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«Tenho o carinho das pessoas não porque fui, mas porque fiquei»
30.07.2018
O Pe. Gonçalo Castro Fonseca é jesuíta e está há cerca de um ano em missão na Síria. Com sede em Damasco, trabalha com jovens e ajuda na gestão de um centro comunitário. Fala de uma cidade em estado de guerra, mas onde se sai à noite e há vida social, agora que os confrontos parecem começar a dar tréguas. Depois de um período atribulado, onde viveu a experiência de uma bomba a explodir ao pé do local por onde passava para regressar a casa, sente-se fortalecido no seu propósito, e nunca pensou em vir embora, mesmo quando todos achariam que seria o melhor a fazer.

 
O que o moveu a ir até à Síria?
Houve uma preparação interior, a partir dos EE [Exercícios Espirituais de Santo Inácio, uma prática dos jesuítas] de um mês no deserto de Atacama, no Chile, durante a Terceira Provação. Um local de extrema pobreza onde as pessoas tinham perdido tudo, embora não numa situação de guerra.
Queria ser “apóstolo da esperança”, e digo isto entre aspas, para não parecer arrogante, mas sentia que era chamado a levar esperança a quem não tem esperança. Por isso, quando me sugeriram países que passavam por dificuldades, fui eu quem sugeriu ir para a Síria, quando as hipóteses eram o Iraque ou Marrocos, porque ninguém nos jesuítas é enviado para a Síria nesta altura, a não ser que a pessoa queira.
 
Como é que foi a chegada a um país em guerra, com todas as conceções que trazia na cabeça?
Foi muita surpresa. Eu estava a pensar encontrar um país em estado de sítio, onde não havia ninguém nas ruas, e de repente chegar e perceber que, afinal, até podia sair à rua dar uma volta sozinho. Depois da surpresa, percebi as diferenças: não há correio, a luz falta frequentemente, há checkpoints em todo o lado, e sair de casa sem documentação é a pior coisa que pode acontecer, porque não perguntam, vais logo preso. No dia seguinte veio o desconforto de não estar seguro, e depois a verdadeira dimensão do risco. Nunca tive uma arma apontada à cabeça, mas corri os mesmos riscos de qualquer cidadão sírio, de poder levar com uma bomba em cima ao andar na rua, que me matasse ou me pusesse inútil. Primeiro a surpresa, mas depois a noção de que há uma realidade assustadora para a nossa cultura. A primeira vez que fui a Homs, passados 30 minutos de ter chegado, aparece um militar a perguntar quem eu era, porque não me conhecia, e a pedir a documentação. O sentimento de “Big Brother”, de que estamos a ser observados, mesmo sem o saber, é assustador. Há toda uma tensão no ar, atravessar a fronteira para o Líbano ainda hoje é uma tensão enorme, saber se posso sair, se me deixam voltar a entrar.
 
Alguma vez teve uma bomba a explodir perto de si?
Várias vezes havia bombas que caíam minutos antes ou depois dos sítios por onde passava. Por ingenuidade, eu achava que aquilo nunca me iria acontecer a mim, apesar de já ter decorado todos os procedimentos numa situação dessas. Um dia, era inverno e já estava escuro, saí dos transportes públicos na praça e fiz o caminho a pé para casa, um percurso que fazemos sempre. Cem metros à frente, caiu uma bomba e eu bloqueei, fiquei sem reação, porque descobri uma coisa nova, que era o medo. Na cabeça revia os procedimentos e pensava que tinha de me atirar ao chão, o que era uma estupidez porque a bomba já tinha caído, e depois que tinha de me ir embora, porque podia vir outra, mas fiquei ali parado. As bombas contra o exército não provocam grande destruição, mas trazem lá dentro estilhaços de metal, que se propagam na explosão pra maximizar os danos, e eu sentia esses estilhaços.
Pensei “isto é real, acontece mesmo”, e nem sequer consegui ter emoção. No dia a seguir não fui capaz de sair de casa, e dois dias depois pensei “tenho de sair, senão fico bloqueado”.
 
As pessoas saem à rua, há vida social?
Sim, as pessoas começam a sair mais. E a vida social vai-se restabelecendo. Aleppo e Damasco eram cidades muito turísticas, e alguns sítios eram vistos como exclusivos para turistas. Eram mesmo lugares bastante cosmopolitas. Com a crise e sem turistas, esses lugares ficaram vazios, mas agora as pessoas começam a ir lá e a descobrir zonas da sua cidade que não conheciam. As pessoas estão a redescobrir a cidade. E agora não há turistas.
 
Não há turistas porque eles não vão ou porque não sabem que já podem ir?
Não. Eles ainda não podem ir. É mais seguro, mas não suficientemente para permitir a entrada de turistas. E o próprio governo não permite a sua entrada.
 
Todos os estrangeiros, organizações, saem quando há conflitos, mas a Igreja fica. Como é que as pessoas olham para os sacerdotes, e principalmente para si, que estava cá, no conforto do lar, e foi para lá quando todos os outros saíam?
Acho que as crianças não percebem esses conceitos. Mas com os jovens e os adultos é diferente. A maioria sairia dali se possível, e por isso chegar alguém do estrangeiro dá-lhes uma força de voltar a acreditar outra vez, mas o mais importante para eles não foi o ter ido, mas, no meio da pior crise da guerra em Damasco, eu ter ficado. Para eles seria natural que eu me tivesse ido embora, não seria desapontante, eles iriam compreender. E eu fui questionado se queria sair, mas eu não queria. Para eles a força está em que eu fiquei, porque poda ter ido embora e fiquei, como eles.
Penso que tenho o carinho das pessoas não porque fui, mas porque fiquei. E mesmo a Igreja, os Jesuítas não tinham um sacerdote estrangeiro na Síria desde 2012.

«É preciso ter humildade para chegar ao fim do dia e aceitar que às vezes já não tenho força para celebrar»

Crê que o seu trabalho transmite esperança às pessoas?
O trabalho de estar no terreno permitiu-me dar esse alento às pessoas, sem dúvida. O que vou fazer agora em Damasco, no escritório, pois estamos a reorganizar os projetos, vai-me permitir conhecer melhor os projetos das outras cidades, o que é bom.
 
Quais são os mitos que temos de deixar cair para termos uma imagem mais real do que está a acontecer na Síria?
Esses mitos não são culpa das pessoas, mas eu diria: primeiro, não confie nos meios de comunicação social, que são muito influenciados pelos meios americanos. Há que perguntar-se e questionar se o que nos está a chegar é realmente fiável.
Precisamos de tentar conhecer melhor a realidade e os refugiados que temos podem ser a solução para muitas situações, e precisamos e ouvir as suas opiniões sobre os assuntos. Não podemos é deixar-nos atar pela ideia de que tudo se reduz a “bons” e “maus”, a realidade é mais complexa.
Temos que deixar de pensar nos Sírios como os “coitadinhos”. É necessária uma enorme dose de humildade, mesmo estando aqui a ver as notícias pela televisão. Porque aquilo podia acontecer connosco, e não podemos dar nada por garantido.
 
Mas “ter pena” é algo espontâneo. Como mudar isso?
Na prática não sei muito bem como é que isso se faz. Mas há uma atitude de fundo a mudar. Se pensarmos no modo como Deus lida connosco. Não basta ser solidário, é bom, mas não chega. É preciso que nos identifiquemos com aquelas pessoas. A ideia de “coitadinhos” coloca-nos numa atitude de solidariedade, e até posso ajudar e ser generoso, mas nunca chegarei a tentar colocar-me no seu lugar. Jesus não foi solidário connosco, não foi… Cristo identificou-se com a nossa realidade. Esta identificação será o princípio da mudança…
 
Mas como é que alguém em Lisboa, a ver televisão na sua sala, se pode identificar com alguém a fugir de uma bomba na Síria?
Como já disse, na prática não é fácil, mas tentemos fazer a questão “e se fosse contigo?”. Mesmo quando lá cheguei e já lá estava e sabia que as bombas caíam, não achava que pudesse acontecer comigo. E no dia em que aconteceu, quando uma bomba caiu perto de mim, mesmo que não me tivesse atingido, no dia seguinte fui incapaz de sair de casa. E mesmo procurando esta identificação, sei que ela não é total. Estou muito longe de compreender realmente aquilo porque eles passam. Porque ninguém da minha família morreu, nenhum dos meus amigos se foi embora e, se houver um problema, eu posso vir-me embora. E nesse sentido estou numa posição confortável. Nunca perceberei totalmente aquilo porque passam. Por isso, se é difícil para mim, esta identificação é ainda mais difícil para a pessoa que vê tudo pela televisão. Ainda assim, sobretudo para os cristãos, a solidariedade, sendo boa, não é suficiente.
 
Celebram missa com regularidade?
Bem… tentamos.
 
E como foi a primeira vez que celebrou missa? Só para jesuítas?
Na maioria das vezes só para jesuítas em casa e em Inglês. E uma ou outra vez em festas importantes concelebro com o P. Fouad ele celebra em Árabe e eu depois posso
dizer umas palavras.
 
Mas há uma grande diferença entre celebrar cá e lá?
Bem isso é mesmo difícil de responder… sinto-me muito sensível, vivo muitas emoções e nem sempre é fácil processá-las. E por isso, cada vez que eu paro, são experiências muito fortes. E a celebração em si sempre foi para mim uma experiência enorme de Deus. Viver a missa como normalmente a vivo, com toda a intenção, seria para mim emocionalmente demasiado exigente, e por isso defendo-me um pouco.
 
Mas ainda não celebrou em sítios destruídos por bombas?
Não, nunca… em alguns sítios, como em Aleppo, isso já aconteceu, mas comigo não, até porque os sítios destruídos estão interditos. Pode acontecer em alguns casos, mas comigo ainda não.
Mas ainda quanto à celebração, tenho de lidar com a impotência. A impotência do querer celebrar, do querer viver e não poder, por causa do impedimento da língua. Fazemos esforço por celebrar todos os dias, mas de facto o ritmo do dia, a dispersão das nossas vidas, nem sempre o permite. E é preciso ter humildade para chegar ao fim do dia e aceitar que às vezes já não tenho força para celebrar. Vamos naturalmente à missa dominical, durante a semana celebramos várias vezes mas, às vezes, não é mesmo possível. Por outro lado, quero expor-me ao árabe. Comecei por ir a uma missa em inglês dos franciscanos, mas depois percebi que não era isso que quero, quero inculturar-me.

O Pe. Gonçalo com o Pe. Fouad, diretor da JRS na Síria

«Há como que uma guerra mundial a acontecer dentro da Síria»
 
Como é a relação das pessoas com a fé, como lidam com as perguntas de “onde está Deus no meio de tudo isto”?
É curioso que, havendo uma grande variedade de religiões e ritos, não há ninguém indiferente. Não há propriamente ateus. Deus é uma presença muito real nas suas vidas, o que é diferente daquilo a que estamos habituados, Pode-se perguntar livremente de que religião ou rito é que és, não é “politicamente incorreto”.
Há uma certa dimensão de uma religiosidade popular. Com certos sinais de devoção popular, como benzer-se ao passar por uma Igreja, e marcas da religião a que se pertence, o terço ou o correspondente no Islão, o masbaha, pendurados no espelho retrovisor do carro.
Os mais jovens, que sou com quem tenho mais contacto, têm uma experiência espiritual muito forte, mas não têm ferramentas para a integrar, processar e partilhar em comunidade. Participam nas celebrações, mas depois há alguma coisa nas suas vidas para as quais não chegam a ter ferramentas de interpretação. Têm uma forte experiência de fé, mas ainda não têm consciência da força dessa fé e como expressá-la. Vão encontrando respostas para as experiências como as da guerra, mas não sabem lê-las ou expressá-las. A nossa presença ajuda a enquadrar e dar palavras a estas experiências. Tivemos um tempo de retiro com o nosso staff do JRS, com pessoas de várias religiões e foi realmente forte para eles, porque nós lhes demos as palavras de que necessitavam para se expressar.
 
Disse que tinha bastante contacto com jovens em que contextos se dão esses contactos. Sai com eles?
No começo eu era o “estrangeiro”, a figura exótica com quem faziam questão de estar e que gostavam de conhecer. Mas esses encontros dão-se muito em casa das pessoas, porque é parte da cultura e porque também não têm dinheiro para ir a bares ou assim. Conheço as suas casas, têm uma vida social ocupada e agora já posso ser eu a provocar alguns destes encontros. Normalmente em casas, mas uma ou outras vez em bares, mais com amigos e para encontros mais pessoais do que com grupos.
 
Como sente que esta crise pode ser ultrapassada?
As pessoas têm força e, se não houvesse interferência internacional, se dissessem ao povo “agarrem na vossa vida, resolvam os vossos problemas”, eles saberiam como fazê-lo. Não de um modo imediato, com ajuda, claro. Mas não do modo como estão a ser ajudados agora. Porque há demasiadas presenças internacionais, cada uma a puxar para o seu lado e não dando autonomia. Há como que uma guerra mundial a acontecer na Síria, não é uma guerra Síria. Se aqueles países lá não estivessem, a guerra já teria terminado há muito tempo. Se não houvesse tantos interesses políticos, a guerra já teria acabado.

Nota: Esta entrevista foi conduzida em simultâneo para a Família Cristã e para o portal Ponto SJ, mas a edição é autónoma.
 
Entrevista: Ricardo Perna e P. José Maria Brito, sj
Fotos: Ricardo Perna



     
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