aconteceu em algumas Primaveras Árabes, em que alguns processos democráticos, através de eleições democráticas, vieram a desaguar em eleição de forças que não respeitam os direitos humanos, as minorias, o direito fundamental das mulheres, entre outros. A democracia em si mesmo, vista de uma forma limitada, não é suficiente. Aliás, é bom recordar que foi através de um processo democrático na Europa que Hitler chegou ao poder, e isso quer dizer que a democracia precisa de ser acompanhada por outras dimensões, para que possa ser verdadeiramente democrática.
Mas não é possível fazer isso com supervisão externa, porque colocaria em causa a soberania do país, e os locais não o conseguem fazer...
Essa é uma das dificuldades do nosso tempo, como interferir sem ferir a soberania de cada estado. Não tenho resposta, mas precisamos de encontrar respostas, emendando erros, melhorando o diálogo entre diferentes países, e trabalhando na defesa da paz, dos direitos humanos, que estão em risco em diversas partes do mundo, e o respeito pela diversidade e pela diferença, que é um valor pelo qual devemos lutar.
Este conflito começou por ser apresentado como um conflito religioso. Mas a realidade dos refugiados hoje, em que a maioria é muçulmana, reduz muito esta questão, embora muita gente continue a confundir as duas coisas...
É verdade que sim, e é bom termos essa consciência de que os muçulmanos são as principais vítimas dos terroristas do ISIS. Isto é importante saber para percebermos como estas lutas não têm fundamento religiosos. Estas lutas são de caracter político, e mesmo os grupos terroristas no terreno servem propósitos de poder, até de alguns atores que sabemos quem são e sabemos que até têm estatuto internacional respeitado e são aliados do Ocidente. Agindo com dupla face, por um lado são aliados, mas por outro financiam grupos terroristas e constituem santuários de defesa deles. Para mim é muito claro que a questão não é religiosa, é política. É um combate entre diferentes forças políticas qe querem governar e que usam o argumento religioso para agregar forças. Mesmo quando se dão os ataques as comunidades cristãos ou yazidis, é na lógica de conquista territorial de uma região.
É bom podermos defender as minorias que estão em risco, mas defender também que na Europa não se defenda uma perseguição às minorias religiosas.
Voltarmos ao olho por olho, “dente por dente”?
Isso não faz muito sentido. Sabemos que essa visão do Antigo Testamento felizmente a perspetiva cristã do Novo Testamento já veio esbater e não é o padrão de referência hoje para os nossos dias.
E isso deveria facilitar a integração das pessoas, que terão uma cultura diferente, e que se terão de ajustar?
Este processo é de ajuste mútuo, e ainda bem que assim é. Quem chega é desafiado a integrar-se, sentir-se bem acolhido pela sociedade de acolhimento, e fazer um esforço para respeitar e cumprir as regras da sociedade que o acolhe, isso é óbvio e em quaisquer circunstâncias é sempre assim, quem chega tem esse esforço e deve fazê-lo. Mas também quem acolhe pode e deve abrir os seus braços e coração aos que acolhe, e fazer a experiência de perceber as semelhanças e diferenças e perceber como é que podemos viver bem juntos, a partir de convicções religiosas e ideológicas diferentes, de gostos estéticos distintos. Aliás, o grande segredo do projeto europeu, e é bom recordarmos isso, é ser capaz de construir a unidade na diversidade. Nós fomos capazes de fazer conviver pacificamente opções ideológicas completamente antagónicas. Temos visões ideológicas, da direita à esquerda, muito diferentes, mas vivemos pacificamente, e há mais de 60 anos que não temos, no espaço europeu, guerras por questões ideológicas, e isso pode acontecer às perspetivas religiosas diferentes. Devemos ter na Europa multicultural, ética e religiosa, o convívio pacífico com um diálogo frutuoso entre diferentes perspetivas religiosas.
O facto de não serem criados guetos para alojar todos os refugiados juntos também vai aduar a facilitar a integração...
Esse foi um traço bastante distinto de outros países europeus, esta opção que Portugal tomou no acolhimento de base comunitária, que procura que existam as melhores condições para que quem chega se integre na sociedade portuguesa, e não se constituam, como bem sublinhou, um gueto. Claro que há uma tendência de todos nós de nos juntarmos com quem tem a mesma língua, cultura, nacionalidade ou religião, e estarmos juntos, e isso em si não tem mal. O que devemos desenvolver em termos de estratégia é fazer com que quem chega se sinta acolhido e tenha condições de se integrar e de se sentir parte da sociedade, e não colocá-lo num gueto, à margem da sociedade, pois esse modelo já vimos que não funciona nem é dignificante.
Nestes que já chegaram, já sentiu essa necessidade de integração?
Das pessoas que chegam, Portugal é um destino que não estava nas suas intenções, que não conhecem. Precisam de se situar, acima de tudo, perceber onde estão e sentirem-se bem acolhidos. As notas até agora são muito positivas, mas é um processo que precisa de ser sempre ajustado.
No final, creio que resultará no cumprimento da parte portuguesa desta ideia de acolhimento de refugiados, pessoas que perderam tudo e têm uma oportunidade de recomeçar a sua vida, e da parte dos refugiados que têm a oportunidade de chegar a um sítio onde serão bem acolhidos.
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