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Joana Gíria: «Sem a conciliação trabalho família não podemos ter o aumento de natalidade que desejamos»
10.01.2019
A conciliação trabalho e família é um dos temas da agenda laboral dos dias de hoje. Os trabalhadores, as empresas, as famílias, precisam de tempo e que este lhes sirva os propósitos e, muitas vezes, as necessidades de uns colidem com as de outros. A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) reconhece a importância do tempo e o papel que a igualdade também desempenha no sucesso da conciliação. Joana Gíria, presidente da comissão, falou à FAMÍLIA CRISTÃ sobre o tema.


Em termos do quadro português, as empresas, os trabalhadores, a legislação, é mais difícil ou mais fácil existir a possibilidade de conciliação?
Eu costumo dizer que a legislação portuguesa é uma legislação de vanguarda, porque praticamente não lhe falta rigorosamente nada. A questão é nós passarmos do direito, do princípio, à realidade de facto, à utilização dos direitos como eles estão previstos na lei. Agora, o que eu julgo é que, os instrumentos existem e, portanto, uma formação, uma sensibilização e uma atenção especial a este direito, efetivamente acabam por permitir que as empresas e outras entidades empregadoras se ajustem, organizem os tempos de trabalho, a dar aquilo que é o direito à pessoa humana de poder viver e trabalhar e não trabalhar a viver.
Portanto, há muito instrumento legal, neste momento. Desde logo todas as entidades empregadoras podem disponibilizar flexibilidade de horário ou trabalho a tempo parcial a trabalhadoras e trabalhadores com crianças com menos de 12 anos, ou independentemente da idade, que tenham uma doença crónica. Isso, digamos, são os princípios gerais. Havendo efetivamente um requisito fundamental que é, vivendo em comunhão de mesa e habitação com a criança e, tendo a criança menos de 12 anos, qualquer mãe, ou qualquer pai, ou equiparado, podem requerer a utilização da flexibilidade de horário. Depois, o que a lei prevê é que haja uma autorização. Havendo uma autorização, a questão deixa de existir. Não havendo autorização, então abre-se um procedimento que é, sempre que a entidade empregadora pretender negar esse direito, tem de fundamentar, em razões imperiosas de funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir aquela pessoa, para não conceder esta flexibilidade. Esses são os casos que nos chegam mais.
 
Dentro das várias medidas que estão previstas na lei e, pelo menos, se eu não estou em erro, que eu tenha visto no vosso site, há três, que efetivamente, quando não há autorização por parte da entidade empregadora pode ser logo feito o pedido do vosso parecer, não é?
A entidade empregadora quando não pretende autorizar, e isso, obviamente há possibilidade de não o fazer desde que fundamente e comprove essas razões, mas, ao não permitir, tem de solicitar obrigatoriamente o parecer à Comissão, ou seja, não basta negar, ou pelo menos, tencionar negar. A partir do momento em que não pretende, ou não pode, porque há empresas que podem efetivamente não poder deixar que os trabalhadores exerçam o horário que solicitam, a entidade é obrigada a solicitar um parecer prévio à Comissão.
 
Mas isso acontece sempre? Estou a imaginar, um trabalhador dirige-se ao chefe e faz o pedido e a resposta é não…
O pedido é formal por parte do trabalhador ou da trabalhadora, porque quer mãe quer pai têm direito. É um pedido formal, por escrito, que tem de ser entregue com pelo menos 30 dias de antecedência em relação ao momento em que pretende iniciar o direito. Depois, a entidade empregadora tem de responder no prazo máximo de 20 dias seguidos, o que significa que, se não responder dentro desse prazo, a lei prevê que, na falta de resposta há uma aceitação do pedido do trabalhador ou da trabalhadora nos termos em que foi formulado. É evidente que se for um pedido ilegal, com certeza não pode haver aceitação. Mas desde que reúna os requisitos, e não havendo resposta da entidade no prazo máximo de 20 dias por escrito, então considera-se aceite; ou desde que não seja solicitado o parecer à Comissão, o que significa que pode haver uma resposta negativa por parte da entidade empregadora à trabalhadora ou ao trabalhador, mas tem de haver a possibilidade de a CITE emitir um parecer. Se a CITE não emitir o parecer, porque não nos chegou esse pedido, então considera-se também aceite. A falta de pedido de parecer à Comissão equivale à aceitação do pedido.
 
Quando há essa não intenção de autorizar, quais são os principais argumentos utilizados pelas empresas? O que leva a que as empresas sintam que não podem ou não conseguem conceder essa autorização?

É nessa matéria que eu julgo que as entidades empregadoras podem melhorar a sua fundamentação se houver lugar efetivamente a uma intenção justificada. Aquilo que nos chega muitas das vezes e isso é consultável no site da Comissão é, por exemplo, a impossibilidade de conceder o direito àquela trabalhadora ou àquele trabalhador porque já há muito mais pessoas a exercer o direito. Como calcula, o direito que umas pessoas exercem não pode limitar o direito de outras, ou seja, nós não podemos ter pessoas que acompanham as crianças e pelo facto de haver duas, três, quatro ou cinco, as que pedem depois, ou têm necessidade a seguir, não terem essa possibilidade tal como tiveram as anteriores. Esse argumento não é válido. Esse é um dos argumentos que efetivamente quando cá chega acaba por falhar. E qual é a resposta que a CITE dá? Não podendo ser limitados uns direitos em função de outros, aquilo que se preconiza é, pelo menos o mais tempo possível disponibilizar a cada trabalhador ou trabalhadora. Portanto, imagine, no limite, toda a gente pede. Se toda a gente pede, reparte-se o tempo.
 
E há algum mecanismo de apoio às empresas?
Têm de ter. Essa é a nossa missão para além da componente de sensibilizar, é a componente formativa. Desde 2013, a CITE promove o fórum IGEN, Fórum Organizações para a Igualdade, que no fundo coordena um grupo de organizações que, preocupadas com a gestão em termos de instrumentos de igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, acabou por se juntar à CITE. Esse fórum e essas 108 entidades que fazem parte têm boas práticas nesta matéria. E estamos a falar de uma microempresa, várias médias e muitas empresas grandes e multinacionais inclusive. A partilha de conhecimento, de experiência, também é uma mais-valia e o convite que nós fazemos a pessoas da Academia, a pessoas ligadas ao Direito, à Sociologia, à Psicologia, e inclusivamente, a quem está dentro do Fórum e também faz formação para passar a mensagem e para trocar experiências sobre a forma como se organiza, é fundamental. É efetivamente possível acontecer a conciliação. Nós, aqui a montante, devemos perceber que, sem a conciliação trabalho família também não podemos ter o aumento de natalidade que desejamos. Eu costumo dizer que isto é uma “pescadinha de rabo na boca”, porque efetivamente as questões estão todas interligadas. Se nós temos segregação horizontal e vertical no acesso ao mercado de trabalho; se nós temos uma divisão de tempo pago e não pago que não é equivalente entre homens e mulheres e depois queremos ter aumento de natalidade e ainda sem conciliar, bem, certamente isso não vai acontecer.
 
A questão da distribuição da própria vida famíliar e dos diferentes tempos que são dados entre homens e mulheres, se isso também é um obstáculo à própria questão da conciliação do trabalho e da família?
Fundamentalmente, a distribuição que não é equivalente dos tempos de trabalho de homens e mulheres é um obstáculo à própria igualdade de oportunidades, porque se, nós podemos dizer, as mulheres são duplamente penalizadas porque acabam por exercer uma dupla jornada de trabalho, porque é o trabalho pago, que efetivamente é necessário, porque um ordenado numa coisa, muitas vezes não chega, ou na maioria das vezes não chega, não é suficiente para fazer face às despesas; depois há outro cariz que é o trabalho não pago, que é o trabalho de cuidado às crianças, o trabalho de cuidado a pessoas dependentes, o trabalho de cuidado a pessoas idosas, as tarefas domésticas, ou seja, se houver uma divisão mais equilibrada deste tempo, também o homem tem possibilidade de, em vez de ter uma disponibilidade quase total para o trabalho pago, poder beneficiar um pouco daquela que é a sua vida familiar. Portanto, há aqui um win-win (ganha-ganha), há aqui um interesse na conciliação que é, por um lado, trazer os homens à esfera familiar e até à sua vida pessoal, como é evidente, e as mulheres ao mercado de trabalho, mas sendo capazes de não se sentirem culpabilizadas quando utilizam o tempo para efetivamente trabalhar ou para efetivamente fazerem qualquer outra coisa que lhes dê algum gosto, que não seja sentirem-se presas aquela necessidade absoluta que é ir buscar a criança, ir por a criança, passar pelo supermercado, pela farmácia, parar para tratar da mãe, do pai, da sogra ou de quem estiver com algum problema, ou seja, apoiar em tudo… Nós vemos, nas gerações mais novas, uma certa diferença, agora, o ritmo a que isto acontece, depende também de uma mudança cultural, que se vai fazendo, mas que pode ser acelerada se houver uma sensibilização diferente para este facto.

 
Mas essa diferença também estagnou agora na última geração…
É cíclico. Isto não é uma questão de mulheres. É um direito, as medidas são exatamente as mesmas para pai e para mãe, com uma nuance no que se refere às licenças parentais; uma licença parental exclusiva da mãe é mais ampla que a do pai, mas isso tem que ver com as diferenças biológicas, que existem e são especialmente protegidas, porque são biológicas e é assim que deve ser, o que não significa que a licença partilhada ainda não seja utilizada com o mesmo tempo de duração, porque nós sabemos que efetivamente, embora haja uma grande adesão dos homens à licença partilhada, conseguimos também compreender, às vezes expressamente, outras subliminarmente que, efetivamente, continuam a ser as mulheres a usar mais o tempo de licença do que os homens. E lá está, a questão cultural, até quando há idas ao médico, eu vejo casos em que colegas perguntam: “A tua mulher não vai com a criança? Para que é preciso irem duas pessoas?” Julgo que nós podemos continuar a fazer mais e melhor, mas toda a sociedade tem de estar comprometida; quer o Estado, quer as organizações, quer as pessoas individuais. Porque se olharmos para isto como um problema que é de solução criada por toda a gente, é uma coisa completamente diferente de olharmos para um setor que é uma comissão, que está instituída e funciona como organismo tripartido e que tem de tratar de tudo o que é questão ligada a esta matéria. Temos de ter aqui uma task force da sociedade na sua globalidade para tratar das questões dos usos do tempo e da conciliação que é absolutamente necessária à qualidade de vida.
 
Referiu que a legislação é de vanguarda, portanto o foco do problema da conciliação não está na legislação.
Não, a legislação tem de acompanhar a evolução, e Portugal tem sido um Estado que tem acompanhado efetivamente as políticas, mesmo a nível internacional, todos os documentos internacionais ratificados por Portugal. Quando digo que é uma legislação de vanguarda é porque, mesmo a nível europeu, temos uma legislação que comparativamente a outros países é muito mais abrangente. Agora, é preciso que a realidade espelhe aquilo que a lei prescreve.
 
De entre os pedidos que vos chegam, quem solicita mais as medidas de conciliação?
Ainda são as mulheres embora tenha havido uma taxa de crescimento das pessoas do sexo masculino a solicitar. Não tem nada que ver com a realidade há 7 ou 8 anos, muito mais homens.
 
O inquérito do Eurobarómetro sobre conciliação indica, contudo, que os homens portugueses sentem que é mais fácil para as mulheres usufruírem das medidas de conciliação.
Está em linha com aquilo que eu lhe estava a falar. Imaginemos uma entidade empregadora que tem um homem e uma mulher em igualdade de circunstâncias e tem de contratar; maioritariamente contrata o homem, porque aquilo que espera do homem é uma disponibilidade de tempo maior do que espera de uma mulher.
Julgo também que ainda é mais difícil porque há homens e mulheres que eles próprios entendem assim. A nossa sociedade continua a entender que as mulheres têm uma apetência natural para o cuidado e isso contamina o resto. Nós mulheres também muitas vezes não facilitamos: “o pai pode ir ao médico, mas se eu estiver faço umas perguntas que ele não faz.”
 
Há pouco referiu que o número de homens a pedir pareceres subiu consideravelmente. Estamos já a assistir a uma mudança? O estudo de 2016 sobre os “usos do tempo” estará desatualizado a breve trecho?
Espero que esteja para podermos fazer um estudo e verificar que efetivamente esta nova geração contraria aquilo que ainda continua a ser uma sociedade estereotipada. Seria excelente essa notícia. Pessoalmente verifico nas gerações mais novas, até pelos pedido que nos chegam, de pessoas mais novas, entre os 25 e os 35 anos, há mais homens a preocuparem-se com a matéria, mais homens a gozarem de licenças e mais homens com intenção de usar tempos de trabalho que lhes permitam conciliar [a vida familiar com a profissional].
 
A carga de trabalho e os salários são obstáculos à conciliação?
Toda a questão da igualdade tem de ser vista no conjunto. E quando falamos nesta história das crianças estarem mais do que devem nas creches e eu concordo, efetivamente acho que as creches não podem ser depósitos de crianças, tal como os lares de idosos não podem ser depósitos de pessoas, temos de pensar no problema na sua globalidade. Talvez serviços de proximidade ajudem, talvez protocolos com serviços de proximidade ajudem. É obvio que nem todas as organizações têm meios financeiros para dispor de uma creche, mas pode haver protocolos de proximidade. Tudo isto deve ser pensado.

 
Mas em termos gerais, por exemplo, falando da medida de trabalho a tempo parcial…
O trabalho a tempo parcial é uma medida de conciliação, o que acontece é que acaba por perverter a situação, porque quem vai trabalhar a tempo parcial é quem ganha menos.
 
Essa medida existe, mas à realidade portuguesa…
Para a nossa realidade isso serve a poucas pessoas, para as que serve, excelente. A lei é geral e abstrata e toda ela é construída para uma sociedade e ainda bem que existe, porque se serve a algumas pessoas, ok. Mas a maioria das pessoas em Portugal não pode trabalhar a tempo parcial, aliás, o número de pedidos que nós temos em relação a trabalho a tempo parcial é muito residual face aos relativos a horário flexível.
 
Embora tenhamos uma legislação de vanguarda, há alguma medida que facilitasse a conciliação?
Nós para legislarmos temos de pensar bem sobre os problemas; temos de constatar, depois estudar a medida e depois legislar. Não vale a pena legislar sem pensar. O Estado português tem-se preocupado com esse percurso. Eu tenho uma preocupação muito pessoal a nível de conciliação trabalho família, tenho uma preocupação muito especial relativamente às pessoas mais idosas, porque como sabe o estatuto do cuidador foi publicado há pouco tempo e estamos a falar de cinco dias. Não tenho soluções mágicas, mas cinco dias por ano…é claro que é melhor que zero, mas eu pergunto-me se ir a uma consulta com uma pessoa idosa, dependente, que anda mal, que muitas vezes já nem sequer tem um raciocínio claro, que já não se faz compreender como gostaria, qual é a diferença em termos de dependência, de uma pessoa com essa idade, ou de uma criança de dois anos? Julgo que isso tem de ser pensado, até porque temos a esperança de vida a aumentar e isso é excelente, mas temos de ter condições para dar às pessoas, com a qualidade que vida que elas merecem, porque essas pessoas também já trabalharam, também já fizeram os seus descontos, já trataram de outras, e quando estão no final da linha não podem ser depositadas. Acho que a conciliação, neste momento, tem de apanhar uma esfera muito alargada de situações.
 
Entrevista conduzida por Rita Bruno
Fotografias: Ricardo Perna e Shutterstock
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