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Síria: «Se quisermos verdadeira paz precisamos de justiça, paz e educação»
31.07.2018
Fouad Nakhaleh, sacerdote jesuíta, é o diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) na Síria. Esteve em Portugal para dar testemunho do seu trabalho na Síria. Enquanto sírio, acredita que o seu povo será capaz de reconstruir o país, se conseguirem recuperar o sentimento de esperança e confiança numa população marcada por anos de conflito. É neste sentido que a JRS está a trabalhar com projetos em três cidades sírias. Há esperança no seu discurso, mesmo que marcado por um profundo sofrimento de quem por vezes já não sabe o que é normalidade.

 
Como compara a vida antes e depois da crise?
Na Síria podemos dizer que a vida vai correndo naturalmente, não sabemos bem o que é a normalidade. Há grandes oscilações na vida social e económica ao longo da história da Síria. Foram acontecendo grandes transformações.
Mas, por exemplo, entre 2000 e 2002 podemos dizer que houve uma grande evolução em termos económicos, com mais ofertas de trabalho, o país tornou-se mais aberto. Algum tempo depois, por volta de 2012 começou a crise e há uma grande mudança que afeta toda a gente. Muitas fábricas em Alepo, Homs e mesmo no sul foram destruídas, ou mudadas para outros sítios, transferidas. Em 2012 começaram a surgir problemas económicos dos quias ainda não recuperámos. E isso afetou muitas pessoas deixou de haver emprego. A crise foi muito dura. É muito diferente, não é possível comparar a vida antes e depois da crise.
 
E neste contexto atual de crise qual é o vosso trabalho no JRS? E como é que o facto de ser Sírio afeta o seu trabalho no JRS?
Comecei a trabalhar para o JRS em 2012, num projeto de 2 anos, depois fui estudar Teologia para o Canadá e voltei em Dezembro de 2015 e desde julho de 2016 que sou diretor do JRS – Siria. E este trabalho não é fácil, temos muitos projetos diferentes do na Síria. Mas o mais determinante é saber que os próprios colaboradores e trabalhadores do JRS foram eles próprios afetados pela guerra, pela situação que se viveu no país. Eu próprio fui afetado, a minha família não esteve sempre segura. Estamos em constante contacto com pessoas em sofrimento.
Agora estou num trabalho de retaguarda, mas em 2012 também vivi a experiência de estar envolvido num projeto de terreno em que distribuíamos milhares de s cabazes de comida pelas famílias E tínhamos que contactar com as famílias, acolhê-las, animá-las. É um contacto muito exigente tanto na altura, como hoje e isso afeta muito a equipa. Não é fácil integrar tudo o que se vai sentido neste contacto com pessoas em grande vulnerabilidade e sofrimento.
 
A ideia que temos aqui no Ocidente é que antes haveria uma grande vida cultural na Síria, e que depois ficou uma grande destruição. Pode descrever o seu dia-a-dia, antes e depois da guerra?
Antes da crise Damasco, Alepo e Homs eram cidades que viviam de noite, com muita animação, a vida noturna começava depois da meia-noite. Agora, é difícil encontrar pessoas na rua depois das 20h00. Quando voltei a Damasco, depois de ter estado no Canadá, era uma sexta-feira e estava pouca gente na rua e o primeiro grande choque foi, quando numa das ruas principais de Damasco, a vejo completamente vazia. Ninguém! Apenas algumas crianças a jogar futebol numa enorme avenida.
 
Como era antes?
Era uma avenida em que anteriormente quase não se conseguia circular, com um trânsito muito intenso.
 
E agora, já voltou ao normal?
Não exatamente. Há muitos postos de controlo. Para passar de uns lugares para os outros há que passar por muitos desses postos de controlo. O Pe. Gonçalo [ver a entrevista aqui] conhece bem essa experiência, para ir de nossa casa até ao lugar em funciona o projeto em que está a trabalhar tem que passar por quatro ou cinco postos de controlo para uma distância que leva 15 minutos a pé. Os transportes não são fáceis, não há muitos. Agora a situação começa a melhorar, havendo menos postos de controlo e pode-se circular melhor.

 
Havia uma vida cultural anteriormente, concertos…
Havia uma vida cultural antes que agora é difícil, mas o que mudou mesmo foi o modo como as pessoas se relacionam umas com as outras. Há 18 minorias religiosas e antes da crise vivia-se pacificamente, com grande espírito de vizinhança e proximidade. A crise quebrou não só laços de confiança entre as minorias, mas dentro das próprias minorias tornou as pessoas mais desconfiadas uma das outras, há mais desconfiança entre os próprios cristãos, os sunitas..
 
O que levou a essa quebra de confiança?
Há muitas coisas acontecer, estamos cercados por muita violência e não é fácil confiar no outro.
 
A necessidade de sobrevivência sobrepõe-se à confiança?
Num certo sentido sim…. Como posso dizê-lo, de algum modo era como se vivêssemos uma ilusão, de que estávamos a viver juntos numa harmonia perfeita e com a crise as pessoas descobriram que essa harmonia era uma ilusão. O que não é exatamente verdade, mas foi assim que as pessoas o experimentaram. E esse fez com que cada minoria se fechasse mais em si própria e criasse mecanismos de defesa e atacando os outros.
 
E será possível recriar a “ilusão” dessa harmonia?
Na sua génese a sociedade síria é uma sociedade de mistura e de relações, de interconexões. Quando há uma festa em tua casa, tens que convidar os teus vizinhos. Não é algo que possas ou não fazer, é obrigatório. Quando há uma festa muçulmana os cristãos visitam-nos e quando há uma festa cristã os muçulmanos vêm saudar-nos.
 
Mas participam nas celebrações um dos outros?
Não participamos nas celebrações, mas passamos por lá para desejar uma boa celebração.
 
Mas isso já está a ser recuperado de alguma forma?  
Essa é uma das grandes preocupações do JRS. Na nossa própria equipa há mistura de proveniências religiosas. Servimos as pessoas sem nos preocuparmos quem são, sem lhes fazermos perguntas sobre a sua identidade, ou qual é a sua fé. Desde 2012 que faz parte do nosso projeto proporcionar encontros à volta da mesa com pessoas de diferentes credos e proveniências. (a refeição é o centro da sociedade). Organizamos encontros com famílias muito diferentes famílias, sete ou oito famílias, e elas tem que preparar uma refeição e comerem juntos. E dessa forma podemos restabelecer laços entre as pessoas.
 
E sentem que os laços já estão a ser recriados?
Sinceramente não sei. Não podemos obrigar as pessoas a refazer laços, queremos apenas mostrar que é possível. Porque essas são as raízes mais profundas da sociedade síria e elas têm que vir de novo ao de cima. O que acontecerá no futuro, se estas famílias se manterão ligadas… não está nas nossas mãos. Se começarmos por estes pequenos espaços, e este der frutos então é possível alarga-lo. As pessoas estão pelo menos a começar a questionar-se sobre essa necessidade.
 
Que projetos têm no terreno?
Estamos em fase de mudanças. Agora já não é tão importante manter os projetos mais assistencialistas, há muitas organizações a fazê-lo. Num momento em que as coisas começam a parecer mais pacíficas temos que olhar para o futuro. A única forma de ajudar as pessoas e dar-lhes ferramentas que as façam olhar para o futuro, acreditar nele. Por isso nos concentramos na educação das crianças e em ajudar homens e mulheres a pensar nas suas vidas. E ajudá-los a lidar com a vida do dia-a-dia. Temos um significativo projeto de literacia para as mulheres, um grande projeto de educação e apoio psicossocial em Damasco, um projeto em Cafrum (uma vez que fechamos o nosso projeto em Homs) e em Alepo temos o nosso centro Comunitário e a Clínica. A nossa linha neste momento é movermo-nos para centros comunitários que ajudem a refazer os laços.
 
«Habituamo-nos às bombas, e deixa de nos chocar»
 
Dizia que as coisas estão um pouco mais pacíficas, como descreveria a situação na Síria hoje em dia?
Até abril a situação era verdadeiramente difícil com constantes bombardeamentos, em todo o lado, todos os dias. Com muita pouca segurança de ambos os lados do conflito, não nos podíamos movimentar e tivemos que encerrar os nossos projetos muitas vezes. Em Alepo desde 2016 que a situação se tornara muito difícil, sem eletricidade, as vezes sem água. Alepo chegou a estar sem água durante 19 dias. Neste momento podemos dizer que a situação em Alepo é segura. Não há bombardeamentos, nem combates dentro da cidade. Em Damasco a situação também é segura. A estrada principal entre Damasco e Homs foi recentemente reaberta. As pessoas podem mover-se de um modo mais seguro.
 
E as pessoas começam a sair mais à rua?
Sim, as pessoas começam a sair mais. E a vida social vai-se restabelecendo.
 
Não há turistas porque eles não vão ou porque não sabem que já podem ir?
Em 2012 todas as embaixadas foram encerradas, a ONU foi embora. E isso para mim foi um enorme erro porque torna muito mais difícil o regresso de turistas.
Mas voltando atrás, no que respeita às mudanças ocorridas com a crise, a verdade é que a certa altura já não se sabe o que é a normalidade. Habituamo-nos às bombas, e deixa de nos chocar. Perguntamos apenas se alguém que conhecíamos teria sido afetado. Mesmo comigo, uma vez em 2014 houve uma bomba avisaram-me a área em que zona era a bomba e eu limitei-me a alterar o meu percurso. Agora quando desparece um posto de controlo quase estranhamos (risos).
 
Até agora fomos descrevendo a situação, mas como um homem religioso, um padre, como se processa tudo isto interiormente? Como é que esta situação desafia a sua vida espiritual?
Desafia. Desafia muito. O primeiro que perguntamos é “onde está Deus”? E é uma pergunta que surge de todos os lados, de todas s religiões. Se Deus está presente, como é que Ele permite tudo isto? E de algum modo é preciso dar alguma resposta, e o que temos feito desde o começo é tentar explicar que Deus está, se procurarmos ajudar, se pudermos fazer alguma coisa. Deus não pode controlar tudo, mas dá-nos força para fazer alguma coisa. Outra questão é que se cai uma bomba, alguém morre e eu sobrevivo o normal é que as pessoas pensem “Deus salvou-me”. E é preciso desafiar esse pensamento. O que queres dizer com isso? Significa isso que Deus gosta mais de ti do que a pessoa que morreu? Estas são questões muito profundas para as pessoas.
Por outro lado, quando estamos em guerra é permitido “matar os inimigos” se eles morrem é porque mereciam. E também temos que desafiar esse pensamento como cristãos, como é que como ser humano podes dizer que a vida daquele inimigo não tinha valor? Só a tua vida é que tem valor? E nada disto dão questões simples, que tocam apenas o modo como podemos viver, são muito profundas.


 
Síria: «O nosso maior desejo é trazer esperança a estas pessoas»
 
E como é que responde a essas questões?
Recordando que toda a vida tem valor e sentido aos olhos de Deus, Deus não distingue pessoas. Mas na verdade, não há uma resposta. É pelo nosso serviço que podemos responder, Porque por vezes membros da equipa estavam a servir pessoas que vinham da “zona do inimigo” e quando se encontram com esse sofrimento, elas encontram a resposta. E quando promovemos os encontros entre diferentes famílias de que falávamos há pouco, famílias que estiveram em campos opostos, podem perceber que os outros sofreram mais do que eu e deixam de olhar para eles como inimigos, mas antes como humanos iguais a eles.
A grande questão é como podemos manter esperança no futuro (no sentido mais religioso do termo). E o nosso maior desejo é trazer esperança a estas pessoas. E É por isso que em Homs, onde um jesuíta ao serviço do JRS morreu, ele escolheu ficar lá até ao fim. Não para fazer nada, mas para manter aquele lugar aberto à esperança. Em Alepo mantivemos a nossa presença, mesmo sabendo que era difícil e perigoso, porque não podemos abandonar um sítio de um momento para o outro muito comodamente, porque o queremos trazer a esse lugar é esperança.
O que estamos a fazer agora tem algum significado num sentido muito lógico ou concreto? Não. Mas espiritualmente sim. Estamos lá para indicar que há futuro e que acreditamos que amanhã será melhor. E as pessoas persentem isso.
 
Há a convicção de que muitos dos refugiados que abandonaram o país, foram os mais educados e preparados. Se eles não voltam, como vai ser possível a reconstrução do país no futuro, a mais longo prazo, quando muitos dos mais preparados académica e tecnicamente já lá não estão?
Não vai ser fácil. Agora é difícil encontrar pessoas que possam trabalhar ou pensar. Mas as pessoas que permaneceram no país acreditam nos pais, e farão o seu melhor. E eu também acredito nisso. E aqueles que abandonaram o país, nem todos eram ricos, muitos saíram porque corriam riscos, e não tinham nada, nenhuma segurança. Tiveram que vender as suas casas apenas para fugir. E essas pessoas, se puderem, voltarão. Algumas (não muitas) já voltaram e outras, se puderem, voltarão. Não podemos ter a expectativa de que o país seja reconstruído de um modo fácil e rápido. Muitas coisas (os contratos já estão feitos) não serão reconstruídas por mãos sírias. Mas os sírios tem um papel a desenvolver. Não se trata apenas de uma reconstrução material, mas da reconstrução da sociedade como um todo. E as pessoas que ficaram na Síria, que sofreram muito, serão capazes de ultrapassar esta situação. E o que nós estamos a fazer agora é focarmo-nos no futuro, alentar as pessoas a tentarem fazer alguma coisa pelo futuro. Não podemos ter a certeza de que seremos capazes de evitar outra crise, mas temos de apontar para o futuro. O que estamos a fazer com as crianças é tentar cultivar boas memórias nas suas vidas, elas que viveram sempre em guerra. E no futuro talvez, e digo mesmo talvez, elas recordarão essas boas memórias. É isso que procuramos fazer.
 
Como sírio, como lhe parece que este conflito pode ser resolvido, pode ter um fim natural?
Nada se resolverá sem justiça, verdade (é preciso saber o que se passou) e educação. Sem isto não seremos capazes de ultrapassar as dificuldades. A Síria tem um logo historial de crises, que não são de agora, começaram, há centenas de anos, milhares de anos, antes de Cristo (risos). Foi sempre um país que viveu de uma mistura de religiões e minorias, cada um com as suas revindicações. Mas se quisermos verdadeira paz precisamos de justiça, paz e educação.   

Nota: Esta entrevista foi conduzida em simultâneo para a Família Cristã e para o portal Ponto SJ, mas a edição é autónoma.

Entrevista: Ricardo Perna e P. José Maria Brito, sj
Fotos: Ricardo Perna e Shutterstock
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