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Uma escola de vizinhos para promover a paz
07.07.2021
Quando Jorge Bergoglio era arcebispo de Buenos Aires criou a Escola de Vizinhos ou Irmãos para promover a paz e o encontro entre os jovens. Desde 2019 que tem uma sede em Portugal. A FAMÍLIA CRISTÃ foi conhecer o trabalho e o impacto que tem nos jovens.
 
À chegada à sede da Scholas Occurrentes, em Cascais, encontramos Ana Raimundo. De sorriso na boca, acompanha-nos na entrada no edifício ao encontro de Kattia Hernandez, diretora da organização em Portugal. Ana tem 17 anos e estuda na escola secundária de Carcavelos, concelho de Cascais. Participou no projeto «Cidadania», há dois anos. Desde então integrou outros da Scholas. Um dos mais marcantes foi aplicar aos alunos de uma escola «este modo de educar». Como? «Houve jogos, pinturas. Há muitas formas de nos expressarmos e, muitas vezes, a escola especialmente agora tem um currículo que é muito virado para decorar, há estas matérias para aprender. Não desenvolvemos competências sociais, não desenvolvemos competências interpessoais e tudo aquilo que são aquelas soft skills que são realmente importantes para o nosso futuro. E, no entanto, sabemos fazer as equações de tudo e mais alguma coisa, não é?»

Ana Raimundo.

Experiências que fizeram Ana perceber que ela podia fazer a diferença onde está: «Foi o meu despertar para a sociedade, para a ajuda, para a participação. Foi aí que eu comecei a perceber “OK, este concelho dá-nos oportunidade de participar, dá-nos oportunidade enquanto cidadãos”. Foi aí que eu percebi que ser cidadão não é ser eleitor. Sem termos 18 anos, sem votarmos, podemos ser cidadãos e ter um papel ativo na nossa comunidade.» Essa mudança de olhar e de forma de estar concretiza-se: é agora presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária que frequenta e envolveu-se em vários projetos.

Mas que é a Scholas Occurrentes? Porque nasceu?

Kattia Hernandez é a diretora da Scholas Occurrentes em Portugal, desde agosto de 2020. Ela explica que «o que Scholas faz é muito lindo e muito especial: é mesmo criar espaços de encontro entre os jovens». Encontro é palavra-chave em Scholas. «Os jovens terem um espaço seguro em que podem falar de vários temas e que são ouvidos existe pouco. Há algo que acontece aqui que não está em mais lado nenhum. É algo que faz mesmo falta», explica. «O Scholas pretende ser esse espaço para haver esse encontro, onde podes falar e podes pensar-te.»

Kattia Hernandez.

Esse espaço onde tudo pode ser dito aproxima os jovens uns dos outros. «Se pões os miúdos juntos a pensar numa coisa em comum, eles têm as mesmas ideias, os mesmos desejos, os mesmos sonhos. E conseguem a partir daí despojar-se de tudo o resto que nós temos. Quando o Papa criou a Scholas, a ideia era mesmo voltar a encontrar estes pontos em comum. A organização desde então continua a ser fiel», defende. A relação é ao nível do ser. Kattia explica: «Normalmente, ensinam-nos que temos de fazer muitas coisas, para poder ter coisas e finalmente ser alguém. Quando é completamente errado. Temos de saber quem somos, para fazer e ter o que precisamos de ter e não mais do que isso. Ligar a linguagem do coração à linguagem da mão e à linguagem da mente. Ao ter isto tudo ligado e em conexão podemos ser alguém de bem, fazer coisas boas e ter as coisas que precisamos.»

Criado o encontro a este nível, tira-se «este condicionamento da sociedade de que tudo é utilitário. E percebes que não. Na arte há uma beleza que te comove e que te leva a outro estado de espírito, a ver as coisas de uma forma muito mais espiritual».
Os projetos desenvolvem-se com jovens entre os 15 e os 18 anos e alguns educadores que acompanham os grupos apenas fazendo perguntas.

A sede em Portugal fica em Cascais, mesmo no centro da vila. Um concelho conhecido pelas moradias luxuosas, mas que tem muitas realidades diferentes. «Cascais tem tudo no concelho. Temos ido encontrar-nos com os líderes dos bairros, encontrarmo-nos com os jovens. Estar no centro de Cascais é também uma posição muito estratégica. Se calhar, os jovens dos bairros não vêm tanto para aqui. A ideia é que esta sede seja o espaço para virem estudar, fazer música ou pensar», afirma.
O encontro é promovido até nos educadores, voluntários: «Um dos formadores é um dos líderes do bairro da Adroana, temos um professor de uma escola pública, um professor de uma escola privada, um técnico, uma jovem, um voluntário de Moçambique, um jovem do bairro.»

Os encontros Scholas são muito físicos, usando a arte, o desporto, a tecnologia. Por isso, a pandemia trouxe desafios. A internet tem sido uma ferramenta que permite encontros internacionais. «Miúdas de Amarante estiveram com miúdos do Brasil. Este “Pensarmo-nos” teve logo 20 inscritos do Brasil. Temos de encontrar em contacto com outros contextos.»

Antes da pandemia, os projetos funcionavam, unindo alunos de diferentes escolas em atividades. Um dos projetos chama-se «Cidadanias” e junta durante seis dias jovens que procuram encontrar dois projetos comuns e buscam soluções para eles. Outro é «Pensarmo-nos» que cria «um espaço comum» com atividades lúdicas em que se fala de diversos temas.  

Além dos projetos com jovens, também já houve com pais e com professores. Kattia fala da vontade de fazer em Portugal o que já foi feito na Argentina: «Com tablet fizeram conversas de avós nos lares com jovens de outros países. Tiveram a conversa mais linda, mais humana.» Ainda no segundo trimestre deste ano deve avançar o FutVal «futebol com valores», em que através destes exercícios os miúdos começam a refletir sozinhos, num processo superorgânico, não é nada forçado».

Julian de Márcos.

Julian de Márcos é argentino e um dos educadores de Scholas Occurrentes. «Não estava envolvido em projetos educativos nem sociais», quando foi convidado a participar num encontro. «Vim para Cascais, e achei que tinha que seguir este caminho.» Antes trabalhava em Marketing, mais sentado no escritório a fazer coisas. Agora trabalha com os jovens. Como? «Com perguntas, sem falar muito o que eu acho, mas perguntando, fazendo com que se perguntem coisas. Nas atividades é igual, mas com outras ferramentas. Quando faço música, fazê-los sentir-se incómodos com o instrumento, gerar caminhos para que possam comunicar uns com os outros», explica. Para Julian continua a ser fascinante «ver a mudança nas pessoas, estar numa atividade e ver como a pessoa aprendeu e deixou alguma coisa dentro de outra pessoa. Aprender e ensinar, mas não ensinar na forma convencional. A etimologia de ensinar é mostrar. Não meter um conteúdo, é dizer “está ali” e a outra pessoa crescer».

Irene Mesquita.Uma dessas jovens participantes é Irene Mesquita. Tem 18 anos e estuda no Colégio São Gonçalo, em Amarante. Foi através do professor de Educação Moral e Religiosa Católica que conheceu a Scholas Occurrentes. «Nós estávamos em casa em quarentena. Achamos interessante e quisemos todos participar», conta. Entraram no programa «Pensarmo-nos» «dividido em cinco reuniões, duas horas todas as terças-feiras, com alunos entre os 15 e os 18 anos, de vários sítios, Portugal, Moçambique, Brasil e Chile. Tínhamos um tema específico para cada reunião. Por exemplo, o tempo, que são temas que não falamos normalmente.» A pandemia obrigou o encontro a ser online, mas permitiu contacto entre jovens de vários países, com a riqueza que isso acarreta. «Eu gostei. Eu destaco que era uma pessoa que não gostava de sotaque brasileiro, mas era por causa das músicas e das novelas, parece que exageram. Mas logo na primeira reunião fiquei a gostar mais do sotaque brasileiro. Foi bom, abri novos horizontes e novas perpetivas», afirma. Mas não foi apenas isso que Irene ganhou. «Eu sou uma pessoa muito pensativa e, às vezes, não tenho com quem falar sobre certos temas. E como tive oportunidade de falar sobre eles senti-me melhor, mais compreendida, ouvir outras perspetivas sobre isso. Como gosto de escrever até escrevi algumas coisas, porque fiquei um pouco inspirada.»

Ana Monteiro.Ana Monteiro é colega de turma de Irene. Tem 17 anos e o desafio de participar cativou-a porque «era uma oportunidade única, eu nunca tinha participado em nada internacional como foi este este projeto». Esta jovem destaca que «conseguimos ter novas perspetivas, diferentes opiniões, conhecer outros costumes de outros países». Gostou de tudo e revela surpresa no início. «Estávamos todos nervosos, porque ninguém conhecia ninguém.  Inicialmente estávamos todos juntos e depois nós dividíamo-nos em grupos mais pequenos com pessoas sempre diferentes. E conseguíamos ter outro contacto com as pessoas e até criar certas ligações e afinidades com pessoas que nós achávamos que nos identificávamos mais», revela. Depois deste encontro em abril, os contactos têm-se mantido através de grupos nas redes sociais. E alguma coisa mudou na Ana? «O facto de eu também estar em casa muito tempo deixa-me um bocadinho com a mente mais fechada. Foi uma oportunidade que tive de me poder exprimir e dizer aquilo que eu pensava e falar de temas que nós achávamos tão normais que nem dávamos a devida importância. Podermos falar de tudo e mais alguma coisa com outras pessoas e às vezes acharmos que só nós tínhamos determinadas opiniões e percebemos que há muitas pessoas a pensar da mesma maneira que nós.» Neste projeto «Pensarmo-nos» trataram de temas como tempo, passado, presente, futuro «aquilo com que nos identificávamos mais, a importância que o outro tem na nossa vida».

Kattia Hernandez fica embevecida a ouvir os testemunhos das jovens. «Podemos ver a mudança dos jovens. É muito entusiasmante ver as emoções de medo, de tristeza, de solidão, que todos temos tido. Ouvir isto dos jovens e poder pensar diferente. Até nós é superenriquecedor. É maravilhoso. É um alimento para a alma saber que há esperança. Estes jovens estão a olhar o mundo de uma maneira que nós não estamos a ver.»
 
A origem de Scholas
Em 2001, o então arcebispo de Buenos Aires criou a Scholas Occurrentes, Escola de Vizinhos ou Escola de Irmãos, em português. A ideia era «educar para a abertura ao outro, para escutar, para que, ao reunir os pedaços de um mundo fragmentado e vazio de sentido, comece a criar uma nova cultura: a Cultura do Encontro». Desde aí continuou a crescer e é agora uma Fundação Pontíficia que usa a arte, o desporto e a tecnologia para promover o encontro, a paz e o compromisso com o bem comum. Scholas envolve 446 mil escolas, em 190 países, com mais de um milhão de crianças e jovens participantes. A Portugal chegou em outubro de 2018 com o programa «Cidadania», juntando 180 jovens do concelho de Cascais. A sede foi inaugurada em março de 2019, com o apoio da Câmara Municipal de Cascais, e com intervenção em direto do Papa Francisco a partir do Vaticano.
Texto: Cláudia Sebastião
Fotos: Ricardo Perna
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