Os trabalhos do encontro sobre Proteção de Menores na Igreja que decorre no Vaticano tiveram como ponto de partida um vídeo no qual participaram cinco vítimas de abusos. Não havendo acesso ao vídeo, o Vaticano disponibilizou os testemunhos, ocultando a identidade das vítimas, e os relatos são vívidos na descrição que fazem dos abusos, mas sobretudo no medo, desrespeito e desprezo a que muitas das vítimas foram votadas quando tentaram denunciar que estavam a sofrer abusos.
Uma das vítimas foi abusada durante 13 anos por um sacerdote de quem dependia economicamente. Ficou grávida três vezes, porque o abusador não queria usar proteção, e das três vezes foi obrigada a abortar, para esconder o abuso que sofria. Não só sexual, mas também de violência doméstica, que acontecia cada vez que se recusava a ter relações com ele ou tinha um namorado novo. «Ao princípio eu confiava tanto nele que nunca imaginava que ele pudesse abusar de mim», refere a jovem, que agora diz ter a sua vida «destruída». «Os padres e os religiosos têm uma forma de ajudar que pode completamente destruir a pessoa, eles têm de se comportar como líderes», pediu.
Outro testemunho deixado por uma vítima do Chile foi o de ser tratado como um «mentiroso» quando se chegou à frente para denunciar o abuso que sofria. «Pensei “vou dizer tudo à Madre Igreja, onde me ouvem e respeitam”. Mas a primeira coisa que fizeram foi tratar-me como um mentiroso, virar-me as costas e dizer-me que eu, como outros, era inimigo da Igreja. Isto não existe apenas no Chile, mas em todo o mundo – e tem de acabar», defendeu.
Para esta vítima, os bispos têm de «reparar o mal que foi feito às vítimas». «Vocês são os médicos da alma e do corpo, mas – com raras exceções – foram transformados – em alguns casos – em assassinos da alma, assassinos da fé. Uma terrível contradição», lamentou.
Um sacerdote de 53 anos também deixou o seu testemunho aos bispos. Abusado por um padre com quem foi ter a pedir ajuda para «aprender a ler as Escrituras durante a Missa», fala não apenas do abuso, mas da forma como o bispo do seu país lidou com a situação. «Escrevi cartas ao padre e ao bispo há oito anos e ninguém me respondeu. Eu queria alguém que me escutasse, que soubesse quem era aquele homem e o que tinha feito», afirmou perante todos os bispos presentes na sala.
Associações de vítimas organizam vigília com testemunhos
Depois de terem sido recebidas no Vaticano pela comissão organizadora deste encontro de bispos, a ECA – Ending Clergy Abuse (acabar com o abuso do clero) – uma plataforma que junta organizações de vítimas de todo o mundo, organizou hoje uma vigília com testemunhos de vítimas de abusos por parte do clero, que decorreu nos jardins do Castelo de Sant’Angelo, muito perto do Vaticano.
Peter Isley, porta-voz da plataforma, contou como foi abusado aos 13 anos por um sacerdote em quem confiava, e, no final da sua intervenção, explicou que «a voz do Ressuscitado na cruz ouve-se em cada uma das vítimas que contam a sua história, é a ressurreição da voz, a saída do desespero do silêncio para a beleza, o poder e a verdade da voz humana».
Alessandro Battaglia, de Milão, foi um dos jovens que deu o seu testemunho emocionado. «Fui abusado aos 15 anos por um padre que eu considerava o melhor do mundo, a quem contava tudo. O que queria dizer esta noite, e contar, é a história de um rapaz que foi abusado. É uma dor grande, uma vida destruída», referiu.
Este jovem afirma que também a sua fé saiu destruída. «Eu deixei de acreditar em Deus, porque não pode haver um Deus que permite isto. Cresci no ambiente da Igreja católica, fui escuteiro, animador de jovens, e abandonei tudo isto. Só desejo terminar com tudo isto, e quem está lá dentro – o jovem aponta na direção do Vaticano – pode terminar, está no meio certo para o fazer. Todos nós queremos que isto não aconteça a outra pessoa, é só o que podemos desejar, para evitar todo o sofrimento que nós já sentimos», concluiu.
Em declarações à Família Cristã, Peter Isley referiu que, «se o número [de abusadores] for semelhante ao que se viu no resto do mundo, e Portugal é um país bastante católico, há 5 a 10% de sacerdotes que nas últimas décadas terão abusado de menores». «Há um número significativo de sobreviventes, mas quem saberá melhor isso são os próprios bispos em Portugal, que têm provas sobre os padres que abusaram ode estão e o que estão a fazer com eles. Os católicos não sabem, e têm o direito de saber», defendeu este responsável.
«Nos pontos que o Papa Francisco hoje colocou à reflexão, o primeiro era a elaboração de um manual. Ora se uma criança está a ser abusada e molestada por um padre, não se faz um manual, retira-se aquele homem do ministério, para que não moleste mais nenhuma criança. Isso é o que eles precisam de fazer. Vão fazer? Não sei, isso não vem naqueles pontos», criticou Peter Isley, acrescentando que isto não é «tolerância zero» sobre o padre que abusa ou sobre o bispo que encobre. «Ali também não se fala em responsabilizar os bispos que encobrem estes cantos. Se és um bispo e podes encobrir estes casos, são tão culpados como os que cometeram o abuso. Há muitos padres bons que podem tomar o seu lugar», sustentou.
Questionado sobre o que achava do programa do encontro, que inclui bastantes testemunhos de vítimas, Peter Isley afirma que importante seria falar com quem conhece a realidade. «Não sei porque é que algum bispo no mundo precisa de ouvir de mais gente, o Papa já lhes disse que são horríveis. O que precisam de ouvir de nós é o que vamos fazer em conjunto. Não há melhor grupo de pessoas que este, porque são sobreviventes, trabalham em organizações, conhecem as pessoas, sabem lidar com a ilusão da Igreja e o sistema civil», concluiu.
«Honestidade radical sobre tudo o que aconteceu»
As mulheres da American Catholic worker woman, ua organização de mulheres católicas nos Estados Unidos da América, enviaram uma delegação a Roma para participar nos protestos das vítimas. Alice McGarry afirma-se «contente» pela realização da cimeira, mas quer mais «coragem, honestidade e humildade». «Queremos que eles façam mais, e que escutem toda a gente. A Igreja perdeu a confiança do mundo e precisamos de fazer muito mais, os padres e todas as pessoas da Igreja, precisam de trabalhar em conjunto para mudar e reconquistar a confiança do mundo», referiu esta ativista.
O que é preciso fazer é escutar. «Temos de ouvir todos, todos os sobreviventes, ouvir todas as histórias, investigar... não sei a solução, mas sei que a Igreja não está a fazer o suficiente. Têm demasiado medo e não acho que precisem de ter medo. Podem ser corajosos, mas têm medo», lamentou.
Mas medo de quê, perguntámos. «Acho que algumas pessoas têm medo de perder fiéis, outras medo de perder poder, outras apenas com medo da verdade... temos medo do Mal, não queremos sequer pensar em abusos sexuais, as famílias têm receio em falar disto, mas não precisamos de ter medo. Precisamos todos de transformar o medo em coragem, não apenas o Papa, e estou a rezar por todos nós», disse.
A reportagem em Roma no encontro sobre Proteção de Menores na Igreja é realizada em parceria para a Família Cristã, Agência Ecclesia, Flor de Lis, Jornal Voz da Verdade, Rádio Renascença e SIC.
Reportagem: Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna e EPA
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