A Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais de Menores na Igreja apresentou hoje o balanço dos primeiros seis meses de trabalho da Comissão, revelando que receberam, no conjunto de todas as vias possíveis, 338 denúncias de casos de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica em Portugal.
A percentagem de casos não validados não chega a 10% do total de denúncias, e a comissão exprime a sua satisfação pelos resultados alcançados. «Não corremos atrás de números, queremos chegar às pessoas», refere Pedro Strecht, coordenador desta comissão, ao revelar que, «depois de uma primeira onda imensa, os depoimentos têm chegado a um número menor».
Dos dados apresentados hoje por Ana Nunes de Almeida, destacam-se o facto de 56,9% serem homens, e de 30% da amostra serem indivíduos até aos 45 anos de idade. «Os abusos foram há muitas décadas, mas estamos longe de estar a lidar com população muito idosa», avisa Ana Nunes de Almeida, que insiste que, ao contrário dos outros países onde foi feita uma extrapolação para o resto da população, em virtude de estarem a trabalhar com uma amostra representativa da população, no caso português a «amostra vai sendo construída apenas pelos respondentes que aceitam dar o seu testemunho», o que permitirá uma análise qualitativa diferente da que se fez, por exemplo, em França.
No entanto, refere a socióloga, é possível perceber, pelos relatos já ouvidos, que existirão mais casos identificados pelas vítimas, mas cuja quantificação vai ser mais difícil de fazer, rejeitando os dados que apareciam hoje em alguma comunicação social de 1500 casos de abuso na Igreja em Portugal, que classificou como «pouco rigorosa».
A especialista explica que «há vítimas que apontam para um número concreto, e isto pode somar-se», mas que nem todas o fazem. «Depois, há pessoas que dizem entre 60 e 70, e temos de decidir o limite. Depois, há quem diga “várias”, “alguns”, “muitos”, ou “a maioria das crianças que se confessava ao padre X”, ou “todos os que estavam naquele colégio interno”... temos de arranjar traduções quantitativas destas expressões qualitativas, é um trabalho complexo, que exige ponderação e critérios, e estamos a estudar quais os melhores critérios», sustentou, confirmando, no entanto, que, como em todos os outros países, os casos denunciados são sempre uma «ponta do icebergue».
Igreja mostra «empenho» e estreita «colaboração», embora núncio tenha sido «obstáculo»
Sobre o acesso aos arquivos diocesanos, Pedro Strecht revelou que uma carta assinada pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, recebida no passado dia 9 de junho, permite agora dizer que «estão finalmente abertas as portas para que, conforme programação e metodologia de trabalho proposta à CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), se possa começar a estudar os arquivos eclesiásticos de 1950 até à atualidade».
Desta carta, conhece-se apenas o conteúdo que foi citado pela CEP no seu documento «12 Perguntas e respostas sobre os arquivos das dioceses – segundo o direito da Igreja», onde o cardeal Secretário de Estado do Vaticano refere que «corresponde, portanto, a cada Ordinário autorizar o Grupo de investigação histórica da Comissão Independente a consultar a documentação conservada nos arquivos eclesiásticos, mesmo secretos, sempre sob a supervisão do Bispo diocesano ou do Superior maior».
O prelado cita ainda as indicações emanadas pelo Vaticano a 6 de dezembro de 2019 que permitiram eliminar «o segredo pontifício das denúncias, dos processos e das decisões relativas aos delitos contra o sexto mandamento cometidos por clérigos ou membros de Institutos de Vida consagrada ou de Sociedades de Vida Apostólica, que continuam, porém, protegidos pelo Segredo de ofício».
A necessidade de pedir este esclarecimento a Roma, mesmo já com estas normas em vigor, partiu do núncio apostólico, D. Ivo Scapolo, que, afirma Pedro Strecht, «se tornou um obstáculo ao que já tinha sido decidido pela CEP», uma vez que, sabe-se agora, havia dioceses que até já tinham definido formas de acesso aos arquivos com a Comissão e que tiveram de interromper esse trabalho à luz destes pedidos, que foram depois esclarecidos pelo Cardeal Pietro Parolin.
As regras preveem a presença do bispo diocesano nesse acesso, mas Pedro Strecht assume que isso «não representa restrição para nós». No mesmo sentido, este responsável revelou também que «as notas metodológicas e a ficha de inquérito preliminar já foram enviadas a todas as dioceses, institutos religiosos ou sociedades de vida consagrada», para que possam iniciar esse processo de dar acesso aos arquivos, num estudo que deverá demorar cerca de dois meses e originar um relatório que estará finalizado em novembro, para poder integrar o relatório final desta Comissão, que deverá ser apresentado em dezembro.
Um dos fatores que tem vindo a ser reforçado pelos inquéritos e denúncias que vão aparecendo é a prática de fé que as vítimas de abuso mantêm, apesar do que lhes sucedeu. Ana Nunes de Almeida revela que «61% dos sobreviventes mostram-se católicos, 39% não». «Na sua maioria, são católicos praticantes, o que é um dado muito importante que implica a Igreja portuguesa», considerou a socióloga.
Pedro Strecht explicou aos jornalistas que as vítimas expressam uma «dupla expetativa». «Um pedido de perdão pelo passado assumido pela Igreja e o inequívoco compromisso por um futuro diferente perante todos os seus fiéis». «Sugerimos uma materialização desta mensagem, para que a mesma não se esgote em palavras que, em breve tempo, poderiam perder o seu sentido», afirmando especificando que esta materialização poderia ser «numa placa, num local, onde fique gravado o pedido de desculpas às vítimas, por exemplo», embora reconheça que ainda há muito tempo par pensar nisso.
Daniel Sampaio, membro da comissão, afirmou também que era «essencial que este assunto fosse falado nas missas» em todo o país, procurando que a mensagem chegue mais ao interior do país, de onde têm chegado menos relatos, e que a Igreja católica «proporcionasse serviços de acompanhamento psicológico, e que a sociedade fizesse o mesmo para o resto dos abusos».
Este foi, aliás, um dos aspetos mais frisados pelo psiquiatra foi a necessidade de a sociedade fazer o mesmo exercício que a Igreja decidiu fazer. «Se foi a Igreja Católica que teve este passo, é preciso que a sociedade também o faça. O abuso sexual é uma questão muito importante das sociedades atuais, e apelo para que os jornalistas continuem a noticiar não os da Igreja, mas todas as situações de que tenham conhecimento e possam investigar», reforça, até porque, diz, «precisamos de ter esta notícia na ordem do dia, não só no que diz respeito à Igreja, mas a toda a sociedade».
Questionado pela Família Cristã sobre uma possível comparação entre as tipologias de abusos referidos aqui e a realidade dos abusos na sociedade portuguesa, Daniel Sampaio refere que não é possível comparar as tipologias, uma vez que «não existem estudos sobre a matéria», lamenta o psiquiatra.
Pela primeira vez nestas conferências de imprensa, foram lidos testemunhos de vítimas de abusos. O Pe. José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, leu um testemunho logo a abrir, e os apresentadores televisivos Carolina Patrocínio e Manuel Luís Goucha leram um testemunho cada no final das intervenções dos membros da Comissão Independente.
No final de tudo, refere Pedro Strecht, o importante é sensibilizar para a denúncia destas situações, sejam as vítimas ou quem tenha conhecimento fundamentado de situações de abuso das quais possa testemunhar. A Comissão continua disponível pelos seguintes contactos:
Site: https//darvozaosilencio.org
Email: geral@darvozaosilencio.org
Telemóvel: 91 711 00 00
Morada:
CE COMISSÃO INDEPENDENTE
APARTADO 012079
EC PICOAS – LISBOA
1061 – 011 LISBOA
Texto e fotos: Ricardo Perna
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