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Visitar os doentes
01.04.2016
Passa das 15 horas quando entramos em casa do Joaquim e da Ana. Ela recebe-nos à porta de sorriso rasgado, bem vestida, pronta para acolher o Rui, o voluntário que há três anos se desloca todas as semanas para visitar o Joaquim. Quando chegamos à sala, a receção é muito calorosa e demoramos algum tempo a perceber que, ali, algo não está bem. O Joaquim está lúcido, reconhece o Rui, trocamos dois dedos de conversa, mas ao final de algum tempo fica silencioso, de olhar pregado nas três pessoas que ali conversam, com um sorriso complacente.


A doença de Alzheimer, em estado já avançado, não lhe permite mais interação do que aquela, a não ser que estejamos a falar de futebol. «Vemos o mesmo jogo vezes sem fim. Para ele é sempre novo, porque não se lembra que já o vimos», conta o Rui, antes de irmos a casa do Joaquim e da Ana.

Rui Franco faz parte da paróquia de Santa Isabel, em Lisboa, e quando ficou reformado resolveu fazer algo mais pelo próximo. «Estava reformado, e precisava de me ocupar, e como toda a vida tive esta preocupação com o próximo, assumi [este compromisso]. Falei com o Pe. José Manuel Pereira de Almeida e ele sugeriu que entrasse para o Mais Próximo, que é um projeto de combate à solidão dos idosos, e eu entrei. Atribuíram-me este senhor para eu acompanhar, o Joaquim. O projeto é para pessoas idosas, não doentes, mas neste caso ele estava sozinho e doente, e aceitei o desafio», explica.

Sozinho, embora bem acompanhado, já que a esposa nunca sai do seu lado. Também por isso ela se tornou objeto da atenção do Rui. «Ao longo desta experiência com ele acabei por perceber a necessidade de acompanhar também o cuidador, a mulher, cuja doença acaba por ser o isolamento e a solidão, porque se dedica completamente ao marido», conta.

Este não é um trabalho que, à partida, pareça revestido de grande dificuldade ou heroísmo. Mas a sua importância vai bem mais fundo que essa aparência de simples visita. «Sinto que sou agente da misericórdia de Deus, porque a alegria com que eles me recebem, e o que partilham comigo, hoje sobretudo a Ana, faz de mim um elo de apoio muito grande para ultrapassarem as dificuldades.

Ela mesma diz que desde que os visito que é um ar novo que vai ali a casa, assim como o ministro da comunhão que lhes vai levar a comunhão, que passou a fazer parte da vida deles», explica o Rui, que leva a cabo esta obra de misericórdia por uma questão de vocação. «Deve haver um esforço de praticar todas as obras de misericórdia, mas praticamos com mais intensidade aquelas com as quais sentimos mais vocação. Cada um tem a sua vocação, os seus dons, que tem de pôr ao serviço dos outros, e sinto-me próximo dos idosos, seja porque me encaminho para lá, seja por sempre ter tido um certo jeito e apetência para os idosos», afirma.

Este apoio permite que os doentes «levem a vida com maior positivismo, e isso tem sido algo que tenho procurado sempre trabalhar com eles», diz Rui Franco, até porque «eles não têm ninguém com quem desabafar, e nós somos esse apoio».
Estas visitas semanais criaram uma empatia de tal forma forte entre o visitador e os doentes que já são «parte da família». «Telefono-lhes muitas vezes para saber como correram as consultas do médico, ou se está a passar por alguma crise… sei que ele está na fase final da sua vida, mas pensar que vai partir custa-me muito, porque desenvolvemos uma relação muito próxima», explica.

Nos primeiros tempos das visitas, a doença não estava tão pronunciada. «Falávamos muito. Ele era médico, e contava-me muitas histórias. Quando começámos a criar maior empatia, foi quando ele se começou a fechar, e isso foi difícil de gerir», recorda este voluntário. Agora vai alternando fases melhores com fases piores, às vezes violentas, tanto física como psicologicamente. O que torna as visitas de Rui, por vezes, uma aparente perda de tempo. «Às vezes custa vir, porque penso que vou estar ali duas horas calado, a ver um jogo de futebol que já vi 20 vezes, mas depois o custo compensa pela alegria dele quando me vê chegar», revela.

Há uns dois anos, conta de forma ainda emocionada, o Joaquim confessou-lhe ciúmes da mulher. «Um episódio que achei imensa graça foi uma conversa que tivemos em que ele demonstrava um ciúme enorme pela mulher. Uma pessoa com 88 anos e que ainda se chateava quando a mulher saía de casa. Dizia que ela ia encontrar-se com outro, e achei uma ternura uma pessoa de 88 anos demonstrar esse ciúme caridoso. Achei maravilhoso, e contei-lhe quando ela veio. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos, e viver estes episódios para mim, eu estou aqui a contar-lhe isto e a comover-me, são coisas que marcam muito», diz. Mesmo que, atualmente, ele pouco interaja seja com quem for. «Os dias mais duros são aqueles em que chegava a casa e não via nenhuma resposta. Mas é um filho de Deus que está ali, que precisa do nosso carinho, assim como a acompanhante, que precisa também da visita», sustenta.

Rui diz que, «em termos espirituais», a visita aos doentes é algo de essencial. «Quem decide fazer esta obra de misericórdia ganha várias coisas. Desde logo uma realização pessoal, porque é muito gratificante sentir que respondemos a um apelo de Deus e que tentamos pôr em prática o Evangelho. Mas tentar corresponder ao apelo que Deus nos faz, que nunca correspondemos plenamente, mas sentimos que dentro das nossas possibilidades conseguimos responder a isso, e praticar os mandamentos, as obras de misericórdia... é para isso que cá andamos, porque isto me aproxima a mim muito de Deus.

O simples facto de rezar por eles todos os dias, de os ter nas minhas preocupações, telefonar para saber se passou bem a noite… Dentro deste Ano da Misericórdia torna-se ainda mais importante, sobretudo quando sentimos e vemos resultados palpáveis, que podem ser um simples sorriso, é extremamente gratificante e é muito importante», defende.

Visitar os enfermos não é tão fácil como dar de comida ou bebida, ou sequer distribuir roupa. Requer uma entrega prolongada e contínua no tempo a uma ou algumas pessoas. Um dos muitos desafios deste Ano da Misericórdia, que se espera poder ser mantido mesmo depois do ano terminar. Porque doentes a precisar de uma visita e de um conforto haverá sempre.

NOTA: Artigo publicado na edição de abril da revista Família Cristã.
 
Texto e fotos: Ricardo Perna
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