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«Temos de fazer uma opção clara sobre investir na saúde das pessoas»
11.06.2020
Ana Rita Carvalho é bastonária da Ordem dos Enfermeiros, a classe de profissionais de saúde mais afetada pela pandemia de COVID-19 que surge precisamente durante o Ano Internacional do Enfermeiro, uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde. À FAMÍLIA CRISTÃ, falou de uma profissão cada vez mais técnica que não recebe a devida valorização salarial ou sequer institucional que mereceria.


A OMS definiu este como o Ano Internacional do Enfermeiro... e que ano!
Sim, é verdade. Eu acho que a OMS tem alertado para aquilo que é a escassez dos recursos de enfermeiros no mundo inteiro, mas acho que há países que estão piores que outros. Devido ao que é a evolução da nossa profissão em termos sociais, técnicos, científicos, nalguns países, noutros não, há países que dão valor aos enfermeiros como dão a outros profissionais de saúde, mas em muitos países ainda não.
Tem a ver com a forma como os países olham para a classe dos enfermeiros, que não acompanhou a nossa evolução técnica e científica. Em Portugal isso nota-se muito, porque as mudanças sociais ocorrem em duas gerações, ainda não passaram duas gerações para nós. Os enfermeiros passaram a ser ensino superior em 1989 e a partir daí foi a profissão que, em 30 anos, mais evoluiu do ponto de vista técnico, académico e científico. A sociedade não acompanhou essa evolução, a não ser as pessoas que, efetivamente, precisaram dos nossos cuidados. Mas a população não está toda permanentemente dentro dos hospitais e centros de saúde, a não ser agora, nesta situação de pandemia, em que as pessoas perceberam porque é que um enfermeiro tem de ter um subsídio de risco. Há muita gente que não compreendia o porquê, mas que hoje compreende.

Acha que a posição do enfermeiro sai reforçada depois desta experiência do COVID-19?
Acho. A questão é saber se isso vai perdurar na memória das pessoas, porque repare: hoje continuamos a ter as mesmas condições que tínhamos antes da pandemia. Somos as mesmas pessoas, com os mesmos riscos, a ganhar a mesma coisa... a ter de pagar a especialização do seu bolso, não temos nenhum internato, toda a especialização é paga pelo enfermeiro, e feita no seu tempo livre, e continuamos a ser os mesmo que, quando quisemos lutar por um SNS melhor, com mais enfermeiros, com um rácio melhor de enfermeiros por 1000 habitantes, as chamadas dotações seguras, fomos apelidados de selvagens e criminosos, mas hoje batem-nos palmas à janela... somos as mesmas pessoas, e é isso que eu não sei, se essa valorização de hoje vai perdurar na memória das pessoas quando os enfermeiros continuarem a dizer “eu não quero, com 1 ano, 20 ou 30 de profissão receber 900 euro líquidos por mês; eu não quero não ser profissão de risco, eu não quero ter de pagar a especialidade do meu bolso porque a minha especialidade baixa a taxa de mortalidade, baixa o número de dias em internamento, baixa a taxa de infeções e baixa a taxa de reinternamento. Eu quero que a minha especialidade seja feita como o internato médico, e não sei se quando nós tivermos de voltar a dizer, porque forçosamente vai acontecer, se na memória das pessoas vai perdurar todo o afeto, todo o reconhecimento, todo o carinho que nos dispensam agora.

Esta evolução, que foi muito rápida, também dificultou que haja hoje esse crédito...
Eu acho que essa evolução está a acontecer, desde que os enfermeiros passaram um grau académico diferente. Até há uns anos atrás, sobretudo no antigo regime, os enfermeiros eram só mulheres e não casavam. Há aqui uma evolução social evidente, mas essa evolução social não foi tão rápida como foi a evolução da própria profissão em termos académicos, técnicos e científicos. É uma evolução a duas velocidades.

É pedido muito mais aos enfermeiros hoje que há 20 anos?
Ah não tenha dúvidas que sim, nem tem comparação.

A formação de enfermagem que temos no país é de boa qualidade?
É. Portugal é quase sempre pioneiro em tudo, menos na aplicação prática das coisas. O que acontece é que temos, ao nível mundial, vários tipos de formação. Em Portugal, temos não só a formação mais completa, mas também a mais longa. Há países onde a formação dos enfermeiros, desde o ciclo básico até ao superior, não é tão longa. E não só é longa, como é de qualidade. Um enfermeiro de cuidados gerais, que é o que somos quando acabamos o curso, está apto a ir fazer uma integração em qualquer serviço de cuidados de saúde primários, hospitalares, cuidados continuados ou lares. Só não está apto a praticar as competências que são específicas dos especialistas. Agora é um facto que temos 20 mil enfermeiros portugueses emigrados em vários países do mundo. Isso acontece porque os enfermeiros portugueses começaram a ver que tinham tudo o que não têm cá: eram bem pagos, têm formação especializada paga, são bem tratados.... porque isto também conta muito, a forma como o sistema trata os seus profissionais de saúde, e esta mentalidade social sobre a qual temos estado a conversar também se vê nas organizações e na gestão dessas organizações. Os enfermeiros são muito castigados por Conselhos de Administração, que acham que podem tratá-los pior do que a outros profissionais de saúde. Há coisas que Conselhos de Administração fazem a enfermeiros que não fariam a nenhum médico, eu não tenho dúvidas disso.

Mas é possível ao Estado comportar esta melhoria salarial aos enfermeiros?
Todos os países têm de ter prioridades, e nós temos de fazer uma opção clara sobre se devemos investir na saúde das pessoas, pensarmos, para cada um de nós, quanto é que vale uma vida, porque não é só a questão dos enfermeiros. Por isso, enquanto país, temos de pensar rapidamente quais são as nossas prioridades relativamente a estas questões da saúde. E depois de pensar nisso, porque também tem de haver dinheiro para isso, temos de pensar no que é que queremos dar aos nossos enfermeiros e aos nossos profissionais de saúde. Se fizermos uma gestão racional daquilo que temos, entre aquilo que vai para os bancos, a corrupção, etc., secalhar temos dinheiro para tudo. Portugal foi dos países que menos investiu nos últimos 20 anos, do seu PIB, para os orçamentos da saúde. Houve um orçamento diferente, que foi este último, mas por um motivo muito simples: tínhamos uma dívida muito alta a fornecedores e ela tinha de ser paga, ou corríamos o risco de deixarmos de ser fornecidos naquilo que eram bens essenciais para o funcionamento do SNS. Mas é um facto que as coisas podem e devem ter um equilíbrio, e esse equilíbrio não é pagar 900€ líquidos a um enfermeiro, quer ele tenha um ano de profissão ou 20 anos de profissão. Estes 900€ líquidos correspondem a 1200€ ilíquidos, e o que estávamos a pedir, em início de carreira, eram 1600€ ilíquidos, uma diferença de 400€, sendo que nisto tinha de estar englobado o sermos uma profissão de risco. Não é só o trabalho do dia a dia, porque as pessoas, se olharem para tudo o que são profissões essenciais em setores estratégicos do país, vão rapidamente, se fizerem uma comparação série de tabelas salariais, ver que os enfermeiros são os que ficaram cá mais mal pagos, face a forças de segurança, outros profissionais de saúde, porque não temos sequer as chamadas progressões que foram anunciadas pelo Governo, porque os enfermeiros, na contagem dos pontos, a maioria das instituições não a fez ou, quem a fez, fez mal. Portanto, continuaram no mesmo sítio, e não tiveram escalões descongelados.


Acredita que no final deste período de pandemia, a profissão do enfermeiro sairá valorizada pelos governantes?

Pelos governantes, não acredito, porque essa valorização tem de se traduzir em mais que pancadinhas nas costas. Acredito que pelas pessoas sim, e muitas delas perceberam hoje que efetivamente não podemos continuar a dar estas mesmas condições aos enfermeiros, e houve muita gente que mudou de opinião. Relativamente aos governantes, não acho, até porque ouvimos a entrevista da Sra. Ministra da Saúde, que fez uma coisa que vem nos livros, e cabe-nos a nós, individualmente, pensar um bocadinho e analisar essa estratégia. Disse que havia muitos portugueses a perder rendimento e que não podíamos ter um país a duas velocidades, isto em resposta à pergunta do jornalista se ia haver uma valorização salarial, ou outra, para os profissionais de saúde. E a resposta foi esta. Mais uma vez, isto que a Sra. ministra fez, e não é a única, já muitos o fizeram ao longo de vários governos, é pôr o povo contra o povo. Se nós, de uma vez por todas, não aceitarmos que temos profissões diferentes, não é com importância diferente, mas com certeza que todos nós compreendemos que cuidar da vida de uma pessoa, salvar a vida de uma pessoa, não é a mesma coisa que trabalhar noutro serviço qualquer. Nós não somos, desse ponto de vista, todos iguais. Somos iguais noutras coisas, mas o que fazemos é diferente, e tem de ser valorizado de forma diferente. Porque senão corremos o risco, e já pensei muito nisto, nós vamos subindo, e bem, o ordenado mínimo, e é uma vergonha pagarmos a assistentes operacionais, que são os nossos braços direitos, pouco mais que o ordenado mínimo. Mas daqui a pouco temos os enfermeiros encostados ao ordenado mínimo, já não falta muito, se fizermos a diferença. E tem de haver uma diferenciação daquilo que é diferente.

Quais seriam as prioridades que gostaria que ficassem resolvidas neste Ano Internacional do Enfermeiro?
De uma vez por todas, tem de se admitir de uma vez por todas, ver o elefante no meio da sala, que a enfermagem e os outros profissionais de saúde são uma profissão de risco. Estamos mais expostos, morremos mais, quando estamos expostos a estas situações, e não é por acaso que se começa a fazer testes serológicos de imunidade a profissionais de saúde e não a outros quaisquer, pois são aqueles que estão efetivamente mais expostos ao risco. Mais exaustos, mais cansados, que têm de trabalhar mais numa situação de pandemia, e por aí fora, aguentam efetivamente a vida de todos nós. Depois, de uma vez por todas, os enfermeiros têm de poder fazer as suas especialidades em serviço, e pagas, como existe no internato médico. Isto não é uma questão de vaidade pessoal, mas a Ordem fez um estudo em 2018, em conjunto com uma universidade, e que apresentou ao Governo, onde explica porque é que isto é uma mais-valia para o país. Nesse estudo, avaliámos o impacto dos cuidados especializados a 5, 10 e 15 anos nos cuidados de saúde primários e nos hospitais. Avaliámos em dinheiro. Ter cuidados especializados poupa 55 milhões de euros em controlo de infeção, por exemplo. Reduz a taxa de mortalidade, o número de dias de internamento, reduz a taxa de reinternamento, e tudo isto é dinheiro. E depois, uma coisa muito importante que tem a ver com o número de enfermeiros que constituem as equipas e com a contratação, e que apareceu nos últimos anos, não era muito estudado mas tem-se dado muito enfoque a isto internacionalmente, que é a chamada Patient safety, que está ligada à dotação segura, o mínimo de enfermeiros que temos de ter em cada serviço para termos a vida das pessoas protegidas e em segurança. Esta dotação segura, de uma vez por todas, tem de ser respeitada. Estes estudos internacionais dizem-nos que, por cada doente que um enfermeiro tem a mais a seu cargo, dentro de um hospital, a taxa de mortalidade sobe 7%, e isto são vidas.


Neste momento, qual é esse rácio?
Neste momento, se olharmos para os dados que temos disponíveis, a média dos países da OCDE, a média, de enfermeiros por mil habitantes, anda à volta dos 9,5. Esta é uma média que ainda não garante, mas é uma média. O ideal do patient safety são rácios na ordem dos 13, 14 enfermeiros por mil habitantes. Quando olhamos para Portugal, se olharmos apenas para o SNS, temos 4,3 enfermeiros por mil habitantes. Se incluirmos o privado e o social, temos à volta de 6,5 enfermeiros por mil habitantes. É menos de metade do ótimo, e é muito menos que a média dos países da OCDE. Quando os estudos internacionais provam que, por cada doente a mais que um enfermeiro tem, eu tenho um aumento da taxa de mortalidade de 7%, e isto não pode ser olhado como um número, porque são vidas. Secalhar não diz muito a quem não pensa nisto todos os dias, porque não é a vida de alguém que eu gosto, mas um dia pode ser, nós não sabemos. A estas três coisas acrescentaria também a questão da reforma. Eu não posso ter um enfermeiro a reformar-se aos 66 anos de idade, como tenho o resto da função pública. Os enfermeiros tinham, antes de 2009, uma reforma aos 57 anos de idade, com 35 anos de profissão. Quando eu terminei o meu curso, era este o regime que vigorava, porque eu, aos 44 anos, sou enfermeira há 23, e portanto nós não podemos ter tantos anos de serviço, porque esta é uma profissão de desgaste rápido, e não podemos ter uma reforma aos 66 anos, porque o nosso trabalho é muito físico, e tem a ver com a prestação direta de cuidados e o suportar as necessidades que os outros já não conseguem prover a eles próprios. Mobilizá-los, levantá-los, dar-lhes banho, todo isto requer esforço físico, e nós aos 66 anos de idade não vamos estar em condições de fazer isso, porque fazer noites, fazer turnos, são regimes de trabalho que alteram por completo os nossos ritmos biológicos, e fazem-nos envelhecer muito mais rapidamente que outra profissão qualquer.

 
Entrevista: Ricardo Perna
Fotos: Lusa
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