«Para que não haja Homem excluído pelo homem.» É este o lema de O Companheiro – Associação de Fraternidade Cristã, que trabalha com ex-reclusos e as suas famílias. A Instituição Particular de Solidariedade Social foi fundada pelo padre Dâmaso Lambers, capelão das prisões, e um grupo de visitadores, em 13 de fevereiro de 1987. «O objetivo era receber as pessoas quando saíssem da prisão, dando-lhes cama, alimentação, higienização. No fundo, era para evitar que houvesse reincidência criminal. Fomos adaptando e melhorando o que era a proposta de inclusão. Hoje, a nossa clara aposta é trabalhar competências. Mais do que o apoio social, é preciso trabalhar as competências visando a reinserção da pessoa na sociedade», explica José Brites, diretor.
Um protocolo com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais possibilita o trabalho com os reclusos ainda dentro dos estabelecimentos prisionais. Podem ser apoiadas todas as pessoas com mais de 18 anos e que não tenham nenhum comportamento aditivo associado. «Não temos nenhuma tipificação criminal. Não temos esse rótulo nem esse estigma. Quando a pessoa sai, é trabalhada de forma a ganhar autonomia para voltar à sua vida», explica. Como se faz isso? O serviço, com uma equipa de 16 pessoas, apoiou, no ano passado, mais de mil pessoas através de apoio social, psicológico, jurídico e das várias valências de que dispõe.
Quando a pessoa chega, faz-se «o plano individual de inclusão, que tem questões de saúde, higiene, alimentares e, acima de tudo, questões de atividade profissional ou de formação». É uma espécie de projeto de vida em cuja elaboração o próprio ex-recluso participa. O Companheiro tem uma residência para 22 homens. A outra grande mais-valia, considera José Brites, é a capacidade de arranjar trabalho. Como? Através de protocolos com uma dezena de empresas e instituições.
Roberto saiu da prisão há pouco mais de uma semana. Tem um sotaque cerrado e olhar desconfiado. As palavras também saem aos poucos, espremidas e a medo. Nem admite ter estado preso, o que é uma evidência para quem está numa instituição que só apoia ex-reclusos e as suas famílias. «Nos Açores, não tinha trabalho, e aqui O Companheiro ajuda-me, gosto de trabalhar aqui», conta. Tem estado a dormir na residência. Os dias têm sido ocupados a trabalhar na horta e nos computadores do Gabinete de Educação, Formação e Empregabilidade. Mas os seus dias vão mudar, conta contente: «Vou começar a trabalhar em carpintaria na semana que vem. O trabalho apareceu logo. Precisavam de um ajudante e segunda-feira vou começar a trabalhar e aí é que fiquei contente.» Os olhos iluminam-se e esfrega as mãos. Roberto lembra os dias em que trabalhou como jardineiro, carpinteiro e na construção civil. O seu sonho é trabalhar para ter o seu espaço e refazer a vida.
O Companheiro presta apoio alimentar num refeitório que serve cerca de 80 refeições por dia (pequenos-almoços, almoços e jantares; Banco Alimentar a 37 agregados e 132 pessoas; Banco de Roupa que no ano passado apoiou meio milhar de pessoas; acompanhamento do estudo e práticas positivas com 25 crianças, e uma carpintaria). O Companheiro está também em Lagoa, no Algarve, e em Leiria. O objetivo é estender-se ao Norte e alargar os serviços.
No primeiro trimestre de 2019 deverá ser inaugurado o novo edifício de Lisboa, já com todas as condições. Atualmente, O Companheiro funciona em pré-fabricados, com vários blocos, num terreno camarário em Benfica, perto do Centro Comercial Colombo e do Hospital da Luz. O espaço tem árvores, bastante luz e espaço exterior. Nem parece localizar-se numa zona tão movimentada da capital. Nas traseiras, um ginásio permite atividade física sob supervisão e orientação. A Horta d’O Companheiro ostenta uma placa com esse nome numa porta de madeira que dá acesso a um terreno onde crescem couves, feijões, tomates, etc. O espaço permite aos companheiros terem alguma atividade e contactarem com a natureza, pois os seus ciclos também os ajudam psicologicamente. Escrevemos “companheiros” porque é assim que, aqui, são tratadas as pessoas apoiadas. Aqui não são ex-reclusos. Nem o clima pretende assemelhar-se a uma prisão ou prolongar estigmas. «Não tenho guardas prisionais. Isto é um espaço aberto. Muitos chegam aqui e dizem: “Isto não tem muros?”», explica o diretor.
A instituição apoia maioritariamente homens, e a média de idades ronda os 44/45 anos. «São pessoas muito revoltadas. A forma como se vive numa prisão é uma coisa que ninguém consegue imaginar. Imaginemos o que é estar fechado em seis metros quadrados, cinco metros quadrados, três metros quadrados…», diz. São pessoas com «famílias completamente desestruturadas, sem haver nenhum modelo ou prática positiva» no seu passado. Por isso, no ano letivo passado, nasceu a Escola Social «baseada em programas psicoeducativos, cujo objetivo é ajudar a tornar melhor a pessoa.
O Sr. João é um homem falador e sem papas na língua. Não está n’O Companheiro como ex-recluso, mas a fazer trabalho em favor da comunidade por «ofensas às autoridades». «Estou a cumprir 280 horas. É a quarta vez que cá estou. Sempre fui respeitado. Se precisar de alguma coisa, eles estão à disposição. Dizem para ter juízo. Depois, quando volto, “então, outra vez aqui?”», conta. João recorda as palavras da juíza. «Ela disse “Não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez. É a última oportunidade que eu lhe vou dar. Vai tornar a fazer trabalho comunitário. Mas este pesa mais: são 280 horas. Da próxima vez, já não vai lá com trabalho comunitário, vai para a ‘tropa’.”» Isso assustou-o? «Foi um bocadinho pesado, mas ela também me deu a escolher: “Quer cumprir 280 horas ou quer cumprir uma condenação?” Aqui estou a trabalhar, estou em liberdade e vou para casa todos os dias. Espero não vir mais para cá, por amor de Deus. Vestir uma farda e “ir para a tropa”… já não há hipótese à quinta vez.» João parece estar a mentalizar-se disso. Já fez 100 horas e diz estar quase a cumprir outras 100. Já vê o fim deste caminho.