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Um tumulto brasileiro
02.05.2016
O Brasil vive uma enorme crise – política, económica e moral. A crise política, tudo indica, será resolvida com o afastamento da presidente Dilma Rousseff do seu cargo. Muito mais difícil será resolver as outras duas crises, que foram causa da primeira. A combinação de quatro anos de quebra económica acentuada com o maior escândalo de corrupção na história do Brasil é uma autêntica catástrofe para o país.


“Sins” e “nãos” gritados a plenos pulmões. Muitos insultos e muitos louvores. Tudo isto e muito mais se ouviu na Câmara dos Deputados do Congresso do Brasil na tarde e noite de domingo, 17 de abril de 2016. Nesse dia, mais de dois terços dos representantes do povo brasileiro votaram a favor de uma proposta que inicia o processo de destituição da Presidente da República, Dilma Rousseff.

De acordo com os seus adversários, Dilma é culpada do crime de responsabilidade, o que na prática quer dizer que terá manipulado as contas públicas do país e aprovado despesas sem autorização do Congresso, de modo a obter vantagens eleitorais na eleição presidencial de 2014. Os brasileiros designam essas práticas de «pedaladas fiscais» e, como a presidente diz, têm sido prática comum dos diferentes governos do Brasil, sem que alguém alguma vez tenha sido destituído por causa disso. Todavia, o Congresso prepara-se para julgar Dilma Rousseff por esses alegados crimes, e tudo indica que irá mesmo destituí-la, se bem que o processo ainda esteja a meses do fim.

Perante isto, surge a questão: Porque é que os representantes do povo brasileiro, muitos dos quais apoiavam Dilma e o seu governo até há poucas semanas, se decidiram a afastá-la do cargo para que foi democraticamente eleita há apenas um ano e meio? A resposta não se pode resumir num só fator, mas há três que são indiscutivelmente cruciais: a enorme crise económica que o país atravessa; o gigantesco escândalo de corrupção que envolve grande parte da classe política, conhecido como Operação Lava Jato; e a enorme polarização política e social do eleitorado, que fez com que a oposição, sentindo a debilidade de Dilma e do seu Partido dos Trabalhadores (PT), se lançasse ao ataque assim que sentiu que havia possibilidades de recuperar aquilo que tinha perdido nas urnas.

Falando do aspeto económico, não há dúvida de que os governos de Dilma Rousseff têm sido manifestamente incapazes de guiar o país na boa direção. Raras vezes se viu, nas últimas décadas, uma inversão tão rápida de cenário e expectativas num país como aquela que se deu no Brasil desde 2012. Até ao ano anterior, viveu-se uma fase de grande euforia, com crescimentos elevados e sucessivos do Produto Interno Bruto. Esse crescimento acelerado da riqueza nacional permitiu que os governos do PT (Lula da Silva, primeiro, e Dilma, depois) lançassem um enorme conjunto de apoios sociais, que tiraram dezenas de milhões de pessoas da pobreza. Essas reformas foram quase universalmente louvadas, tanto mais que foram acompanhadas de políticas económicas prudentes, que deixaram as contas públicas brasileiras em estado saudável.



Os problemas começaram depois da grande crise mundial de 2008-2009, quando os preços das principais exportações brasileiras (bens alimentares e minérios, em especial) caíram abruptamente. Nessa altura, o governo não fez os ajustes necessários em termos de política económica e fiscal, e em alguns casos até agravou os efeitos da crise com medidas protecionistas e restritivas. Assim, passou-se de um crescimento económico de 7,5% em 2010 para uma retração de -3% no ano passado, sendo que para 2016 se prevê um número ainda pior. Isto significa que a taxa de desemprego praticamente duplicou em apenas dois anos, estando agora muito perto dos 10%.

Tudo isto criou uma enorme insatisfação popular, especialmente nas grandes cidades. Essa insatisfação foi redobrada quando rebentou o escândalo da Operação Lava Jato. Graças a denúncias e à colaboração de alguns réus com a Justiça a troco de penas mais leves, o Ministério Público Federal começou a desenrolar um imenso novelo de corrupção envolvendo a empresa petrolífera pública Petrobras, os maiores grupos de construção civil do país e grande parte da classe política brasileira.

O esquema consistia na atribuição de contratos de construção da Petrobras, no valor de muitos milhares de milhões de euros, a troco de subornos pagos pelos empreiteiros aos diretores da empresa e, também, a políticos. Dado que o PT tem estado no poder desde 2003, esse partido é um dos mais atingidos pelas alegações de corrupção e há fortes suspeitas de que os seus cofres terão beneficiado diretamente do dinheiro da Lava Jato. No entanto, há membros de quase todos os partidos envolvidos no escândalo, de tal modo que grande parte dos deputados que votou “sim” ao pedido de destituição de Dilma Rousseff está sob investigação.

A presidente, até agora, não foi acusada de ter cometido qualquer ilegalidade no âmbito do processo Lava Jato, mas o mesmo já não acontece com o seu antecessor, Lula da Silva, cuja detenção até já foi pedida pelo Ministério Público no âmbito de um outro processo. Dilma ligou o seu destino ao de Lula ao nomeá-lo para o governo, em março de 2016, numa tentativa clara de lhe dar a imunidade necessária para ele escapar a uma detenção que se antevinha iminente. Essa nomeação foi bloqueada pelo Supremo Tribunal Federal, mas a presidente ficou marcada com um ferrete de que dificilmente se livrará: o de que tentou travar o funcionamento da Justiça.

O episódio da nomeação de Lula da Silva para o governo é bem ilustrativo do terceiro fator que apontámos para a detonação da crise brasileira – a imensa polarização em que o país vive. Atualmente, milhões de brasileiros estão divididos em dois campos entrincheirados. De um lado, os apoiantes de Dilma e Lula, chamados de «petralhas» (ladrões do PT) pelos seus adversários; do outro, os «coxinhas» que querem ver Dilma impugnada, e que são acusados pelos esquerdistas de serem conservadores reacionários, ou até apoiantes da antiga ditadura militar que governou o Brasil até 1985.

Esta divisão política espelha em grande medida uma divisão social: é inegável que os defensores do afastamento de Dilma são predominantemente brancos de classe média ou alta; por contraste, os defensores da presidente encontram-se mais nas camadas desfavorecidas da população, onde a pele tende a ser mais escura. O Brasil ainda não é para todos, e, enquanto assim for, a crise está sempre ao virar da esquina.
 
Texto: Rolando Santos
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